October 27, 2019

Por que Coppola e Scorsese odeiam tanto os filmes da Marvel

Thanos é coisa do passado: os novos inimigos dos heróis da Marvel são os diretores Francis Ford Coppola e Martin Scorsese, criadores de obras-primas como 'O poderoso chefão' e 'Taxi driver' Foto: Arte O Globo

Por trás de debate sobre valor artístico dos filmes de super-heróis, há uma mudança na indústria do cinema como conhecemos 


Luiza Barros

De um lado, dois senhores de 80 e 76 anos. Do outro, alguns dos super-heróis mais poderosos do cinema. Os velhinhos não teriam chance se não fossem eles dois dos homens mais poderosos de Hollywood: Francis Ford Coppola e Martin Scorsese . Diretores de obras-primas que revitalizaram o cinema americano nos anos 1970, como "O poderoso chefão" e "Taxi driver" , os cineastas entraram em pé de guerra com os "marvetes", fãs de filmes baseados nos quadrinhos da Marvel, ao criticar o valor artístico dessas produções, que atualmente dominam a bilheteria. Por trás da briga, há mais do que um confronto de gerações: há um debate sobre as mudanças e desafios que a indústria do cinema enfrenta nos últimos anos. No texto abaixo, explicamos a discussão e seus motivos passo a passo:
  • Como a treta começou: 'Marvel não é cinema'
  • Coppola entra na briga: 'Marvel é desprezível'
  • Por que Coppola e Scorsese importam
  • Por que o Universo Cinematográfico Marvel importa
  • Há espaço para todos os filmes?
  • Filmes de mafiosos são a Marvel do passado?

Como a treta começou: 'Marvel não é cinema'


Martin Scorsese durante a première de 'O irlandês' no BFI London Film Festival, em Londres Foto: DANIEL LEAL-OLIVAS / AFP
Martin Scorsese durante a première de 'O irlandês' no BFI London Film Festival, em Londres Foto: DANIEL LEAL-OLIVAS / AFP
Em entrevista  à revista "Empire" no começo de outubro, Martin Scorsese revelou que tinha tentado e fracassado em conseguir se engajar com os filmes da Marvel. Para ele, tais produções "não são cinema", e sim "parques temáticos".
“Honestamente, o que mais se aproxima deles, mesmo sendo bem feitos e com os atores fazendo o melhor dentro do possível, são parques temáticos. Não é o cinema de serem humanos tentando passar experiências emocionais e psicológicas de outros seres humanos”
Martin Scorsese
Sobre filmes da Marvel
 
Ou seja, na visão de Scorsese, os filmes da Marvel não podem ser considerados "cinema" porque falhariam em retratar a experiência humana na forma de narrativa.
Em um segundo momento, o diretor desenvolveu melhor seu argumento em uma coletiva de imprensa no London Film Festival, onde esteve para divulgar seu novo filme, "O irlandês", que estreia em 27 de novembro na Netflix. Para ele, o cinema precisa "se defender" da invasão desse tipo de produção em suas salas.
"Não é cinema, é outra coisa. Nós não deveríamos ser invadidos por isso. Nós precisamos que os cinemas se posicionem e apresentem filmes que são narrativas. Cinemas viraram parques de diversões. Isso é ótimo para aqueles que gostam desse tipo de filme e, sabendo o que as pessoas sentem agora, eu admiro o que elas fazem. Não é o meu tipo de coisa, simplesmente não é. É criar para um outro tipo de audiência que acha que cinema é isso".

Coppola entra na briga: 'Marvel é desprezível'


Francis Ford Coppola durante o Festival Lumière, em Lyon, na França, onde classificou os filmes da Marvel como 'desprezíveis' Foto: ROMAIN LAFABREGUE / AFP
Francis Ford Coppola durante o Festival Lumière, em Lyon, na França, onde classificou os filmes da Marvel como 'desprezíveis' Foto: ROMAIN LAFABREGUE / AFP
Enquanto atores e produtores ligados à Marvel reagiam aos comentários de Scorsese, outro ícone do cinema resolveu entrar na discussão. Durante o Festival Lumière, na França, Francis Ford Coppola disse não só que seu colega estava coberto de razão, mas que foi até educado demais tratando do assunto — algo que ele não estava disposto a ser.
“Nós esperamos aprender com o cinema, ganhar alguma coisa, algum conhecimento, alguma inspiração. Eu não sei o que alguém ganha vendo o mesmo filme de novo. Martin foi gentil quando disse que não é cinema. Ele não disse que é desprezível, que é o que eu digo.”
Francis Ford Coppola
Sobre filmes da Marvel
 

Por que Coppola e Scorsese importam


Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Steven Spielberg e Goerge Lucas posam juntos no Oscar de 2007: quarteto faz parte de geração de cineastas que 'salvou' Hollywood nos anos 1970 Foto: Kevork Djansezian / AP Photo
Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Steven Spielberg e Goerge Lucas posam juntos no Oscar de 2007: quarteto faz parte de geração de cineastas que 'salvou' Hollywood nos anos 1970 Foto: Kevork Djansezian / AP Photo
Quando alguém dá uma opinião impopular, é comum tentar desqualificar o autor da opinião. No caso de Coppola e Scorsese, fica difícil: os dois não são apenas uns dos maiores diretores de sua geração, mas da história do cinema. 
Na lista de 2019 da prestigiada revista britânica "Sight and sound", "Apocalypse now" (1979) , de Coppola, figura como o 14º melhor filme de todos os tempos, enquanto "O poderoso chefão" (1972) ocupa a 21ª posição. Empatados na 31ª posição, estão "Taxi driver" (1976) , de Scorsese, e "O poderoso chefão II" (1974) , de Coppola.
Coppola e Scorsese não têm apenas prestígio: seus filmes fazem parte da cultura popular ao ponto que é difícil pensar em alguém que trabalhe em Hollywood hoje e não tenha, de alguma maneira, sido influenciado por suas obras.
No livro "Easy riders, raging bulls —  Como a geração sexo-drogas-e-rock'n'roll salvou Hollywood", o jornalista Peter Biskind discorre sobre como Coppola e Scorsese, além de outros diretores da mesma época, como George Lucas, Steven Spielberg e Robert Altman, revolucionaram a forma de conceber e realizar filmes.
Com temáticas ousadas e personagens complexos, que fugiam de fórmulas maniqueístas, esses realizadores revigoraram a indústria do cinema entre o final da década de 1960, quando Hollywood sofria com um esgotamento criativo, até meados dos anos 1980.  O trabalho deles, portanto, não foi apenas inovador artisticamente, mas fundamental para manter o cinema americano de pé.

Por que o Universo Cinematográfico da Marvel importa


Os diretores Joe e Anthony Russo, ao lado dos atores Brie Larson, Robert Downey Jr. e Jeremy Renner, em evento de 'Vingadores: Ultimato' em Seul, na Coreia do Sul Foto: JUNG YEON-JE / AFP
Os diretores Joe e Anthony Russo, ao lado dos atores Brie Larson, Robert Downey Jr. e Jeremy Renner, em evento de 'Vingadores: Ultimato' em Seul, na Coreia do Sul Foto: JUNG YEON-JE / AFP
Com a chegada do streaming, que facilitou como nunca o acesso barato a séries e filmes de qualidade, convencer o público a ir ao cinema não tem sido uma tarefa tão simples quanto antes. Há, no entanto, algo que continua a arrastar multidões para as telonas: os heróis da Marvel.
Adquirido pela Disney em 2009, o selo dos quadrinhos se transformou nos últimos anos em uma potência cinematográfica. Tudo começou com "Homem de ferro" (2008) , filme que não só revigorou a carreira de Robert Downey Jr. como iniciou o chamado "Universo Cinematográfico Marvel (MCU)" , que inclui (até o momento) 23 filmes lançados que encontram pontos de conexão entre si.
O carro-chefe do MCU é a franquia "Vingadores" , que reúne boa parte dos heróis da Marvel. O último filme da série, "Vingadores: Ultimato" (2019), é a maior bilheteria da história, segundo dados do Box Office Mojo, arrecadando mais de US$ 2,7 bilhões ao redor do mundo (se corrigido pela inflação, "E o vento levou", de 1939, continua à frente).

Há espaço para todos os tipos de filmes?


Natalie Portman posa durante a 'Comic-Con' 2019 Foto: KEVIN WINTER / AFP
Natalie Portman posa durante a 'Comic-Con' 2019 Foto: KEVIN WINTER / AFP
As falas de Scorsese e Coppola, evidentemente, geraram reações, em especial entre os atores e produtores ligados ao universo da Marvel. Um argumento comum, de natureza apaziguadora, é o que foi usado por Natalie Portman . Vencedora do Oscar, a intérprete de Jane Foster em "Thor" diz que "há espaço para todos os tipos de filme" e "não há uma única forma de se fazer arte".
Embora seja verdade que é possível fazer cinema de muitas formas diferentes, a história fica um pouco mais complicada se levarmos em consideração o fator comercial. Com o predomínio de filmes da Marvel e da Disney nas bilheterias, tem ficado difícil para filmes sem efeitos especiais competirem. Quem reclamou recentemente disso foi Jennifer Aniston : antes procurada para estrelar comédias românticas, ela disse à "Variety" que decidiu retornar à televisão porque "não está interessada em viver numa tela verde" .
“Você vê o que há disponível por aí e está apenas diminuindo e diminuindo, há apenas grandes filmes da Marvel. Ou coisas que eu não sou chamada para fazer ou que envolvem viver numa tela verde”
Jennifer Aniston
Sobre filmes da Marvel
O fato é que, mesmo que se tenha um filme competitivo, com capacidade de atrair o público, produtores estão tendo dificuldades em simplesmente encontrar uma "janela" para lançar seus filmes sem sofrer com a ocupação dominante da Disney nas salas de cinema. Aqui no Brasil, um caso exemplar é o "De pernas para o 3" . Após estrear indo bem na bilheteria, a produção nacional foi varrida das salas com a chegada de "Vingadores: ultimato", que tomou conta de 92% das salas de cinema do Brasil na ocasião. Dessa forma, fica difícil simplesmente ser viável fazer um filme que não seja sobre heróis de capa capazes de explodir coisas.

Filmes de mafiosos são a Marvel do passado?


O diretor da franquia
O diretor da franquia "Guardiões da galáxia",James Gunn, durante o lançamento de "Guardiões da galáxia 2", em abril de 2017, em Hollywood Foto: FREDERIC J. BROWN / AFP
Um argumento que encontra mais força para defender os filmes da Marvel é o usado por James Gunn . Diretor de "Guardiões da galáxia" e "Esquadrão suicida" (da concorrente da Marvel, D.C. Comics), o cineasta sustentou em uma publicação do Instagram que, por trás das críticas aos super-heróis, estaria um preconceito aos filmes de gênero.
Para Gunn, este mesmo tipo de crítica generalizante sobre uma temática popular já atingiu no passado o faroeste, hoje celebrado graças a autores como John Ford, Sam Peckinpah e Sergio Leone, e mesmo os filmes sobre a máfia que deram fama a Coppola e Scorsese. E que, não tanto tempo atrás, a mesma queixa era feita em relação a "Guerra das estrelas", hoje já considerado um clássico do cinema.
“Super-heróis são simplesmente os gângsteres/cowboys/aventureiros espaciais de hoje. Alguns filmes de super-heróis são horríveis, outros são lindos.Como filmes de faroeste e de gângster, nem todo mundo vai gostar deles, talvez até alguns gênios”
James Gunn
Sobre filmes da Marvel

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