July 16, 2020

Flash pegajoso da artista Vania Toledo varreu as boates do chão ao teto






O flash é pegajoso como a noite. Nas décadas que passou construindo uma das mais belas crônicas da vida pulsante das celebridades e pistas de dança, Vania Toledo arquitetou um mundo feito de álcool, suor, saltos agulha, lurex, meias arrastão, globos espelhados e fumaça de cigarro —o grude das boates vazava para dentro de sua lente.

É justo falar em arquitetura. Mesmo no calor da hora, na pista do Studio 54, em Nova York, ou no Madame Satã, em São Paulo, pontos que amava fotografar, Toledo enquadrava seus retratados numa espécie de geometria do hedonismo, em que cortes acidentais, a sujeira do momento, também alicerçava a composição. Era o erro domado.

A fotógrafa brasileira Vania Toledo - Reprodução

Ou escancarado. Toledo inaugurou com seus flagras da noite, em especial a noite do jet-set, o olhar torto, fuliginoso que fazia o público adentrar a cena —aquilo que mais tarde fotógrafos como Juergen Teller, Mario Testino ou Terry Richardson só encenariam diante da câmera. Tudo está ao alcance da vista, não existe privacidade e decoro na visão desabrida dessas horas.

Os VIPs ali, uma Gal Costa ainda garota, taça de champanhe na mão, Cazuza e Caio Fernando Abreu se abraçando, um Andy Warhol lívido como estátua de cera, brilham num fulgor cúmplice. Estão à vontade diante de uma fotógrafa nunca distante ou blasé.

Essa relação tátil da artista com aquilo que retratava dava às imagens a elasticidade magnética de um quadro transbordante —não vemos a festa, estamos na festa. Toledo fez dos clarões do baile, do arrepio febril no choque entre os corpos e até da ressaca torpe do dia seguinte um estado em suspensão nessas imagens que operam como vivo testemunho de tempos idos.

Ela falava em se libertar dos fantasmas. Eram muitos naquelas décadas de 1970, 1980 e 1990, o tempo que passou nas boates antes de se desiludir com uma noite que deixava de ser festa fervilhante para se tornar performance publicitária, de celebridades cumprindo protocolos de marketing.

Depois de um início de carreira como fotógrafa de palco nos teatros, Toledo buscava tudo menos qualquer traço de encenação nesses retratos de festa. Era a garota amarrando uma tira da sandália, outra que derramou o drinque no vestido, o cetim manchado até o fim da noite, o borrão dos reflexos no espelho engordurado, as marcas no chão em volta dos corpos suados, torcidos em êxtase.





Toledo viu a estreia da minissaia na pista da Aquarius, frequentou a Gallery, a Pauliceia Desvairada e até o mítico Studio 54 sempre com uma câmera que cabia na bolsa, pequena como a palma da mão e com um flash potente. O ponto de vista, como aquele que estende ao público, é de alguém vivendo o mesmo momento, entregue à música, ao toque glacial de um dry martini.

Sua aversão ao fake e o apego à verdade áspera das coisas, de saias de lamê deslizando sobre coxas bronzeadas ao fino cristal das taças, também está numa vertente mais intimista e menos conhecida de sua obra, as séries de ensaios que fez com homens nus.

Num trabalho que chocou à época, Toledo fotografou amigos famosos e não famosos pelados em suas casas, entre eles Caetano Veloso e Ney Matogrosso. Noutro ensaio, com modelos, retratou o corpo masculino como frágil paisagem assimétrica, retraída, uma visão que desconstrói qualquer mito de virilidade —eram homens que se deixaram desbravar por uma fotógrafa tão voraz quanto incansável.

Vania Toledo morreu nesta quinta, aos 75, em São Paulo. Ela deixa um filho, Juliano.


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