January 19, 2020

Trabalhador em liquidação






INdiferente ao recorde mun-
dial de concentração de renda
no 1% mais rico e ao aprofun-
damento da pobreza extrema
no País divulgados neste mês,
o governo decidiu dobrar a do-
se da reforma trabalhista do
governo Michel Temer, com medidas que
tendem a agravar ainda mais a situação
social e econômica. Só para lembrar: atual-
mente, 3,2 milhões de brasileiros buscam
emprego há mais de dois anos e a taxa de
desocupados permanece congelada em
elevadíssimos 12%.



A Medida Provisória nº 905, lançada
na segunda-feira 11, aprofunda a refor-
ma trabalhista de 2017 no que ela tem de
pior, pois autoriza o empresário à flexi-
bilização máxima de normas e direito
para submeter por completo o traba-
lhador às oscilações da produção dita-
das pelo ritmo de consumo dos seus pro-
dutos e serviços. Ruim para o conjunto
da sociedade, péssima em particular pa-
ra comerciários e bancários, que terão
jornada estendida e se verão obrigados a
trabalhar no fim de semana. Não ajuda-
rá a recuperação do País, preveem espe-
cialistas, pois não há precedente de que
regressões na proteção do trabalho con-
sigam reverter uma situação de estagna-
çao, antes pelo contrário


"Incapazes de criar vagas na quantidade
e com a qualidade necessárias, as
medidas devem promover a rotativi-
dade do trabalho e estimular a preca-
rização, alerta Clemente Ganz Lúcio,
diretor-técnico do Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos, o Dieese. A refor-
ma, diz, cria a modalidade de contrato
de trabalho precário, intensifica a jor-
nada, o que deve resultar em aumento
do desemprego, enfraquece os meca-
nismos de registro, fiscalização e puni-
ção às empresas infratoras, fragiliza as
ações de saúde e segurança, reduz o pa-
pel da negociação coletiva e da ação sin-
dical, ignora o diálogo tripartite como
espaço para mudanças na regulação do
trabalho e, por fim, beneficia os empre-
sários com uma grande desoneração em
um cenário de crise fiscal, impondo aos
trabalhadores desempregados o custo
de uma verdadeira bolsa-patrão.

“Há um esforço monumental para fa-
cilitar a contratação por parte da empre-
sa e diminuir a possibilidade de o traba-
lhador ter a proteção necessária. Os rela-
tos das direções dos sindicatos dão con-
ta de uma dificuldade enorme nas nego-
ciações coletivas, que se tornaram muito
mais duras. Há também um movimen-
to do setor empresarial de incentivar os
trabalhadores a se desvincular dos sin-
dicatos, recusando-se a recolher a con-
tribuição sindical na negociação coleti-
va”, sublinha Ganz Lúcio.










Alardeado pelo governo, o contra-
to “Verde e Amarelo”, voltado para jo-
vens com idades entre 18 e 29 anos, na
modalidade de primeiro emprego e
com prazo de 24 meses, prevê desone-
ração da folha com eliminação quase
completa dos encargos sociais e traba-
lhistas pagos pelos empregadores, en-
tre eles o adicional de periculosidade,
o FGTS e a multa rescisória, que tam-
bém constituem salário, ainda que diluí-
do no tempo. Contraditoriamente, as-
sinala o Dieese, a MP “estabelece isen-
ções para as empresas mesmo em ce-
nário de crise fiscal, além de descons-
truir o direito à remuneração das fé-
rias, à gratificação, ao 13º salário e ao
FGTS, incorporando-os ao pagamen-
to mensal”. Seu efeito, acrescente-se,
parece incerto, pois, embora desonere
substancialmente a empresa, fere vá-
rios artigos da Constituição e aumenta
o risco de judicialização, problema en-
frentado também em 2006 no governo
Lula com o programa para obtenção do
primeiro emprego.



Outro dispositivo, a regu-
lamentação da participa-
ção nos lucros e resulta-
dos, descarta os sindica-
tos e reforça esse compo-
nente dos rendimentos. Para a empresa,
fica mais barato porque sobre essa par-
te ela não paga Previdência, direitos tra-
balhistas, contribuições para o Sistema
S e os custos da folha de pagamento. Há
ainda um efeito muito negativo de fra-
gilização dos fundos públicos. A seguri-
dade social, por exemplo, tem uma fonte
fundamental dos seus recursos vincula-
da às folhas de pagamento.



Quem espera um aumento significati-
vo do emprego a partir das mudanças na
área do trabalho corre risco de frustrar-
-se, mostra uma retrospectiva das medi-
das adotadas no governo Temer. “A re-
forma de 2017 seguiu um receituário que
indicava a inversão da lógica de proteção
do trabalho, um leque de vantagens pa-
ra o empregador organizar seu negócio
com múltiplos e flexíveis contratos e jor-
nadas, opção por uma concorrência pa-
ra baixo, ou seja, ganha mais quem con-
segue baratear a mão de obra, exclusão
do sindicato do sistema de proteção e de
formação do preço da mão de obra pe-
las dificuldades que cria para a negocia-
ção coletiva, enfraquecimento do siste-
ma de fiscalização, criação de obstácu-
los para o acesso à Justiça do Trabalho
e de mecanismos de quitação periódi-
ca de direitos. Ou seja, ia na contramão
do esforço que a OIT tem realizado pa-
ra difundir a ideia do trabalho decente.
Outros países que seguiram por esse ca-
minho, Espanha e Portugal, entre 2008
e 2012, não geraram empregos com esse
tipo de reforma”, critica o advogado Jos 


Eymard Loguercio. A MP da Liberdade
Econômica, lembra, tentou incluir a cap-
tura de todo o sistema jurídico pela lógi-
ca econômica da acumulação de rique-
za por poucos, em que o direito não ser-
ve mais como limite. A segunda etapa
da reforma trabalhista, com a MP 950,
radicaliza a flexibilidade da jornada de
trabalho, tornando-a absoluta, e decre-
ta a supremacia do contrato individual
de trabalho sobre qualquer outra moda-
lidade legal ou negociada.


















 




A escalada de supressão de
direitos atende às pres-
sões dos donos das ca-
deias varejistas Havan,
Riachuelo e Polishop,
entre outras integrantes do núcleo du-
ro empresarial que apoia Bolsonaro, e
aos reclames dos bancos e das multina-
cionais em busca permanente por redu-
ção de custos, mas há contradições. “Do
ponto de vista ideológico, os empresários
querem a liberdade total. Agora, do pon-
to de vista funcional, nem sempre isso é
o mais adequado. Conversamos com res-
ponsáveis por RH de grandes empresas
químicas e metalúrgicas sobre os efeitos
da reforma de 2017 e constatamos que,
apesar de a solução de individualização
dos contratos ser eventualmente lucra-
tiva a curto prazo, eles preferem um pro-
cesso negociado coletivamente por faci-
litar a organização contratual dos recur-
sos humanos. Fazer uma gestão mais co-
letiva garante continuidade do processo
e a negociação ajuda exatamente nisso.
Como disse um dos entrevistados, ‘o sin-
dicato é um mal necessário para a gente’”,
sublinha o economista Dari Krein, pes-
quisador do Centro de Estudos Sindicais
e Economia do Trabalho, do Instituto de
Economia da Unicamp.



Convém não superestimar, portanto,
a capacidade de o governo desorganizar
as empresas com fragmentação exces-
siva dos contratos de trabalho. “Nossos
estudos anteriores mostram que,
apesar da queda do número de nego-
ciações coletivas, não ocorreu a terra
arrasada que se esperava e nem todos
os temas da reforma de Temer acaba-
ram incorporados. As negociações es-
tavam de fato um pouco fragilizadas,
mas continuaram a preservar os di-
reitos inscritos anteriormente e es-
sa é a tendência, ao menos até agora.
Obviamente, com algumas conces-
sões em pontos mais favoráveis às
empresas, principalmente quanto à
jornada de trabalho. É possível prever
uma estratégia dos sindicatos de con-
tinuar repetindo as condições ante-
riores criadas pela reforma de Temer,
quando ocorreu mais a manutenção
do que a alteração das cláusulas con-
tratadas. Essa é a minha leitura”, su-
blinha Krein.



O esmagamento dos sindicatos e os
ataques à Justiça do Trabalho são es-
senciais, entretanto, às reformas de
Temer e Bolsonaro. “Houve governos
anticorporativismo e governos pró-cor-
porativismo, mas nunca se viu uma re-
ação de tamanha envergadura à estru-
tura das relações de trabalho criada a
partir de 1930. O objetivo é estabelecer
uma nova forma de organização de tra-
balho que não passa pelo corporativis-
mo. Está-se caminhando basicamente
para relações individualizadas de tra-
balho, ausência do Direito do Trabalho.
Estão destruindo a Justiça do Trabalho”,
avalia o economista Marcio Pochmann,
presidente da Fundação Perseu Abramo.


















 




Estimulado, ao que parece,
por uma melhora discre-
ta de indicadores parciais
e decidido a fazer de conta
que não vê aspectos essen-
ciais como a estagnação do crescimento
e a piora acelerada das contas externas,
o governo, com a reforma trabalhista,
pretende comprimir o emprego, a ren-
da e o mercado consumidor e consolidar
a posição do Brasil como país competiti-
vo apenas na faixa inferior e menos so-
fisticada do mercado global.



“A reforma trabalhista de Temer e
Bolsonaro enquadra-se numa estraté-
gia que a literatura econômica chama
de ‘estratégia de competitividade espú-
ria’, de rebaixamento de custos por meio
da redução de direitos sociais e do cus-
to do trabalho. É a busca de competiti-
vidade em setores nos quais o custo do
trabalho é mais importante, por serem
mais intensivos em mão de obra, caso
dos bens-salário”, ressalta o economis-
ta Denis Maracci Gimenez, diretor do
Cesit, da Unicamp. Os bens-salário são
as mercadorias indispensáveis para a re-
produção da força de trabalho produzi-
das, de modo geral, por indústrias menos
intensivas em capital e em tecnologia
dos setores de alimentos e bebidas, têx-
til, de vestuário, couro e calçados, ma-
deira e móveis, artefatos de plástico, hi-
giene pessoal, perfumaria e cosméticos.



“É uma estratégia que, se for bem-su-
cedida, posicionará o Brasil para concor-
rer com os países estabelecidos nesses
setores, particularmente os asiáticos pe-
riféricos articulados ao poder da China,
a exemplo de Bangladesh e Vietnã, aque-
les que mais produzem aqueles bens”,
analisa Gimenez. São reformas, diz,
que rebaixam os padrões de regulação
e de organização do mercado de trabalho
sem indicar nenhuma integração virtu-
osa à economia mundial. “Claramente, a
reforma trabalhista não tem nenhuma
capacidade de devolver ao País o cresci-
mento econômico, até porque não estão
no mercado de trabalho os fatores deter-
minantes da expansão da economia. O
oposto é verdadeiro.”



O mercado de trabalho, prossegue,
nunca foi um entrave para o desenvolvi-
mento. Organizado no Brasil desde 1930,
atingiu em 1980 a sua melhor situação,
com 60% de trabalhadores com carteira
assinada, e esse alto grau de formalização
em momento algum impediu que a eco-
nomia brasileira crescesse 7% ao ano, em
média, entre 1950 e 1980, quando o Brasil
se tornou o maior exemplo de sucesso de
desenvolvimento de um país periférico,
com uma estrutura econômica muito si-
milar àquela das nações desenvolvidas.




















 




A reforma é mais um es-
forço, portanto, para
distanciar o Brasil do
padrão dos protagonis-
tas do processo de glo-
balização, Estados Unidos e Ásia, parti-
cularmente a China, que concorrem nos
setores mais dinâmicos e tecnologica-
mente mais desenvolvidos ligados à ter-
ceira revolução industrial (da informáti-
ca, microeletrônica, farmacêutica e na-
notecnologia) e agora também da quar-
ta revolução industrial (que incorpora
máquinas inteligentes, tecnologia de big
data, comunicação de máquina para má-
quina, tecnologias de automação, robôs
inteligentes, computação na nuvem etc.).



Além da supressão de direitos, ins-
titucionalizada do ponto de vista le-
gal, há um crescente obstáculo para os
trabalhadores cobrarem os poucos di-
reitos que ainda possuem, descreve
Jorge Luiz Souto Maior, desembarga-
dor do Tribunal Regional do Trabalho
da 15ª Região, de Campinas, São Paulo.
“Gerou-se com a reforma um ambien-
te de sofrimento no trabalho que se re-
flete em demandas trabalhistas, mas de
forma muito restrita, porque a reforma
ameaçou os trabalhadores com as cus-
tas do processo. Isto é, muita gente dei-
xou de entrar com as reclamações tra-
balhistas, portanto, o volume de deman-
das subestima o aumento do sofrimen-
to no trabalho em consequência das re-
formas. Estudos revelam, porém, um
crescimento significativo de tratamen-
tos psicológicos provenientes de proble-
mas do ambiente de trabalho.” Os indi-
víduos sentem-se fragilizados, descreve
o magistrado, sem possibilidade de rea-
ção a qualquer tipo de assédio, maltra-
to ou devido ao medo de perder o empre-
go. “O maior poder do empregador faz
com que ele tente explorar mais ainda o
trabalhador. O que está na base das re-
lações é sobretudo o poder da organiza-
ção coletiva. Quando você destrói isso,
permite que simplesmente o poder eco-
nômico explore o trabalho sem qualquer
limite”, destaca Souto Maior.










Todos os trabalhadores, sem exceção,
são prejudicados pela MedidaProvisória,
mas duas categorias, a dos comerciários
e a dos bancários, são mais atingidas. A
partir de agora fica liberado no comércio
o trabalho em sete fins de semana sem
folga no sábado e no domingo. Caso des-
canse em um dia da semana, o funcioná-
rio terá de compensar na base de um por
um. Não receberá pagamento adicional
e a empresa, que antes tinha de negociar
com o sindicato esse tipo de mudança, es-
tá livre para dispensar a entidade. As jor-
nadas dos bancários passam de 6 para 8
horas diárias e eventualmente incluirão
os sábados. A medida atinge o descanso
remunerado das duas categorias.



A jornada inglesa, na qual o descan-
so coincide com o domingo, é funda-
mental, entretanto, para garantir uma
vida socialmente saudável, conside-
ra Krein. Vincula-se à ideia de que os
indivíduos precisam de tempo para o
convívio familiar e com os amigos. “Se
cada um tem uma jornada diferente, es-
ses espaços de convivência social se re-
duzem fortemente. É importante lem-
brar que a regulamentação da jornada
de trabalho foi um elemento estrutura-
dor de todas as políticas públicas, como
a creche, a escola, o transporte, a saú-
de”, sublinha o pesquisador.









A reforma trabalhista de
Michel Temer turbina-
da por Bolsonaro é parte
de um projeto mais am-
plo de fortalecimento da
iniciativa privada combinado a um enco-
lhimento do Estado, analisa Pochmann.



“Eu acho que eles têm um projeto geral
para a sociedade, uma perspectiva mais
ampla, um ataque central ao Estado e
com ações pensadas de forma setoria-
lizada, mas concomitantes. O gover-
no atua em todas as áreas e a oposição,
quando consegue reagir, o faz de forma
parcial, localizada, em lutas fragmenta-
das contra o desmonte da Petrobras, o
corte de gastos na educação, na saúde,
em defesa do meio ambiente. Enquanto
o governo, no meu modo de ver, é estra-
tégico, organizado, tem uma visão do to-
do, a oposição permanece fragmenta-
da, não tem projeto alternativo. As lu-
tas são focalizadas, pontuais. Estamos
diante da maior contrarrevolução libe-
ral pós-1930. O projeto deles é ambicio-
so. Acredito que o objetivo é voltar ao
que era a presença do Estado durante o
governo militar, algo entre 21% e 22% do
PIB. Hoje, o Estado responde por 40%
do PIB. Isso aí possivelmente está fada-
do ao fracasso, mas por hora estamos no
momento em que destroem o que existe
para ver se criam algo no lugar.”










O emprego que mais cresce no admirá-
vel mundo novo do trabalho radicalizado
por Bolsonaro e Guedes é o dos entrega-
dores ciclistas de aplicativos. A pesquisa
Aliança Bike de 2019 mostra que, em mé-
dia, eles têm 24 anos, trabalham 9 horas
e 24 minutos por dia e recebem 936 reais
por mês. Mais da metade, exatos 57%, pe-
dala de segunda a segunda. Será o futuro?
 

MARCIO POCHMANN: “TRATA-SE
DA MAIOR CONTRARREVOLUÇÃO
LIBERAL DESDE OS ANOS 1930”






 








CARLOS DRUMMOND


Carta Capital

















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