December 12, 2019

A sociedade civil obstruída

O Mecanismo de Combate à Tortura é um conselho que quase foi esvaziado por Jair Bolsonaro. Foto: Diego Vara / Reuters

 
Foi numa live de 7 de outubro de 2018 que o então candidato Jair Bolsonaro, acompanhado de Paulo Guedes, anunciou: se eleito, colocaria “um ponto final” em “todos os ativismos” no Brasil. Naquele dia, a frase fez gelar a espinha de integrantes da sociedade civil em todo o país. O que Bolsonaro queria dizer com aquilo? O que ele entendia como “ativismos”? Seria uma ameaça vazia de quem queria passar a ideia de que “ativismo” e “esquerda” são sinônimos? Ou haveria algo de concreto pela frente? No primeiro dia de governo, o Mito cumpriu a promessa: editou uma medida provisória estabelecendo que a Secretaria de Governo seria responsável por controlar e supervisionar as organizações da sociedade civil — o texto depois seria alterado no Congresso, graças à mobilização lá dentro. Os dez meses de governo trouxeram outras más notícias para o Terceiro Setor. Os conselhos de formulação e fiscalização das políticas públicas, que tratam de temas diversos como drogas, combate à tortura, direito de crianças e adolescentes e até acidentes com óleo, foram afetados. Uns foram extintos (como o do óleo), outros viram sua participação social ser diminuída ou penam por não terem verba para atuar da maneira devida. Embora a própria eleição de Bolsonaro tenha sido em parte fruto de um intenso ativismo — nem sempre comprometido com a democracia, vá lá, mas ativismo —, a canetada presidencial já diminuiu a capacidade da sociedade civil de influir e fiscalizar o Executivo. Agora, o próprio Terceiro Setor se organiza para tentar diminuir o impacto dessa ameaça à democracia como um todo.

Bolsonaro nunca teve muita simpatia pelo papel desempenhado por essas organizações, vistas por ele com os contornos da conspiração — na linha de entendimento olavista — de que são financiadas por metacapitalistas internacionais à George Soros. A atuação delas visaria apenas ao próprio interesse, na tentativa de minar a soberania dos países. Parte dos militares também comunga da paranoia, especialmente para com as voltadas ao meio ambiente, sem apresentar evidências que embasem a suspeita.

A ameaça aos conselhos tem acontecido de diferentes maneiras. O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), protegido por uma lei específica, está acéfalo há três meses. Damares Alves deliberadamente não nomeia um coordenador para ele. “Temos dificuldade para comprar passagens, nos comunicar com o ministério e com outros órgãos do país. Nossos relatórios de missões, que detalham nossas inspeções de violações de direitos humanos, estão todos atrasados. Estamos sem articulação”, descreveu o presidente do colegiado, Leonardo Pinho.

Alguns, sem a mesma proteção em lei que o CNDH tem, diminuíram na tesoura a participação social. No Ministério da Justiça, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas perdeu 17 dos 31 assentos. Antes, a composição era de 17 representantes do governo e 14 da sociedade civil. Hoje, o governo tem 12 assentos e o Terceiro Setor dois. O Conselho Nacional do Meio Ambiente tinha 96 assentos e, por um decreto de Bolsonaro, agora tem 23. Mas, em meio à mudança, aumentou o espaço do governo e diminuiu o da sociedade civil. No Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, outro decreto presidencial, de junho, demitiu 11 peritos encarregados de apurar denúncias de tortura em prisões, hospitais psiquiátricos e asilos de todo o país. Uma decisão da Justiça Federal no Rio de Janeiro restabeleceu os 11 cargos. Graças ao colegiado, o país soube, em setembro, que agentes da força-tarefa federal que atua em presídios do Pará estavam envolvidos em casos de tortura. Bolsonaro chamou as denúncias de “besteira”.

Conselhos não mostram resultado do dia para a noite. Para o bem e para o mal, é um trabalho que demora a aparecer. A construção da política pública é resultado de um vaivém de propostas e debates. Mas não existe democracia madura no mundo em que a sociedade civil não participe dessas formulações — e não há nada de esquerdismo ou excesso de burocracia nisso.
“O barata-voa é tamanho que nem o próprio governo sabe informar quantos colegiados extinguiu até agora”
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Em abril, no decreto editado nos 100 dias de governo, Onyx Lorenzoni falou vagamente de uma meta de cortar “mais de 600 conselhos”, e assim ocorreu a extinção de “conselhos, comitês, comissões, grupos, equipes” e “qualquer outra denominação dada ao colegiado”. Mas, na mesma leva em que foi extinto o estranho “grupo de trabalho do Centro de Emergência de Computação”, também foi encerrada a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil.

Há duas semanas, em São Paulo, num encontro do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), entidade que reúne filantropos, fundações e institutos de grandes empresas que colocam dinheiro em projetos sociais, Neca Setubal, presidente da entidade e uma das donas do Itaú, reconheceu que o cenário é ruim. “Estamos vivendo tempos difíceis na sociedade civil. Existe um campo autoritário nos atacando. É impressionante como está acontecendo uma deterioração tão rápida nos direitos civis e no ambiente político”, analisou, defendendo que as organizações não se fechem. Pelo contrário: “Deve haver uma escuta ainda mais profunda para entender o que as pessoas estão pensando. Não podemos entrar no ‘nós contra eles’”.
O presídio no Pará onde houve um massacre de presos em julho e que foi inspecionado pelo Mecanismo de Combate à Tortura. Foto: Danilo Verpa / Folhapress
O presídio no Pará onde houve um massacre de presos em julho e que foi inspecionado pelo Mecanismo de Combate à Tortura. Foto: Danilo Verpa / Folhapress
Inês Mindlin Lafer, que dirige o Instituto Betty e Jacob Lafer, também está preocupada. Ela concorda que houve redução do espaço da sociedade civil e percebe a necessidade de pôr mais recursos nas mãos do Terceiro Setor. Lafer lançará na quarta-feira 13, em São Paulo, o Confluentes, uma iniciativa para conectar pessoas interessadas em doar para projetos com causas compatíveis com as buscadas pelos filantropos. “Se você quiser um país com uma sociedade civil independente, desenvolvendo ideias e inovando nas maneiras de controlar os agentes públicos, você precisa de recursos para ter profissionais na ponta. E isso custa”, afirmou.

O cenário sombrio não é uma exclusividade brasileira. Somente 4% da população mundial vive em países com um espaço cívico de fato aberto. Pelos cálculos da Civicus, que mantém um monitor sobre o espaço da sociedade civil, em 111 países dos cinco continentes ela está sob “sério ataque”. Entre as cinco categorias formuladas pela entidade — aberto, estreito, obstruído, reprimido e fechado —, o Brasil atual é considerado “obstruído”, por ter um ambiente “fortemente contestado pelos detentores de poder”. É a mesma classificação de Israel, Hungria e Polônia — não à toa países que também têm líderes que flertam com a autocracia.

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