July 15, 2019

Entre caos e rojões, eu faria tudo de novo para noticiar a vinda de Glenn Greenwald



Marcella Franco
PARATY (RJ)
Entre artistas múltiplos e autores a quem era tarefa noticiar na Flip 2019, a mesa de Glenn Greenwald parecia instigante, sem dúvida, mas representava, a princípio, na agenda de uma jornalista escalada para cobertura de festival, apenas mais um item a ser cumprido em meio à pressa. Foi só depois de apanhar, correr e chorar —tanto de medo, quanto de emoção— que finalmente me dei conta: aquela seria a pauta da festa, quiçá a pauta da vida.
Cheguei a Paraty na segunda-feira (8), dois dias antes da abertura. Queria me ambientar com calma e reduzir ao máximo a possibilidade de fazer besteira por conhecer mal a cidade. Sou péssima com mapas e me perco em shopping centers, de modo que Paraty seria um prato cheio para comidas de bola no cronograma do jornal.
Repórter é repórter até quando dorme. Ao ouvir de soslaio que moradores poderiam estar organizando uma manifestação para o dia da palestra de Greenwald, decidi que aquela seria minha primeira missão: saber se era verdade e, caso fosse, descobrir quem eram aquelas pessoas.
Quando algum veículo publica um material exclusivo e antes de todo mundo, chamamos isso de “furo”. O furo está para o jornalista assim como o solo de guitarra está para o astro de rock: é uma chance para brilhar e de ser lembrado. Encontrar quatro organizadores do protesto depois de rodar as comunidades e o centro inteiro atrás de um nome foi meu primeiro solo em Paraty.
A matéria com a entrevista saiu na quarta (10), dia de abertura da Flip. Foram 40 minutos de conversa em off nos fundos de uma pousada, com quatro homens que não quiseram se identificar. Eles tiravam fotos de mim e erguiam a voz. Revelaram apenas ser dois empresários locais e um ex-bombeiro. Do outro, só sei que ele temia “a implantação da sede do comunismo em Paraty”.
O texto foi replicado por dezenas de sites e blogs. E, como com grandes furos vêm também grandes responsabilidades, fui escalada para acompanhar o protesto na sexta (12), com concentração às 17h na praça do Chafariz. Portando crachá e bloco timbrado, perguntei ao primeiro manifestante se ele se incomodaria, enquanto tomava sua cerveja, de me conceder uma breve entrevista.

“Folha de S.Paulo? Vocês distorcem tudo que a gente fala!”, ralhou um amigo do homem que abordei. Perguntei se ele lia jornal. “Vocês são uns bandidos!”. Eu só queria entrevistar o senhor de camiseta com foto do Bolsonaro e chapéu de vaqueiro. Pedi ao amigo que, caso não tivesse nada a acrescentar, que por favor permanecesse calado.
“Pode botar aí que eu vou matar esse americano. Eu, cidadão paratiense, vou meter uma bala nesse cara. Eu sei que você está gravando." Eu não estava. Senti medo.
Pedi ajuda aos policiais que acompanhavam tudo a um metro e meio de distância. Perguntei se a PM garantiria a segurança dos jornalistas que acompanhariam a manifestação. “Que manifestação?”, questionou a oficial, enquanto o agressor ia embora na multidão. Uma fotógrafa de um estande do outro lado da rua se aproximou para oferecer ajuda, “eu vi tudo, me chamo Antônia”. Chorei abraçada a uma estranha.
Demorou uma hora e meia até começar a passeata em direção à praia de Terra Nova –a ideia original dos manifestantes de chegar à praia do Pontal, onde ocorreria a palestra, foi abortada. Pela polícia, dizem. Acompanhei a caminhada através do centro histórico, vendo e filmando pessoas que saíam dos estabelecimentos para vaiar.
Abandonei a procissão a 500 metros do destino. Queria ver de perto a reação dos espectadores da mesa de Greenwald à chegada das bandeiras verdes e amarelas e dos carros de som à outra margem do rio, então corri aos tropeções pelo chão de pedras, laptop na mochila, na tentativa de chegar à beira do barco o mais rápido possível.
Mais de 2.000 pessoas esperavam pelo jornalista americano. Não sei se pisoteei alguém até alcançar a beirada da ponte de acesso ao pesqueiro da Flipei –se pisei em você, que me lê, perdão, de verdade. Ao som de “Bella Ciao”, surgiu a lancha. Do outro lado, o hino nacional remixado. A atmosfera era caótica, restavam 12% de bateria no computador, mas era hora de escrever.
Organizadores do evento ofereceram uma tomada. No primeiro andar do barco, próximo à escada do porão. Sentada no chão, agora de costas para os manifestantes e de frente para o público, digitei as falas dos palestrantes, enquanto corria para redigir um texto fiel e minimamente inteligente.
"Tomara que eles não cheguem até aqui”. grita alguém. O protesto talvez se aproximasse pelo rio, pensei, mas eram os fogos de artifício que, do céu, passaram a ser disparados em nossa direção. Começam boatos de faíscas em meio à plateia, supostamente uma bandeira queimada. Princípio de corre-corre. O balanço do mar dá enjoo, a lembrança da praça embrulha ainda mais a barriga. Choro de novo.
Penso no meu avô jornalista, nos meus pais jornalistas, nos tantos amigos bravos de profissão. Ali, na entrada do barco, meu teto era o chão do convés em que pisavam Glenn Greenwald, meu ex-professor na faculdade e mais dois colegas de redação na Folha. Estávamos, portanto, reunidos na força invencível que move aqueles que buscam não apenas boas histórias, mas também a verdade que sustenta todas elas.
Um momento histórico. Um privilégio. De uma pauta corriqueira em meio a tantas previstas na cobertura de um festival de literatura, surgiu aquela que se tornou um dos fatos mais marcantes de meus 21 anos de carreira.
E o mesmo crachá que, na praça do Chafariz, em meio ao protesto, me rendeu agressões, no barco me trouxe um presente. “Parabéns”, cumprimentou Glenn Greenwald, estendendo a mão ao ler meu nome na etiqueta. O jornalismo, em mim, agora está mais vivo do que nunca. Ninguém vai poder nos parar.

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