March 28, 2020

Os cúmplices

Vocês sabiam o horror que estavam apoiando, vão se f*der todos, desabafa professora e socióloga Esther Solano


ESTHER SOLANO


O fascismo nunca se mantém em
pé sozinho. Necessita de cola-
boradores, de auxiliares abne-
gados que fazem a máquina da destrui-
ção funcionar com eficácia. Durante es-
te primeiro ano da era Bolsonaro, e ca-
da dia um pouco mais experientes na
dinâmica do poder fascistoide, foi pos-
sível identificar vários tipos de perso-
nagens colaboracionistas. Eu sempre
os divido em categorias diferentes, pois
são tipos humanos que pertencem a di-
versas espécies e que, talvez em outras
circunstâncias, não estariam tão empe-
nhados em um trabalho comum, fazer
girar a roda do ódio. Uns por serem fas-
cinados pelo ódio, outros porque lhes
convém, outros por subserviência, ou-
tros por medo... Cada um com uma mo-
tivação própria, com caraterísticas es-
pecíficas, mas todos no mesmo barco.




Primeiro estão os fascistas clássicos,
aqueles movidos pelo ódio, aqueles que
encontram paixão e motivação no ani-
quilamento do outro. Eles têm um mo-
tor no coração movido a ódio. Você bota
gasolina num carro, não? Bote ódio num
fascista e ele alcança 100 quilômetros por
hora em segundos. Sentem tesão na de-
sumanização alheia. Aposto que pensa
em vários nomes que orbitam ao redor
do bolsonarismo e que encaixam neste
protótipo horrendo. Se acreditássemos
que o ser humano tem alma, diríamos
que estes carecem da mesma, que têm um
buraco no lugar. Agora, os fascistas-raiz,
os hardcore, têm uma coisa positiva, são
identificáveis. O ódio deixa marcas tão
claras no rosto que eles parecem acen-
der um letreiro: “Cuidado, sou fascista”.

Há uma segunda categoria, esta talvez
mais terrível que a primeira, a dos opor-
tunistas. Mais terrível porque, diferen-
temente do cartaz de néon que os fascis-
tas carregam sobre a testa, os oportunis-
tas escondem-se nas sombras, são dissi-
mulados, camuflam-se como um animal
faminto que aguarda, oculto, para dar o
bote na presa. Também tenho certeza de
que você consegue reconhecer vários de-
les por perto. Para os oportunistas, não
importa nada além do próprio benefi-
cio. Como posso lucrar com a situação? O
que ganho? São as perguntas que impor-
tam. Venderiam a mãe a preço rebaixa-
do no mercado, se fosse vantajoso. A eles
não importa o rastro de aniquilamen-
to. Aumentou o número de mortos pe-
la polícia? Cresceram o os feminicídios,
a violência contra indígenas, a censura?
Danos colaterais acontecem. Os oportu-
nistas têm florescido desde o impeach-
ment de Dilma Rousseff. Incontáveis.

Depois há os Adolf Eichmann, aque-
les que, segundo Hannah Arendt, sim-
plesmente cumprem seu dever, seguem
ordens. Não questionam, obedecem. É
uma necro-obediência, uma obediência
que mata, burocraticamente, sem per-
guntas. O sistema fascista ou fascistoi-
de funciona porque existe gente que se
submete voluntariamente, com confor-
mismo hierárquico e em total ausência
de juízo moral ou inquietações éticas,
às obrigações impostas pelo trabalho.
São desumanizados, capazes de matar
por meio de uma canetada e nem sequer
perceber que estão matando. Eu fiz por-
que alguém mandou. Pronto, sem mais.
Há uma quarta categoria, a dos covar-
des. São os conscientes do que significa a
desolação fascista, as consequências de
viver governados pelo ódio. Talvez sin-
tam, inclusive, a dor e o sofrimento emo-
cional e psíquico provocados, mas não
são capazes de levantar a voz, de reagir,
de falar. O medo é terrível, nos imobiliza,
nos impede de tomar qualquer atitude.
Bloqueia a vida. Lembro-me de uma con-
versa com um jovem negro numa favela
de São Paulo, que me dizia: “Nós, jovens
pretos, não temos medo do fascismo, a
gente enfrenta todo dia, a gente enfren-
ta a morte todo dia, são vocês, brancos de
classe média, que nunca sofreram como
nós sofremos, aqueles que têm medo”.

Ao lado desses medrosos há uma va-
riedade específica, aqueles que não se
posicionam, os famosos “em cima do
muro”. Movidos por arrogância moral,
superioridade intelectual, ou talvez por
mediocridade humana mesmo, não são
capazes de denunciar, claramente, sem
nuances, sem meios-tons, a barbárie. A
questão com a barbárie é que ela não co-
nhece meios-termos. Ela mata, extermi-
na, estupra, elimina. Estes são verbos
que não se conjugam parcialmente, são
totais, completos, e por isso a barbárie
deve ser criticada sem fissuras, de forma
coesa, completa e contundentemente.

O fascismo é uma engrenagem com-
plicada. Cada um desses tipos humanos
colabora de diversas formas e com diver-
sas intensidades, mas todos estão pre-
sentes no mecanismo do ódio. Talvez o
trabalho mais importante na vida seja
tentar nunca se encaixar em um deles.


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