June 16, 2019

Livro de ensaios põe zumbis ‘no divã’ e faz análise sobre fenômeno

Cena de 'A noite dos mortos-vivos', de George Romero, clássico dos filmes de zumbis Foto: Reprodução

Bolívar Torres

O que a psicologia, a filosofia e antropologia têm a dizer sobre o fascínio pelos zumbis? É o que buscaram saber o psicanalista Diego Penha e o filósofo Rodrigo Gonsalves ao reunirem os textos de “ Ensaios sobre mortos-vivos — The walking dead e outras metáforas ”. Nos textos selecionados por eles no livro, Christian Dunker, Ivan Estevão, Lucio Reis e outros pesquisadores mergulham nos símbolos desses monstros do além-túmulo para falar sobre nossos medos, paranoias e mecanismos sociais. Conceitos de pensadores como Freud e Zizek são usados para analisar filmes como “A noite dos mortos-vivos” e séries como “The walkind dead” .

Doutorando em Psicologia Clínica pela USP, Penha resumiu alguns pontos essenciais abordados no livro.

Origem na escravidão

“O surgimento dos zumbis está relacionado com a colonização do Haiti: zumbis eram escravos que morriam e eram revividos por feiticeiros para trabalhar de volta nas lavouras. Mesmo após a morte, esse corpo continua eternamente escravizado. O notável é que, em 1929, quando o jornalista americano William Seabrook vai ao Haiti e volta dizendo que viu zumbis, essa história faz um sucesso imenso nos EUA. O discurso flertava com a antropologia e o jornalismo, além de flertar com a xenofobia. Porque, ao mesmo tempo que mostra um maravilhamento com o Outro, transformava esse Outro em monstro.”

Refugiados e imigrantes

“Os gregos já usavam as narrativas para controlar a imagem do outro — o estrangeiro, o imigrante, o diferente. Eles já falavam sobre os homens metade cachorros, as populações com pescoços compridos, e que por serem diferentes de nós acabam justificando nossa perfeição. Na Idade Média, os lugares distantes eram onde habitavam os monstros. A tendência é que, nas novas narrativas de zumbis modernos, a figura do morto-vivo vá englobar o refugiado, o imigrante. Algo que se vê em “Guerra Mundial Z “(2012) e até em “Game of thrones”, que tinha uma muralha para deixar os mortos do lado de fora, impedir esse povo que quer invadir o centro. E na mesma época em que o presidente dos EUA falava em construir um muro contra os imigrantes.”

Monstros no armário

“Os mortos ficam no cemitério, distantes, não queremos que eles lembrem nossa própria mortalidade. Não há sociedade que não conviva com fantasmas do passado, com monstros no armário. Mas os mortos-vivos insistem em não ficar enterrados. Eles voltam para abrir nossos olhos, e o medo opera uma transformação específica de ligar com um passado de violências que foi ignorado, obliterado, que ninguém queria lembrar.”
Diego Penha, um dos organizadores do livro 'Ensaios sobre os mortos-vivos' Foto: Divulgação / Divulgação
Diego Penha, um dos organizadores do livro 'Ensaios sobre os mortos-vivos' Foto: Divulgação / Divulgação

História dos vencidos

“Em termos de Brasil e de escravidão, em algum momento temos que desenterrar essas ossadas e olhar para elas, perceber que, este também, é um país construído em cima do genocídio. Por que o samba-enredo da Mangueira este ano, que homenageou Marielle, ou o do Tuiuti no ano passado, ofenderam tantas pessoas? São dois desfiles que repensam a nossa história a partir das populações vencidas, e não dos vencedores. É um retorno dos mortos-vivos, por assim dizer, que ameaça uma parcela da população que ainda acredita na manutenção desses corpos debaixo da terra.

‘Paranoização’ do mundo

“O filme ‘A noite dos mortos-vivos’ (1968) dá origem à forma como vemos os zumbis hoje. É a grande influência para todo mundo, porque consegue descrever processos que vivemos desde os anos 1960 até agora. No longa, não se explica por que os mortos se levantam, e o vazio dessa causa permite que os agentes sociais criem teorias mirabolantes, conspiratórias, para explicar o fenômeno. Enquanto a invasão paranoica vai crescendo, as pessoas vão se fechando cada vez mais, primeiro em suas casas, depois nos porões. Aqui no Brasil, não precisamos de outros exemplos, o discurso paranoico social e político já é uma avalanche que cresce sem fim.”
Capa de 'Ensaio sobre mortos-vivos', organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves Foto: Divulgação
Capa de 'Ensaio sobre mortos-vivos', organizado por Diego Penha e Rodrigo Gonsalves Foto: Divulgação
 

Zumbis do consumo

“Toda narrativa de zumbis já traz embutida uma crítica ao consumo. Em ‘Despertar dos mortos’ (1978), o primeiro lugar que os mortos vão ao acordar é o shopping. O lugar mais familiar, o elo afetivo com a memória da vida, não é a casa deles, ou a praia, etc. O shopping é o espaço simbólico, central, em que você pode i
r sem nem se perguntar por quê. Também dá para ver os próprios shoppings como zumbis, que vão surgindo sem que a gente perceba.”

Cracolândia

“Existe um discurso que compara moradores de rua e usuários de crack a zumbis, no sentido de dizer que ali não existe mais uma vida, que eles são destituídos de humanidade. Isso tem apenas um objetivo, tornar as políticas de opressão mais validadas. Quando se está lidando com mortos-vivos, fica muito mais fácil aprovar uma operação truculenta.”

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