May 14, 2019

O que o movimento dos terraplanistas nos ensina

2010 / Marcelo Min / Fotogarrafa / Foto: Marcelo Min / Reprodução

Helio Gurovitz

O mundo fica a cada dia mais estranho, mas continua redondo. Ou melhor, no formato de geoide, sólido cuja melhor aproximação é a esfera. A Terra, enfim, é uma bola. É uma verdade conhecida e descrita pelo menos desde Eratóstenes, no século III a.C. Fundamentou os Grandes Descobrimentos, a astronomia de Galileu, Newton, Einstein ou de qualquer físico que se preze. Dá base a todos os sistemas de navegação, marítima ou aeronáutica, planetária ou interplanetária; a todas as explicações do movimento de astros, cometas ou eclipses que tenham um mínimo de aderência na realidade. Ainda assim, nos últimos anos tem crescido, de modo inexplicável, a quantidade daqueles que, com base em pseudociência e teorias da conspiração, se identificam como “terraplanistas”. Acham que o mundo tem o formato de uma pizza, coberta por um domo com estrelas, acima da qual o Sol circula como uma espécie de abajur (é um pouco pior que isso, mas dá para fazer uma ideia). 

De todas as fajutices e baboseiras que ganharam vida na internet, de todos os cursos, filosofias ou picaretagens alternativas com que um ser humano pode preencher seu cérebro oco nas redes sociais, de todo o universo conspiratório que alimenta a paranoia on-line — e olha que ele não é pequeno —, nada se compara ao terraplanismo. O desvario pode ser conferido no documentário A Terra é plana, disponível na Netflix. Como ciência, é apenas um filme ruim (embora dê voz a cientistas, as barbaridades dos terraplanistas não são desmentidas como deveriam). Como retrato da psicologia que tornou este planeta irrespirável para quem ainda tem algum apreço pela verdade, é um relato inestimável. Qual a reação da academia diante de um movimento baseado numa mentira flagrante, cujo objetivo é lograr incautos (e abalá-la)? A previsível: desprezo. Enquanto isso, o terraplanismo só faz crescer.

Tal paradoxo caiu no colo do finlandês Petri Launiainen no ano passado, enquanto ele conferia em casa, em Brasília, as provas de seu livro A brief history of everything wireless (Uma breve história de tudo sem fio). Piloto de avião certificado, mergulhador experiente, astrônomo amador, chefe por dez anos do laboratório da Nokia em Manaus, especialista em tecnologias sem fio, Launiainen deparou com um vídeo no YouTube argumentando que determinado pouso de emergência era a prova definitiva de que a Terra era plana. Era um despropósito. Ficou curioso. Dali a algumas horas, ainda estava imerso no buraco sem fundo do terraplanismo. A experiência resultou noutro livro: Flat out wrong (algo como Planamente errado), um trabalho minucioso de desmistificação das teorias picaretas do movimento, cuja origem está numa obra do século XIX chamada Astronomia zetética. Do pôr do sol às estações do ano, dos navios que somem no horizonte ao trânsito das estrelas, dos eclipses ao sol da meia-noite, Launiainen explica tudo com paciência e precisão. Quem nunca aprendeu na escola tem à disposição imagens e evidências intuitivas — sim, é intuitivo! — de que o mundo é mesmo uma bola (há outras em flatoutwrong.com).

“O mais surpreendente não é a profusão de gente que acredite no terraplanismo (afinal, tem de tudo nesta bola). É que o livro de Launiainen seja um dos raríssimos que se disponham a atacar o movimento”
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Nenhum acadêmico decidiu enfrentá-los com serenidade, só com derrisão. “Entendo por que os acadêmicos não querem dar atenção”, me disse Launiainen de Barcelona, para onde acaba de se mudar. É gastar tempo e energia com algo que é, no fundo, “como uma religião”. Não acreditam valer a pena tentar dissuadir os fiéis. No mundo atual, porém, todo movimento desse tipo embute um risco político. Basta ver o desprezo lunático pela ciência que tomou conta de temas como vacinação, mudança climática, armas de fogo ou mesmo a reforma da Previdência. Os “zetéticos” podem parecer apenas mais uma dessas seitas cheias de esquisitões inofensivos. Mas quem garante que em breve não estarão dando as cartas no meio ambiente, na saúde, nas relações exteriores ou nas universidades?
 
FLAT OUT WRONG
Petri Launiainen, Amazon (e-book)
2018 | 124 páginas | US$ 5,20















 

 

 

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