Heloisa Murgel Starling
Imagine três inimigos históricos: Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart. Lacerda usou todos os pretextos a seu alcance para melar a posse de Kubitschek na Presidência da República, em 1955. Também atiçou as rebeliões comandadas por oficiais da Aeronáutica contra o governo de JK — Jacareacanga (1956) e Aragarças (1959) —, moeu o desempenho presidencial de João Goulart e foi a mais incendiária liderança civil do golpe militar de 1964.Imagine, agora, uma ideia impensável. Entre os meses de outubro de 1966 e abril de 1968, os três personagens que se abominavam decidiram conversar, encontraram uma linguagem comum e acertaram uma aliança — batizada “Frente Ampla”. Jango era uma das principais lideranças do campo das esquerdas; JK estava “à esquerda da direita e à direita da esquerda”, como se autoproclamavam seus correligionários, ao centro do espectro político; Carlos Lacerda capitaneava a fina flor do conservadorismo no país.
O golpe militar de 1964 deu início a um governo sustentado por um formato abertamente ditatorial — vale dizer, que não é limitado constitucionalmente — e avançou contra os expoentes do regime anterior. Juscelino, acusado de corrupção, estava refugiado em Lisboa; Jango, no exílio em Montevidéu. Ambos com direitos políticos cassados.
Os três personagens passaram a vida execrando uns aos outros e tinham a perder com a aliança política: “O doutor Getulio sairá do seu túmulo para nos condenar”, esbravejou Leonel Brizola, que não quis saber de conversa.
“Era um projeto perigoso demais e não podia durar: com um decreto duro, o general Costa e Silva extinguiu a Frente Ampla em 5 de abril de 1968”Os militares jamais perdoaram Carlos Lacerda, a quem consideraram, desde aquele momento, um traidor: em dezembro de 1968, seu nome encabeçou a lista de cassações do AI-5 e ele foi preso. Nunca mais voltaria à vida política.
Com o tempo, a Frente Ampla acabou quase esquecida; virou um comentário breve na historiografia sobre o período. Mas, vista com olhos de hoje, talvez ela ainda se preste a oferecer algo essencial sobre o entendimento da democracia no país.
Numa situação de crise como a que vivemos atualmente, sobretudo nas circunstâncias em que a crise atinge o pensamento, a política e os valores, uma alternativa é recorrer ao passado para pensar com ele, sem se deixar dominar pela ilusão de que no tempo cronológico existe lugar para a repetição — afinal, o tempo não é retilíneo e a história é ingovernável.
Virtude do entendimento, a tolerância só existe no encontro entre os divergentes. Significa a descoberta respeitosa do outro e se materializa no diálogo entre duas ou mais pessoas para que germine a prática democrática.
Não sei a opinião do leitor. Mas desconfio de que esteja na hora de nós começarmos a imaginar ideias impensáveis no Brasil.
Heloisa Murgel Starling, historiadora e cientista política, é professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Se aliar com a direita é o caminho mais rápido pra fortalecer a extrema-direita.
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