A paciente chegou ao consultório da terapeuta aflita. Dizia ter perdido a fé na humanidade, no país, na própria psicanalista. Então levantou a questão essencial: “Isso é depressão ou é o clima político?”.
Especialistas admitem que a psicologia individual é altamente influenciada pela realidade política. Muitos se sentem insanos neste momento porque o Brasil e o mundo estão longe do que se convencionou chamar de são. As crises — política, econômica, ambiental, cultural — abalam o otimismo natural dos homens e a crença na bondade humana e no progresso.
O contexto de polarização e violência política — com as eleições passadas marcadas pelo atentado ao então candidato Jair Bolsonaro (PSL), a proliferação de notícias falsas pelo WhatsApp, rompimentos familiares e casos de agressões e assassinatos de oponentes políticos — levou à criação de um grupo chamado Escuta Sedes, voltado à população afetada pela crise política, atendida em rodas de conversa gratuitas e comandadas por psicanalistas. “O grupo foi criado em função de a gente perceber que havia, ali na altura do segundo semestre, do evento das eleições, o incremento da violência nas relações entre as pessoas”, disse Silvia Nogueira de Carvalho, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, referência na área de saúde mental.
Christian Dunker, psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP), disse não se lembrar de tempos como os atuais. “Atendo há 30 anos, já assisti a outros momentos tensos. Mas nunca a política ocupou tanto espaço na vida das pessoas.”
Ele contou que, entre o primeiro e o segundo turno das eleições de 2018, viu “namoros serem rompidos, violências serem praticadas”. A pauta política voltou com força no mês de agosto de 2019, com a crise em torno do desmatamento da Amazônia. “Foi uma espécie de materialização de algo errado acontecendo”, afirmou. “A formação de um dia que mudou sua atmosfera em função de queimadas produziu 1 grama a mais de realidade para nossos pesadelos, dando concretude aos pesadelos e inseguranças das pessoas. Está havendo uma percepção gradual de que aquelas ameaças ( do presidente ) têm um impacto real.”
O psiquiatra e psicanalista Rodrigo Lage, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, tem observado “a exacerbação de ansiedade e de angústias, muitas vezes ante manifestações públicas de governantes que geram medo e insegurança”. Ele citou uma entrevista recente de Bolsonaro ao programa Na lata , apresentado por Antonia Fontenelle, ex-mulher do diretor de telenovelas Marcos Paulo, que se notabilizou na briga pública por seu espólio e, ao declarar apoio a Bolsonaro em 2018, disse que feminismo era “mimimi”. Na ocasião, o presidente afirmou que qualquer arranjo familiar que saísse da estrutura tradicional homem e mulher era “lixo”. “Esse tipo de fala desmonta, agride, ataca essas pessoas. Tem o efeito de refazer traumas antigos, de reabrir feridas profundas”, afirmou Lage. “Nas democracias, os governantes em altos cargos têm, para além do lugar objetivo, de administrador, um lugar simbólico, que funciona como mediador, como guardião desse pacto civilizatório. Se vejo alguém que ocupa tal lugar falar que minha forma de amar, de me organizar em família é um lixo, isso gera medo. Se vejo um governador relativizar a tortura, isso gera muito desamparo — e medo.”
Para ele, os piores momentos são aqueles em que não consegue se aproximar das pessoas — ou vê-se obrigado a afastar-se delas — por sua visão de mundo. “Acabo descontando em bebida, em droga, você fica tentando ter momentos efêmeros de felicidade”, disse o artista, que, antes, só bebia nos finais de semana e agora bebe até quatro vezes por semana. “É uma fase. Acho que não vou passar muito tempo bebendo mais.” Com o sono instável, sente-se também menos livre. “Comecei a me vestir de uma forma mais ‘masculina’. Camisa polo é uma coisa que eu não usava havia muito tempo. ( Antes ) eu me sentia um pouco mais livre.”
A reuniões familiares, pensa duas vezes antes de levar o garoto: “Será que eu levo meu filho para interagir com essa gente?”, pergunta-se. “Nessas reuniões de família, as pessoas costumam soltar os comentários mais racistas, preconceituosos. A gente imaginava que isso nunca fosse acontecer em 2019.” Acaba levando o filho, mas confessou: “Fico um pouco agoniado”. Para ele, seus familiares são pessoas que, nos anos da ditadura civil-militar, o dedurariam “para o Dops ( Departamento de Ordem Política e Social )”. No entanto, Santana busca, com a mãe do menino, fazê-lo entender a realidade. “Converso muito sobre a situação. A gente acha melhor dar ferramentas para ele lidar com a situação do que criar mais um alienado”, disse.
A atual conjuntura, afirmou Santana, tem feito com que ele beba mais. “A gente senta, começa a conversar, beber, e uma cerveja viram dez. Bebe mais e discute e fala sobre isso. É angustiante. É uma maneira que você tem de aliviar.” Outro efeito é a insônia. No dia da entrevista a ÉPOCA, na terça-feira 10 de setembro, ele havia dormido das 5 horas às 9 horas da manhã. Talvez pelo fato de que estar dormindo ou acordado não faz mais tanta diferença. “Dá uma sensação de você estar vivendo dentro de um pesadelo, você não sabe quando esse pesadelo vai acabar.”
A insegurança financeira tem sido um fator a mais de ansiedade para a mestranda, que sofre também com o clima dentro da universidade — em razão da insegurança financeira e do confronto aberto do governo com a ciência e o mundo acadêmico, além das declarações de cunho sexista proferidas por Bolsonaro ao longo de sua trajetória política e de sua Presidência. Há poucos dias, o presidente escarneceu da aparência da primeira-dama da França, Brigitte Macron, 24 anos mais velha que o presidente Emmanuel Macron, em contraponto à aparência da primeira-dama Michelle Bolsonaro — 27 anos mais nova que o presidente brasileiro.
A soma de fatores de estresse e ansiedade deixou sua vida “toda desregulada”. “Tenho dificuldade de acordar de manhã, tenho dificuldade de trabalhar porque estou constantemente cansada. Tem afetado minha concentração. É difícil me sentar e escrever a dissertação.” A ansiedade lhe causa crises de choro, tremedeira e apatia.
Segundo a OMS, há 11,5 milhões de brasileiros sofrendo de depressão, o equivalente a 5,8% da população, acima dos 4,4% da média mundial. No ranking entre países, o Brasil ocupa a 5ª posição e o 1º lugar entre os latino-americanos. Os dados referem-se a 2015.
“A tendência é que a prescrição de antidepressivos e indutores do sono aumente”, afirmou o psiquiatra e psicanalista Nilson Sibemberg. O psiquiatra, que atende em consultório privado em São Paulo e em Porto Alegre e na rede pública municipal da capital gaúcha, vê na precarização do atendimento público um dos fatores para o aumento da prescrição de remédios. “Você perde a alternativa de encaminhar as pessoas para outros atendimentos.”
Outro fator é a precarização do trabalho e da renda, apontada pelo psiquiatra como fator de depressão e angústia. De acordo com o IBGE, o Brasil tem 12,8 milhões de pessoas desempregadas, o que equivale a uma taxa de 12% (eram 12,4% no mesmo período de 2018). Já o número de pessoas na chamada economia informal aumentou 5,2% no período, passando a 11,5 milhões de pessoas. “As pessoas estão com um temor muito grande de perder aquilo que é seu sustento. Isso se traduz em mais depressão e mais angústia”, afirmou. “Nesse momento, a gente tem — principalmente entre os jovens e algumas pessoas com mais idade — um sentimento de desamparo diante do futuro.”
O otimismo também é um mecanismo de defesa. Pode nos manter flutuando sobre as águas turvas do sofrimento. Quando a realidade é dura demais para se suportar, apegar-se a um futuro melhor pode nos ajudar a seguir em frente. O pensamento positivo, quando mal-empregado, é irritante e inútil. Acreditar que “tudo vai ficar bem” abre espaço para o desespero, porque, a cada vez que as coisas não ficam bem, nos sentimos derrotados novamente. O otimismo não é sempre saudável. Pode nos deixar complacentes, exaustos e inteiramente separados de nossas psiques.
Em face dessas calamidades, o pensamento catastrófico é uma resposta racional. A dor não pode ser evitada. Lutar contra a dor, entretanto, é o que incute a maioria de nosso sofrimento. A dolorosa realidade pode ser aceita completamente, sem julgamentos. Quando algo horrível acontece, a reação natural é lutar contra isso. No entanto, lutar contra nossa agonia não vai mudá-la. Ficamos melhores quando aceitamos o que aconteceu, permitindo que aquilo nos mude e agindo a partir do que restou.
O mindfulness — a arte da atenção plena — está revolucionando os cuidados com a saúde mental. Pesquisas demonstram os benefícios na prática de mindfulness. Para promover o bem-estar, podemos aprender a praticar a atenção plena tanto ao momento presente quanto ao bem, da forma que o entendemos. Ao encararmos um mundo frequentemente deprimente e enlouquecedor, isso pode significar nos concentrarmos, com atenção, no trabalho inspirador que nos cerca. Cada vez que sentir o desespero começar a aparecer, dirija sua atenção para a bondade, generosidade e boa vontade ao seu redor. Há, por exemplo, um desabrochar sem precedentes de ativismo. Se nossos olhos estão sintonizados com a luz, encontraremos a luz. Ou não.
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