November 28, 2019

Nova safra de autores faz livros liberais pensados para crianças




Marcello Correa

Anya, Lucas e Antônio brincavam no sítio do Tio Frederico quando perceberam que o Galt, o cãozinho, havia sumido. O desaparecimento levou os três amigos a uma aventura pela floresta, em que descobriram que o bichinho havia encontrado uma caverna fora dos domínios do Rei Malvado, um tirano que roubava todos os meses uma parte da colheita das pessoas. Anya e o mistério do sumiço do cãozinho Galt é um livro infantil de uma nova lavra de autores interessados em difundir conceitos considerados por eles “liberais”, como a defesa do Estado mínimo e a meritocracia, para leitores abaixo de 10 anos.
A obra é uma adaptação da ficção A revolta de Atlas , lançada em 1957 pela escritora russa Ayn Rand e considerada um dos clássicos do liberalismo. Na versão para adultos, a autora descreve um futuro distópico em que os Estados Unidos se transformam em um Estado totalitário que oprime a iniciativa privada. Diante desse cenário, empresários e representantes das classes mais abastadas se refugiam fora do país. Na adaptação infantil, o Rei Malvado representa o “Estado opressor”, que abocanha o dinheiro da população por meio de altos impostos. O nome do cãozinho faz referência a John Galt, personagem principal da obra original.
O livro infantil foi lançado no ano passado, com a ajuda de uma vaquinha virtual, e faz parte de um nicho que começa a surgir oriundo da tese propagada por alguns setores da direita que acusam a literatura para crianças de ser norteada por conceitos “marxistas”. Tais ideias “de esquerda”, segundo os autores, são personificadas no mundo infantil com a concepção, por exemplo, de que chefes sempre são vilões. “Determinados valores, semeados na sociedade ao longo do tempo, entraram em colapso. Estes 56 milhões de pessoas que votaram no Bolsonaro não votaram necessariamente nele. Votaram por uma mudança, por uma nova forma de ver o Brasil. É um momento muito especial, nunca tinha visto uma iniciativa como essa no meio liberal, que pudesse levar esses tipos de valores para as crianças”, disse o advogado Giuliano Miotto, autor de Anya.

A obra de Miotto integra uma coleção chamada Turminha da liberdade . A ideia do advogado é firmar parcerias com escolas para distribuir seu trabalho. Em Goiânia, onde vive, um projeto-piloto de adoção dos livros está em marcha em duas instituições: uma escola estadual e uma ONG. Seu plano é ambicioso: visitar 90 cidades para atender ao menos 50 mil alunos ainda em 2019. Os valores a serem defendidos pelos livrinhos, segundo Miotto, são responsabilidade individual, autoestima e produtividade. Produtividade infantil, para o autor, é quando Anya, Lucas e Antônio usam um tronco para conseguir afastar uma pedra que obstruía a entrada da caverna.
Miotto apresentou sua empreitada no 30º Fórum da Liberdade, em Porto Alegre, em abril. O evento anual, patrocinado pelo Instituto de Estudos Empresariais, ligado à família Ling, teve em 2019 sua edição mais popular: mais de 5 mil participantes. Winston Ling, um dos herdeiros do clã, faz parte da tropa de choque em defesa do presidente Jair Bolsonaro desde o início de sua campanha eleitoral. Ling também foi um dos primeiros interlocutores entre Bolsonaro e seu hoje ministro da Economia, Paulo Guedes.
O Instituto Liberdade, também criado pela família Ling, integra a nova leva de patrocinadores da cultura liberal para crianças — liberal na economia, não nos costumes. Em parceria com a produtora de conteúdo Brasil Paralelo, a entidade lançou dois títulos. O carro-chefe é Os gêmeos Silva e o lápis milagroso . O livrinho conta a visita dos irmãos Marcos e Sofia a uma fábrica de lápis. É uma tradução da obra do autor americano Connor Boyack, inspirada em um clássico liberal, o ensaio Eu, o lápis , escrito por Leonard Read em 1958. O texto mostra as diferentes fases da produção do objeto, no intento de mostrar à criança conceitos como “divisão do trabalho, concorrência, comércio e livre mercado”.


“Os valores defendidos pelos livrinhos são responsabilidade individual, meritocracia e produtividade — como quando Anya, Lucas e Antônio usam um tronco para afastar a pedra que obstruía a entrada da caverna”
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A Brasil Paralelo ganhou notoriedade nos últimos meses, depois de lançar um documentário em que mostrava uma versão revisionista do golpe militar de 1964. Com base em entrevistas com nomes como Olavo de Carvalho, o filme trata o golpe como uma espécie de necessidade imperativa para livrar o Brasil da iminência de uma “revolução comunista”. Em parceria com o Instituto Liberal, a ideia da produtora é publicar, nos próximos meses, dez títulos com a mesma temática de o Lápis milagroso — dois a cada três meses —, chegando a uma tiragem de 500 mil cópias.
Matheus Bonetto Pazini, que assina a tradução, explicou que o objetivo da empreitada é criar um contraponto ao que ele considera “literatura de esquerda”. “Ela é muito forte, focada na questão da teoria de massa e na ideia de que o chefe é sempre ruim. Leva a uma interpretação marxista. Não há problema nenhum nisso, desde que haja um contraponto”, disse.
A pedagoga Anna Rennhack alertou que a disputa por ideologias na literatura infantil tem se traduzido, em alguns casos, em censura. Ela recordou que secretarias de educação municipais e escolas, recorrendo a crenças religiosas, passaram a banir de seus currículos livros que tratem de temas lúdicos, como bruxas e duendes. “As crianças se tornarão adultos sem magia, sem imaginação e sem saber como lidar com o medo e dificuldades”, disse.


Reprodução de livro paradidático infantil. Foto: Reprodução
Reprodução de livro paradidático infantil. Foto: Reprodução
Em outros casos, os pedidos de inclusão ou retirada de livros paradidáticos têm vindo dos próprios pais, influenciados pelo debate ideológico. No tradicional Colégio Santo Agostinho, no Rio de Janeiro, um grupo de pais requereu à direção da escola que tirasse do currículo o livro Meninos sem pátria , do autor Luiz Puntel, por considerar “comunista” a abordagem da obra sobre a ditadura militar.
A editora gaúcha Elaine da Silveira contou que recebeu recentemente um pedido de um pai para produzir uma obra com temática liberal. “É um pai que sentiu necessidade de conversar com os filhos sobre finanças. Ele me procurou com essa ideia. Ele é ultraliberal e não encontrou no mercado nenhum livro que pudesse dar conta disso. A ideia é aproveitar os momentos de leitura antes de dormir, aquela leitura noturna com o filho, para tratar desse tema”, contou.
Já a economista Mariana Peringer, de 40 anos, resolveu tocar o próprio projeto: uma série de quadrinhos chamada Austrinho , voltada para a disseminação de conceitos da Escola Austríaca de Economia, que tem em Ludwig von Mises (1881-1973) seu principal expoente. Peringer frequenta o Fórum da Liberdade desde os 12 anos de idade. “A mentalidade está mudando. Foi difícil para nos formarmos, e hoje precisamos de instrumentos para passar adiante esses conceitos”, disse.


Reprodução de livro paradidático infantil. Foto: Reprodução
Reprodução de livro paradidático infantil. Foto: Reprodução
Procurado, o Ministério da Educação disse que, em 2019, ainda não há edital aberto para a compra de novas obras paradidáticas. Dirigentes de escolas particulares, no entanto, veem na adoção de livros que tratem de temas “liberais” uma realidade factível. Na avaliação de Ademar Batista Pereira, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), que representa 40 mil instituições em todo o país, há uma demanda reprimida, mas é preciso ter cautela, para evitar um confronto ideológico direto. “Muitas escolas particulares trabalham essa questão de economia, de saber administrar seu dinheiro, capacidade de planejamento. Do ponto de vista do livro paradidático, o que temos hoje são livros com viés socialista, mais de coitadinho, que é mais de nossa cultura”, disse. “Tem de preparar o cara para viver no mundo. Mas que mundo? Um mundo liberal, onde você tem suas responsabilidades e, se toma uma decisão errada, vai pagar o preço. Não é culpa do governo nem culpa do chefe.”
O cientista político Renato Galeno, da instituição de ensino superior Ibmec, faz apenas uma ressalva sobre a nova lavra de autores. Segundo ele, não se pode confundir liberalismo com conservadorismo. “É impossível ser liberal e conservador ao mesmo tempo. São conceitos antagônicos.”

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