August 20, 2019

O curioso caso do juiz-empresário


 Conrado Hubner Mendes Foto: Davilym Dourado / Divulgação


Não há melhor oportunidade para um banco ou escritório de advocacia praticar lobby no Judiciário do que chamar um juiz de Corte superior para palestra 

 Conrado Hübner Mendes

Voltamos a desconfiar do comportamento do juiz e do promotor brasileiros. A magistocracia se arma, pois não gosta de ter sua integridade posta em dúvida. Prefere gozar de seus privilégios sem alarde e evitar indignação alheia. Além dos deveres que decorrem da ética profissional elementar, a Constituição de 1988 é categórica: “Aos juízes é vedado exercer outro cargo ou função, salvo uma de magistério” (art. 95, parágrafo único, I). O mesmo vale para promotores (art. 128, II, d).
Simples, não? Há linhas vermelhas que magistrados não podem cruzar para não corromper a imparcialidade. Entre elas, não podem se dedicar a outras atividades, exceto “uma de magistério”. Essa seria a “interpretação literal” da regra, apegada à letra da lei. Os manuais jurídicos nos ensinam, porém, que devemos ir além da letra e oferecem outros métodos: o “histórico”, que busca compreender o contexto de origem da regra; o “teleológico”, que busca o propósito de fundo da regra; o “sistemático”, que busca entender a conexão da regra com outras regras.
No caso da vedação constitucional a juízes e promotores, todos os caminhos interpretativos levam ao mesmo endereço: do ponto de vista histórico, num contexto de transição para a democracia em 1988, a vedação protege a independência judicial contra ingerência de outros interesses; o propósito de fundo da regra é consolidar a modernização de funções de estado à luz de princípios republicanos contra o patrimonialismo (confusão do público com o privado); do ponto de vista sistemático, não há outra regra constitucional que permita relativizar a vedação. Juízes e promotores podem ser só juízes e promotores mesmo. Excepcionalmente, professores. Atividades negociais estão proibidas.
Como conceber o juiz-empresário? Há pelo menos duas categorias: 1) o juiz empreendedor corporativo, que constrói ou dirige, de fato, uma sociedade lucrativa e usa influência junto ao poder político e econômico; 2) o juiz empreendedor de si mesmo, que se vende como palestrante no mercado de grandes corporações com múltiplos interesses no Judiciário. Em ambas as categorias, o empreendimento depende de sua condição de juiz. É ele o produto, o captador de negócios.
Duas estratégias foram criadas para escapar da vedação constitucional. No caso do juiz sócio de empresa, alega-se que a Lei Orgânica da Magistratura (Loman), de 1979, permite-lhe ser “acionista ou quotista” (art. 36, I). A resposta à explicação marota é banal: a regra da Loman é inconstitucional, pois amplia o que a Constituição restringe. Mas a magistocracia quer forçar a amizade com a Constituição e dizer que uma lei de 1979 cria uma exceção a mais ao que o constituinte vedou em 1988. Com o perdão da pergunta retórica, será a Loman uma norma superior à Constituição? Por que a Constituição de 1988 teria omitido outras exceções?
A segunda estratégia é confundir “função de magistério”, que significa ser professor de instituição de ensino, com “palestrante remunerado”. Tanto na palestra remunerada quanto na aula dentro de um curso, há uma pessoa que fala sobre tema qualquer para a audiência que lhe assiste. A semelhança, contudo, é de superfície, e é irrelevante para a vedação constitucional. A estrutura de incentivos econômicos, os potenciais conflitos de interesse e o “modelo de negócio” são diversos. Como diz Elio Gaspari, eventos assim costumam ser uma “confraternização do andar de cima”, “ocasiões para fazer amigos e influenciar pessoas”.
“Não há melhor oportunidade para um banco ou escritório de advocacia praticar lobby no Judiciário do que chamar um juiz de Corte superior para palestra”
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Por prevenção, a Constituição vedou. Por desfaçatez, a magistocracia ignorou.
Instituições de controle como o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público têm um dilema: defender um Judiciário e um Ministério Público republicanos ou a magistocracia? A instituição ou a corporação? Escolheram a segunda opção, sinônima de corrupção institucional. Decidiram que, em nome da privacidade, rendas extras nem sequer precisam ser divulgadas. Janaina Paschoal propôs uma solução: que se pague pela palestra o mesmo valor da aula. Não entendeu que o dinheiro é o menor dos problemas.
Em resumo: podia, era imoral, mas, desde 1988, não pode mais. Podia, não pode mais, mas continua podendo no território dos homens da lei. O STF poderia moralizar a coisa. Mas como moralizar quando o maior juiz-empresário do país é ministro do STF e emprega outros ministros? O juiz-empresário é, acima de tudo, um juiz inconstitucional. A magistocracia sabe se defender em silêncio.

 

 

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