April 22, 2019

80 tiros e uma carta



Flávia Oliveira

 ilustração de andré mello

Querida Luciana,
Escrevo para expressar solidariedade à sua dor, para repudiar a brutalidade a que você e sua família, principalmente o Evaldo, foram submetidos. Eu já engravidei e tive um chá de bebê. Já celebrei a chegada iminente de filhos e filhas de mulheres que amo. O carro de vocês foi fuzilado, e seu marido perdeu a vida, a caminho de um chá de bebê. É particularmente cruel encontrar a morte ao se deslocar para um evento de celebração à vida.

O sentido do chá de bebê é presentear a criança que se avizinha e a mulher que a gera. É quase o ritual de viagem dos Três Reis Magos para festejar, com Maria e José, o nascimento do Menino Jesus. Lanço mão da metáfora cristã, porque assim as autoridades que hoje comandam a cidade, o Estado do Rio e o Brasil se denominam.
Para mim, Luciana, é incompreensível, inaceitável uma família, a caminho de um chá de bebê, ser atacada por militares do Exército com 80 tiros. Pior ainda, testemunhar o silêncio, a omissão, a indiferença de governantes autoproclamados cristãos. O presidente da República, um capitão reformado, não comentou o assassinato de Evaldo, informou o porta-voz Otávio do Rêgo Barros. O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, classificou a barbárie como incidente. O governador do Rio, Wilson Witzel, se permitiu não “emitir juízo de valor”.
O carro branco da sua família foi alvejado por brasileiros com atribuição constitucional de zelar por vocês, por nós. No desabafo tomado da forte emoção pela perda do seu marido, do seu melhor amigo, como declarou, você fez o diagnóstico correto. Sob a mais aguda dor, foi capaz de lembrar que disse ao Evaldo: “Amor, calma. É o quartel”.
Você, Luciana, aprendeu e acreditou que as Forças Armadas e a polícia existem para proteger, não para metralhar, cidadãos brasileiros. Já os militares que mataram seu marido foram ensinados a atirar e a mentir. Depois de executarem Evaldo Rosa, 51 anos, músico, pai de família, homens do Exército imputaram à vítima a culpa pelo crime. Dispararam 80 tiros, mataram seu marido e, por fim, tentaram executá-lo moralmente, acusando-o de ser um criminoso que atacara a patrulha.
Eu sou uma mulher negra casada, como você, há mais de duas décadas. Três semanas atrás, Luciana, vivi uma experiência assemelhada à sua. Era noite de sábado, nas imediações da área portuária. Estávamos num carro de aplicativo. O trânsito parou, e o motorista, sem entender que havia uma blitz, tentou cortar pela faixa da esquerda. Um policial de roupa camuflada nos apontou o fuzil.
O motorista freou, acendeu a luz e gritou o nome do aplicativo. O policial, fuzil apontado, ordenou que baixássemos os vidros. Ao ver o meu marido, o agente nos autorizou a seguir viagem. Ele não pediu documentos, não revistou os ocupantes nem o carro.
Os militares atiraram 80 vezes contra vocês, porque viram um homem negro ao volante, e supostamente havia criminosos em fuga num carro branco. O policial permitiu que o automóvel em que estávamos seguisse, porque dentro dele estava um homem branco. Além do assassinato do Evaldo, vocês foram vítimas do racismo que sustenta o sistema jurídico-policial brasileiro.
São suspeitos-padrão os jovens e os homens negros; aos homens brancos, a presunção de inocência. É por isso que o acusado do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes pode morar no mesmo condomínio do presidente da República. É por isso que brancos (51%) e pessoas com renda superior a dez salários mínimos (58%) confiam mais do que temem as forças policiais, segundo pesquisa do Datafolha. É por isso que jovens (53%), negros (55%), indígenas (60%), pobres (54%) e mulheres (55%) mais temem que confiam.
Outras Lucianas perderão seus Evaldos, Brunas ficarão órfãs de Marcos Vinicius (o filho morto de uniforme, a caminho da escola na Maré) e Rosilenes de Marias Eduardas (a filha assassinada dentro da escola em Acari), até que a sociedade brasileira se convença de que nenhuma nação se sustenta na brutalidade e no racismo institucional. Eu espero, Luciana, que esse dia chegue logo, para que não tenhamos de ver nenhuma outra brasileira chorar como você chorou.

Meu abraço,

 

 

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