April 3, 2020

Diário de confinamento: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'




Susana Bragatto 

Dia #16 – Barcelona – Domingo, 29 de março. Cena: a orquídea na sala está abrindo sua segunda flor.

Ok, agora bateu claustrofobia.
No último sábado à noite, o governo espanhol anunciou a radicalização do confinamento coletivo a partir desta segunda-feira pela próxima quinzena, ou seja, até depois da Páscoa —por enquanto. Levamos já 16 dias em casa.
Apenas serviços essenciais devem seguir em atividade, à parte os ‘teletrabalhos’ já em curso. Saem de cena obras, comida em domicílio e mesmo os cabeleireiros, que estavam liberados na primeira quinzena de isolamento por questões “de higiene”.
A Espanha encerra a segunda semana de confinamento com quase 5.000 mortes, contra 1.720 na semana anterior, e quase 79 mil contágios, sendo 6.500 (oficiais) só nas últimas 24 horas.
Vocês aí no Brazel estão começando o confinamento. Eu diria: preparem-se psicologicamente, respirem fundo, conectem-se com a necessidade de coordenar atitudes, e não com medos.
Existe uma diferença abismal entre decidir não sair e não poder sair.
Tento equilibrar minha cabecita entre palavrões-invasivos-do-dia como confinamento vertical horizontal diagonal, preocupações reais com contas gerais & futuros e a crescente irritação com coisas ridículas —o ruído da maquineta de fazer espresso em casa, as crianças correndo no andar de cima e o louco que despertou a vizinhança nesta manhã gritando da rua: "TÔ ANGUSTIADOOOO!!! FERROOOOUUU!! VAMOS TODOS MORREEEEER!".
De novo, e sempre, tenho consciência de que vejo (ou pressinto, porque o que é ver, de fato?) a realidade do alto do meu privilegiado quarto andar de um edifício de classe, diria, média no centro de uma capital europeia.
Em discurso que anunciou a ampliação do confinamento a partir desta semana, o presidente do governo Pedro Sánchez fez um apelo à União Europeia por ajuda. Em vários estados, os hospitais estão atingindo o limite de suas capacidades.
Ao mesmo tempo, acompanho as notícias dodecafúnzicas e comentários angustiados de amigos aí no Brazel. Tudo isso encaixotada e pensando se posso me virar um dia mais sem sair da toca, já que cada incursão ao exterior é uma operação de guerra.
Primeiro, as luvas de látex e a máscara. A máscara me dá angústia com o bafo quente circular, não sei vocês. É um “modelo” básico surrado que eu já tinha de quando fazia quimioterapia (papo pra outro dia. Fazemos um Zoom coletivo pra compartilhar nossas histórias? Teremos tempo).
Saio do edifício com cautela nível jogadora-de-paintball (que doce metáfora). Um idoso vem na minha direção: desvia, Susana, rápido! Parece o videogame da galinha. Não sei se é do tempo de vocês.
Passo na quitanda: o vendedor, um jovem afegão simpático que cresceu em Barcelona, me recebe com efusividade pela primeira vez na nossa história de breves encontros: “Ei, tudo bem? Que BOM ver você!”.
Chegando ao supermercado, fila de cabisbaixos. Diligentemente esperando o 1x1 (um sai, outro entra). À entrada, um funcionário com figurino de astronauta sinaliza o álcool em gel. Mostro minhas luvas. “Pfffode pfffassar pfffor fffcima”, escuto ele dizer por detrás do ffcapuz bfffranco.
Gôndola das cervejas. Distraída, estendo a mão pra pegar uma clara. Não gosto de cerveja, mas sei lá. #DesejosdeQuarentena.
Não reparo que uma mulher havia chegado antes à gôndola e observa as garrafas e latas transfixadas. Dá um salto olímpico e vai parar do lado dos cereais.
Grita P*****! A DISTÂNCIA DE UM METROOOO! E eu demoro microssegundos pra perceber que é comigo. Eu infringi uma linha invisível que nos separa a todos. Bad, bad girl.
Mesma coisa na fila do peixe. Eu me inclino pra ver as ofertas (previsivelmente, alguns preços têm oscilado). A senhora à minha frente recua, os olhinhos acima da máscara soltando chispas de reprovação.
Já vejo o dia em que a gente vai ganhar habilidade extrassensorial pra ler sentimentos, intenções, mensagens, futuros nos olhos das pessoas mascaradas.
Voltando à casa, toda a liturgia ao contrário: no hall de entrada, tirar máscara, tirar luvas, sapato, álcool em gel, limpar compras, e, se necessário, botar roupa pra lavar. Mel dels.
Um vizinho bota heavy metal no último volume. Cinco minutos depois, silêncio. Alguém teve misericórdia, ou o aparelho de som estourou.
Ouço uma voz do outro penhasco das janelas infinitas: “Eeeeh, por que parou??? Tava legal!”.
E penso em todos esses belos vídeos de concertos e cantores de ópera presenteando os ouvidos dos vizinhos com espetáculos impromptu das sacadas.
Se eu vivesse do lado, também aplaudiria e me emocionaria —até semana passada. Mas exatamente hoje, e isso porque também sou cantora, quem sabe gritaria, numa catarse como a do homem louco na rua: MISERICÓRDIA, VÃO TOCAR NUM LIVE DE INSTAGRAM!!!! Em Lá 440 Hertz, pra entrar no tom.

FOLHA DE SÃO PAULO 

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