February 25, 2020

Resistência à gourmetização do carnaval




Aloy Jupiara


Tatalondirá, os tupinambás da Carioca, Maria Conga, Jesus Cristo, Elza Soares, capoeiras, Sebastião (o santo e o rei), Lamartine Babo, rezadeiras, entre outros, passam na Marquês de Sapucaí neste carnaval numa procissão foliã como ato de resistência. Eles são enredos de escolas de samba do Grupo Especial e da Série A, agremiações que enfrentam uma crise de recursos, mas outra, mais grave, de reconhecimento e identidade.

Os últimos anos viram o esgarçamento das relações entre o poder público e as escolas, tendo como centro o corte da subvenção municipal aos desfiles. Não adianta culpar apenas a crise econômica. Esta não é a primeira vez que o país vive dificuldades. Trata-se de uma postura pensada, uma decisão política, que não enxerga na cultura popular das escolas um espaço privilegiado de integração social da cidade. A prefeitura escolheu dizer não às escolas, alegando que precisava priorizar os recursos. Esse mesmo argumento poderia e deveria justificar o apoio público a uma manifestação que é patrimônio cultural brasileiro e move a economia do Rio, gerando empregos.

Mas há o outro lado. A crise não nasceu no corte de recursos. Quando a primeira redução foi anunciada pelo prefeito Marcelo Crivella, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) chegou a afirmar que isso inviabilizaria o desfile. Ficou provado que não era bem assim: as escolas  
desfilaram. Ninguém aqui está dizendo que é fácil botar um carnaval na rua. Contudo, é preciso autocrítica da Liesa e de dirigentes das escolas sobre como o desfile foi conduzido nos últimos anos.

A Sapucaí se gourmetizou. Com os preços cobrados pelas arquibancadas e frisas nos melhores pontos da avenida, o que chamam de o maior espetáculo da Terra afastou da Passarela em especial a classe média baixa e os mais pobres, aqueles amantes do samba que cantavam junto, vibravam, eram pura festa. O desfile perdeu ao concentrar-se em um evento turístico.

É uma tristeza quando, ali pelas 2h da manhã, às vezes antes, se veem grandes vazios nas arquibancadas centrais, porque os turistas já foram embora. Para eles, que não mantêm um vínculo afetivo com o samba, assistir a duas ou três escolas é suficiente.

Excluído, o povo do Rio ocupou em massa as ruas da cidade nos blocos e bandas, enquanto a Sapucaí “encolheu”. Os que administram o desfile “apequenaram” as escolas diante do carioca. O desfile perdeu valor e reconhecimento de boa parte da população da cidade que, agora distante das agremiações, ignorou as críticas ao corte da subvenção.

Surgem aí visões mirabolantes de salvação: reduzir ainda mais o número de escolas por noite, ou o tempo de desfile, porque “ninguém aguenta um desfile tão longo”. Quem é esse “ninguém”? O que mudou no público das escolas que, anos atrás, ficava de pé, sob o sol, vibrando ao som das baterias, chorando com uma ala das baianas, agitando os braços suados? Já ouço as críticas: “Esse tempo não volta, isso é romantismo”. Então, farão o quê? Transformar o desfile num Rock in Rio? Isso é sério?

Não se trata de romantismo, mas de respeito aos fundamentos das escolas, às suas matrizes religiosas e sociais, ao povo da cidade, às tradições de solidariedade e comunhão que as organizaram, que as levaram a descer os morros e reconquistar as ruas do Centro, das quais as populações pobres, na maioria negra, tinham sido expulsas pelas reformas urbanas do começo do século passado. Samba é também resistência. Estão tentando matar isso.

A burocracia do samba e o poder público parecem, nessa hora, estar do mesmo lado.
Ficam, do outro lado, os artistas criadores dos enredos, os artesãos, decoradores e costureiras, os compositores e ritmistas, as baianas e os passistas, que abrem seus caminhos com luta e alegria, uma festa, um desafio, um ritual. Podem tentar, mas não vão destruí-los. A rua é mais forte. Os donos da rua se levantarão.

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