May 21, 2019

Quando será tarde demais?


Conrado Hubner Mendes Foto: Davilym Dourado / Divulgação






Conrado Hübner Mendes


O democalipse não veio. Apesar da vertigem e do assombro causados por quase cinco meses de governo Bolsonaro, com overdose de pornografia, gritaria virtual e paralisia real, não houve a quebra de regime anunciada por discursos de campanha. O alarmismo histriônico, ventilado no fim de 2018, não deixou de receber resposta à altura: a de que a democracia brasileira corria “risco zero”. A tese misturava precipitação, desejo e hipérbole. Proferiu frases como: “A democracia está mais firme que nunca, apesar do namoro com o iliberalismo de ambos os lados”; “Nossa crença democrática dominante e as instituições de controle conterão impulsos iliberais”; “Bolsonaro se revelará um presidente mais moderado, e sinais desse giro moderado já são evidentes”; “Não dá para confundir a retórica de um parlamentar polêmico com ameaça real à regra do jogo”, mas “retórica de fim de mundo dá muito mais likes nas redes sociais”.

O cenário democalíptico pintava um ato de força espalhafatoso, autossuficiente, que demarcasse o fim da democracia sem sombra de dúvida. Ecoa o golpe clássico, prática abundante no século XX. Estudiosos têm alertado, porém, que há processos mais furtivos. Em vez de um tiro no coração, a democracia pode se desgastar pelas beiradas, até que se desinstitucionalize de vez sem disparar a sirene (como um sapo mergulhado na água que ferve aos poucos perde energia e morre sem reagir). David Runciman ( Como a democracia chega ao fim , Todavia, 2018) alertou que esses processos precisam fingir “que a democracia permanece intacta”. Ficamos em busca da prova definitiva da falência, e, quando nos damos conta, já não sobrou muita coisa. A fixação nas ditaduras do passado afeta o discernimento no presente.
“Há dois motores principais nesse processo: a fadiga da legalidade e a erosão da infraestrutura imaterial da democracia”
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O primeiro ocorre quando autoridades testam a força da lei até que se esgote o estoque de energia e capital político das instituições de controle. O Judiciário, mesmo que não capitule por vocação, não aguenta sozinho por muito tempo. O segundo diz respeito ao processo de exacerbação do antagonismo social, de degradação das condições para o exercício da liberdade na diferença. A imprensa, as salas de aula e as instituições culturais sentem o golpe e se autocensuram por instinto de sobrevivência.


A Blitzkrieg desconstituinte contra valores elementares da Constituição de 1988 já deu numerosos exemplos nestes cinco meses. O kit lei continua a ser rejeitado sem cerimônia (não confundir com kit gay, que só existiu nas fantasias de Bolsonaro). A falta de “cerimônia”, lembre-se, não é mero detalhe, mas agravante. A última semana ofereceu mais dois exemplos cuja gravidade não fica para trás: Bolsonaro, por meio da técnica normativa malandra do “se pegar, pegou”, violou por decreto a lei do Estatuto do Desarmamento ao ampliar o direito de portar arma sem demonstrar “efetiva necessidade” (que passa a ser presumida, conforme o artigo 20, parágrafos terceiro e quarto do decreto); Wilson Witzel foi denunciado à ONU por sua política de segurança, que já fez as duas operações policiais mais letais desde 2013. Witzel passou a se juntar aos snipers que do helicóptero atiram em suspeitos. Para adicionar ingrediente mais insólito, passou a gravar vídeos que ele inicia com um quase simpático “Oi, pessoal”.

Runciman, posicionando-se no debate sobre a crise da democracia, afirmou: “Se Trump é a resposta, é porque não estamos mais fazendo a pergunta certa”. Fernando Limongi, reagindo à tese do “risco zero”, completou: “Esse gênio que está saindo da garrafa você não põe de volta”. O gênio, claro, não é Bolsonaro (nem Trump), mas o movimento que ajuda a inflamar.

Martin Luther King exigia o término imediato do apartheid americano nos anos 60. Injustiça extrema não aceita nota promissória. Não havia tempo, em suas palavras, para o luxo da espera ou para se entorpecer na “droga tranquilizadora do gradualismo” (a mesma que estendeu a escravidão brasileira até o fim do século XIX). A democracia do país, sem ter resolvido muitas de suas injustiças extremas, foi sedada com outra pílula tranquilizadora — a do gradualismo regressivo. Esse gradualismo tem sinal trocado, pois empurra para trás: retrocesso em vez de progresso.

Quando será tarde demais? Quando os compromissos de 1988 serão desmoralizados por completo? A pergunta não nasce com Bolsonaro ou Witzel, apenas ganha com eles uma feição mais violenta e caricata.

Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e professor da USP

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