June 8, 2019

Triste do país que dorme com tantos homicídios



Flávia Oliveira

Triste do país que deita — e dorme — em berço esplêndido, quando teve 65 mil filhos assassinados em um ano. Foi devastadora a edição 2019 do Atlas da Violência, publicação do Ipea e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que deveria deixar insones autoridades e sociedade civil, tão assombrosos são os números da epidemia homicida capturados da base de dados do sistema de saúde. Desta vez, os 13 pesquisadores, além de quantificarem e qualificarem a tragédia que avança sobre jovens, negros, mulheres e LGBTIs, apresentaram gênese e desdobramentos da expansão das facções do tráfico de drogas do Rio de Janeiro e, sobretudo, de São Paulo, Norte e Nordeste adentro.

O Brasil experimentou em 2017 o recorde histórico de letalidade violenta intencional. Nunca tantos brasileiros foram assassinatos, nem em números absolutos (65.602) nem em relativos (31,6 mortos por grupo de cem mil habitantes). Sete em cada dez mortes foram causadas por armas de fogo, atualmente em vias de flexibilização da posse e do porte, promessa de campanha do presidente da República. Nas últimas décadas, nenhum governo foi capaz de pôr de pé um pacto pela redução dos homicídios e valorização da vida. Projetos políticos que chegaram aos palácios do Planalto e Guanabara, no caso do Rio de Janeiro, sugerem que também não será desta vez. O discurso do grupo político dominante é pontuado não só de justificativa, mas de exaltação ao extermínio de criminosos — que tampouco poupa inocentes.

A violência alcança mulheres: em 2017, foram 4.936 vítimas no país, 13 por dia, o maior número em dez anos. No Rio, o ano terminou com 401 mortas. Os 13 pesquisadores, debruçados sobre os dados do sistema de saúde, identificaram queda de 3,3% nos assassinatos fora de casa e aumento de 17,1% no ambiente doméstico. A informação confirma a escalada dos casos de feminicídio, tipificado em lei de 2015. Diz a publicação: “a possibilidade de que cada vez mais cidadãos tenham uma arma de fogo dentro de casa tende a vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres em situação de violência”. É um jeito não alarmista de avisar que os assassinatos de mulheres vão crescer.

Pela primeira vez, o Atlas da Violência se dedicou à população LGBTI, ainda invisível à luz da produção de dados e estatísticas oficiais. Na falta de legislação específica aprovada no Legislativo, o Supremo Tribunal Federal já aprovou por maioria a aplicação da lei contra o racismo nos crimes contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas trans e intersex — falta concluir o julgamento. Ainda assim, os pesquisadores encontraram em denúncias de violações de direitos humanos evidências de aumento dos casos de violência contra os LGBTIs no país. E recomendaram a criação de mecanismos de coleta e monitoramento de dados e indicadores específicos.

Mas são jovens e negros os grupos esmagados pela violência homicida. Têm a pele preta ou parda 75% das pessoas assassinadas no Brasil. Homicídio é causa de morte de seis em cada dez rapazes de 15 a 19 anos, a ponto de a publicação usar a expressão “juventude perdida”. A taxa de homicídios na faixa de 15 a 29 anos chega a 69,9 por cem mil habitantes, mais que o dobro da média nacional; em um ano, 35.783 perderam a vida. No Rio de Janeiro, o índice chega a 92,6 por cem mil; no Rio Grande do Norte, recordista, a 152,3.

O Brasil está literalmente exterminando o futuro. Estudo de 2010 do economista Daniel Cerqueira estimou que as mortes violentas de jovens equivaleram a 1,5% do Produto Interno Bruto. O custo social da barbárie nossa de cada dia — expresso em perdas econômicas, gastos com seguros e segurança privada e pública, despesas do Estado com forças policiais, sistema de saúde e assistência — beira 6% de toda a riqueza produzida.

O mesmo país que debate a necessidade de reformar a Previdência para acomodar o desequilíbrio crescente entre otamanho das populações ativa e inativa não se importa em enterrar milhares de jovens em idade produtiva. Faltam políticas públicas que aplaquem a evasão escolar aguda no ensino médio, escassez de formação profissional e dificuldade de inserção no mercado de trabalho. O que há de sobra é munição.

ilustração ANDRÉ MELLO

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