August 21, 2020

“BOLSONARO É UM ATENTADO A CONSTITUIÇAO”

 

  S E RGIO L I R IO

 O advogado Pedro Serrano
concorda com a avalia-
ção de que são mínimas
as chances de o impeach­
ment de Bolsonaro pros-
perar neste momen-
to, mas acredita que a
conclusão não deve pa-
ralisar as iniciativas para
re­movê-lo do cargo. Quanto menos tem-
po o ex-capitão permanecer no poder,
avalia o professor de Direito da PUC de
São Paulo e colunista de CartaCapital,
melhor para o Brasil. Razões jurídicas
objetivas para afastar Bolsonaro, atra-
vés do Congresso ou por meio de um
processo por crimes comuns, existem
de sobra, explica na entrevista a seguir.
A íntegra você assiste em youtube.com/
cartacapital.

CartaCapital: O senhor repete que
o instrumento do impeachment foi ba-
nalizado no Brasil, mas defende o afas-
tamento de Bolsonaro. Por que não se-
ria um excesso neste caso?

Pedro Serrano: Antes
da pandemia, eu resistia
à ideia de que os atos do
Bolsonaro até então pu-
dessem ser juridicamen-
te caracterizados como
crimes de responsabilida-
de. Agora não tenho mais
dúvida. A reação dele ca-
racterizou o preceito ju-
rídico, o crime de respon-
sabilidade, o atentado à
Constituição. Temos de
entender o conceito do
Estado Constitucional de
Direito. Antes de tudo, ele pressupõe que
a decisão política não é livre. Está subor-
dinada ao império da lei. Um dos valo-
res essenciais da democracia liberal, tal-
vez o mais relevante, é o direito à vida, e
o segundo mais relevante
talvez seja o direito à inte-
gridade física e à saúde. Ao
fazer discursos que defen-
dem o desrespeito ao iso-
lamento, Bolsonaro es-
timula a desobediência a
uma ordem legal, dada no
interior da federação pelos
governos estaduais e mu-
nicipais, portanto, são or-
dens de Estado, são deter-
minações legislativas e ad-
ministrativas de cumpri-
mento obrigatório. Ele incita a

 

  subversão dessas ordens e aten-
ta contra o direito à vida e à saúde, algo
gravíssimo. Dificilmente consigo verifi-
car uma conduta mais grave do que esta,
talvez só se ele reunisse os cidadãos em
um estádio e os fuzilasse. A sociedade, os
demais poderes, tem reduzido a gravida-
de constitucional, jurídica, política e hu-
manitária dessa postura. O presidente
da República não pode decidir livremen-
te entre seguir a ampla maioria científica
ou não seguir. Ele é obrigado a respeitar
a atitude mais cautelosa e respaldada pe-
la ciência. A atitude cientificamente mais
cautelosa neste instante é o isolamento.


CC: Não foram atentados só à
Constituição, certo? Ele também co-
meteu crimes comuns?


PS: Sem dúvida. Contra a ordem públi-
ca, caracterizado na Lei de Segurança
Nacional, contra a saúde, com base no
artigo 286 e outros do Código Penal.
O Ministério Público claudica ao não
apurar. A Polícia Federal dá sinais de es-
tar aparelhada pelo governo Bolsonaro,
como não se via no passado recente. Do
ponto de vista político, não vejo condi-
ções no momento para um processo de
impeachment, mas é preciso construir
a possibilidade. Quanto menos tempo
Bolsonaro ficar no poder, melhor para
o País. Ao contrário do que afirmou, ele
não “é a Constituição”. Ele é um atentado
à Constituição. Para derrubá-lo, precisa-
mos de uma ampla frente que una todos
os espectros, independentemente de vi-
sões ideológicas ou interesses eleitorais.

O EX-CAPITÃO
“ATUA COMO UM
AGENTE DA
DESOBEDIÊNCIA
CIVIL. POR ISSO
HÁ MOTIVOS
SUFICIENTES PARA
IMPEDI-LO”


CC: Bolsonaro e o bolsonarismo po-
deriam prosperar em outro país? Não
é um fenômeno tipicamente brasileiro?


PS: O bolsonarismo é um fenômeno na-
cional, une uma ideia de ultraliberalis-
mo ao autoritarismo estatal. Não se vê
no resto do mundo. Nos países em que a
extrema-direita prospera, adota-se um
modelo clássico: autoritarismo e xeno-
fobia associados a um projeto nacional,
com políticas de benefícios aos cidadãos.
Analisemos as medidas econômicas ado-
tadas no Brasil para combater os efeitos
da pandemia. Elas favorecem o grande
capital, os interesses de uma minoria.
Atípica também é a oposição, em espe-
cial o campo chamado de progressista.


CC: Por quê?


PS: Ela tem sido incapaz não só de ser
incisiva na defesa de políticas econômi-
cas justas, mas peca na denúncia dos cri-
mes de Bolsonaro. O isolamento social só
será mantido se os mais pobres tiverem
condições de se alimentar, de sobreviver.
É preciso muito mais intensidade e efeti-
vidade nas políticas de auxílio emergen-
cial. Sem dinheiro, sem comida, o sujeito
não vai ficar em casa, entra em desespero

 

 Além disso, o campo progressista conti-
nua a lidar com a situação como se vivês-
semos em uma normalidade. Bolsonaro
chegou ao poder graças a uma série de
golpes, da imposição de um estado de ex-
ceção, que vai do impeachment da Dilma
Rousseff à prisão ilegal do Lula. Não dá
para pensar em 2022, como se fosse pre-
visível. Imaginemos se não for produzida
uma vacina nos próximos anos e os países
forem obrigados a adotar isolamentos so-
ciais de tempos em tempos. Um prolonga-
mento da pandemia não seria uma descul-
pa perfeita para o Brasil adiar as próximas
eleições presidenciais e prolongar o man-
dato de Bolsonaro? O aumento da crise so-
cial, com saques e violência, não serviria
para o governo decretar estado de sítio?


CC: Em que ponto a oposição falha?


PS: Entendo algumas reações, outras
não. O fato de o Brasil ter experimentado
um longo período com um governo consi-
derado de esquerda, e ter acabado como
acabou, gerou uma onda de oposição em
grande parte injusta, que dificulta a re-
articulação dessas forças. No caso do PT,
ainda não caiu a ficha dessa realidade.
O partido acaba por dificultar a criação
de uma ampla frente contra Bolsonaro,

por causa de seu desejo de protagonis-
mo. Ao mesmo tempo, o PT me parece
catatônico, paralisado, nem radicaliza
a crítica nem a ecoa com eficiência. O
PSOL, bem menor, aparece muito mais.
Ao contrário de muitos petistas, acredito
não haver outro caminho a não ser uma
aliança com todos aqueles dispostos a
superar este momento terrível da nossa
história. O mais importante é romper o
fanatismo bolsonarista.

“AINDA NÃO CAIU
A FICHA DO PT.
VEJO O PARTIDO
CATATÔNICO,
PARALISADO”


CC: Bolsonaro ameaça acabar com
o isolamento por decreto e derrubar
decisões de estados e municípios.
O que legalmente ele pode fazer?


PS: Muito pouco. Um decreto dessa na-
tureza seria inconstitucional. A federa-
ção não está suspensa. Em nenhum pa-
ís de grandes dimensões a pandemia
se desenvolveu de forma homogênea.
Então, cabe aos estados e municípios de-
finirem as regras de acordo com a aná-
lise da situação local. A competência da
União é coordenar as iniciativas, mas não
se imiscuir na execução estadual e muni-
cipal. Seria ilegítimo interferir, é condu-
ta criminosa. Não acho que Bolsonaro te-
nha coragem de baixar o decreto. Soa co-
mo mais uma bravata. Aliás, de modo ge-
ral, não o considero corajoso. Bravateiro
sim, malandro, mascate. Na hora do va-
mos ver, ele recua. O problema é outro.


CC: Qual?


PS: Ele vai continuar a boicotar o isola-
mento e as demais medidas de combate
à pandemia. Principalmente no aspecto
econômico. A intenção é levar os brasi-
leiros, por desespero, a praticarem uma
subversão da ordem nos municípios e nos
estados. Bolsonaro atua como um agente
da desobediência civil. Por isso há moti-
vos suficientes para impedi-lo.


CC: Um processo de crime comum
depende da Procuradoria-Geral da
República, mas temos hoje no coman-
do Augusto Aras, um novo engaveta-
dor-geral...


PS: ... Não tenho certeza de que Augusto
Aras seja um engavetador-geral. Ele aca-
ba de determinar a abertura de uma in-
vestigação para descobrir quem finan-
ciou as manifestações a favor de uma in-
tervenção militar. Foi uma atitude de in-
dependência, embora ele não tenha inclu-
ído Bolsonaro na apuração. O Ministério
Público não pode, de fato, agir com moti-
vação política. Precisa ser mais contido, é
um ente jurídico. Estamos em uma situa-
ção de legalidade extraordinária, na qual
o Estado tem mais poderes que o normal,
inclusive o Executivo. Esses poderes es-
tão, no entanto, submetidos ainda à ordem
jurídica, aos princípios constitucionais.
O Estado Constitucional de Direito tem
respostas para momentos de emergência
como este. Ele precisa ser bem executa-
do. Cabe ao Supremo Tribunal Federal a
função de guardião da constitucionalida-
de e da legalidade extraordinária. •

 

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