February 3, 2019

A história de Lulu





Tanumakaru, avó de Lulu, conta que criava a pequena índia com 
dificuldades. Um tratamento dentário na cidade grande 
teria sido a razão da viagem da neta, que nunca mais voltou 
Foto: Jorge William / Agência O Globo  

Natália Portinari e Vinicius Sassine

Desde que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, assumiu uma cadeira no primeiro escalão do governo do presidente Jair Bolsonaro, uma ferida de 15 anos atrás voltou a arder no Xingu. A aldeia Kamayurá, no centro da reserva indígena no norte de Mato Grosso, é o berço de Kajutiti Lulu Kamayurá, de 20 anos. Damares a apresenta como sua filha adotiva. A adoção, porém, nunca foi formalizada legalmente. A condição em que a menina, então com 6 anos de idade, foi retirada da aldeia é motivo de polêmica entre os índios.
Em depoimentos registrados em vídeo por ÉPOCA, os kamayurás afirmam que Damares levou a menina irregularmente da tribo. Alguns detalhes se perdem na memória dos índios, mas há um fio condutor que une o relato de todos eles. Lulu deixou a aldeia sob pretexto de fazer um tratamento dentário na cidade e nunca mais voltou. A história de Lulu é lembrada no Xingu de diferentes formas. Os kamayurás não têm a mesma relação com o calendário do homem branco. Contam que Lulu deixou a aldeia “há muito tempo”, mas não sabem o ano. A maioria indica a altura da menina com a mão para marcar sua idade. Lembram que estava “grandinha”. Contam que Damares e Márcia Suzuki, amiga e braço direito da ministra, se apresentaram como missionárias na aldeia. Disseram-se preocupadas com a saúde bucal da menina. “Márcia veio no Kuarup ( festa tradicional em homenagem aos mortos ), olhou os dentes todos estragados e falou que ia levar para tratar”, contou Mapulu, pajé kamayurá e irmã do cacique.
Lulu nasceu em 20 de maio de 1998, segundo seu registro. Na história contada pelos kamayurás, sua mãe biológica, Parawairu, não tinha condições de criá-la. Foi Piracumã, tio da menina, quem teve a ideia de deixar a criança aos cuidados da avó paterna, Tanumakaru, uma senhora de pele craquelada, cega de um olho. Lulu cresceu nos braços da anciã. A avó, que virou mãe afetiva, não tinha leite no peito. Eram tempos difíceis. A aldeia sofria com escassez de remédios e alimentos, e a menina chegou a ficar desnutrida. Os kamayurás lembram que a avó atravessava as madrugadas cozinhando polvilho para tentar matar a fome da neta.

Os indígenas se referem a Piracumã como pai de Lulu. Sua mulher, Kamaiulá, é tida como mãe “oficial” de Lulu no registro. Kamaiulá estava longe da aldeia fazendo um tratamento médico quando ÉPOCA a procurou na semana passada. Piracumã acompanhou a mulher na viagem. A reportagem tentou fazer contato com os pais de Lulu por intermédio de outros membros da aldeia, mas não obteve resposta. Na quarta-feira, depois de já ter avisado a ministra sobre o teor da reportagem, ÉPOCA recebeu a informação de que o casal estava a caminho de Brasília. Eles não se manifestaram até a conclusão desta edição.

“Nessas comunidades, as irmãs de sua mãe são meio sua mãe, e os irmãos do pai são meio que o pai também”, explicou a antropóloga Marina Vanzolini, professora da Universidade de São Paulo (USP) especializada em índios do Xingu. “As crianças sabem quem é o pai e quem é tio, claro, mas é uma passagem tranquila. Também é muito comum que avós peguem filhos rejeitados para criar e levem para outra aldeia, como foi feito, mesmo quando a mãe não está de acordo.”
Hoje quase octogenária, com a saúde frágil, Tanumakaru não consegue enxergar nem andar sem ajuda. No fim de uma tarde nublada, na semana passada, surgiu na porta da oca apoiada em uma bengala, auxiliada por uma de suas netas, para se sentar em frente à oca do cacique, onde estava a reportagem de ÉPOCA. Falava em tupi, com pouca articulação, e era traduzida pelos demais índios familiarizados com o português. Contou que a única menina que criou como se fosse sua filha foi Lulu. Era uma recém-nascida frágil e magra que chegou a ser levada de avião para um tratamento pelos servidores que cuidam da saúde dos indígenas na região.

Um desses funcionários, que não quis se identificar, disse à reportagem que a criança “fechava a boca”, não conseguia comer e teve de receber soro. Atendida por profissionais, a menina superou a fragilidade dos primeiros anos. Pelo uso regular de mamadeira, porém, acabou crescendo com os dentes tortos. Foram esses problemas de dentição que uniram os destinos de Lulu, Damares e os kamayurás, lembra a anciã, mudando de semblante. “Chorei, e Lulu estava chorando também por deixar a avó. Márcia levou na marra. Disse que ia mandar de volta, que quando entrasse de férias ia mandar aqui. Cadê?” Questionada sobre se sabia, no momento da partida de Lulu, que ela não mais retornaria, foi direta: “Nunca”. Ela é a “verdadeira” mãe de Lulu, afirmaram os índios.

À esquerda, a pajé Mapulu. Ela diz que os índios no Xingu querem a volta de Lulu para ajudar a cuidar da avó, cega e com dificuldade de locomoção Foto: Jorge William / Agência O Globo
À esquerda, a pajé Mapulu. Ela diz que os índios no Xingu querem a volta de Lulu para ajudar a cuidar da avó, cega e com dificuldade de locomoção Foto: Jorge William / Agência O Globo
No início da década passada, a então assessora parlamentar Damares Alves e sua amiga Márcia Suzuki, da Igreja Metodista, fundaram a organização não governamental Atini, declaradamente voltada para assistência a populações indígenas. Quando foi escolhida para ser ministra, Damares descreveu sua filha como uma “sobrevivente” e contou que adotou Lulu com 6 anos de idade. Damares sempre se definiu como uma amiga dos índios que criaram a menina.
Ao contar sua história com Lulu, porém, em diversas ocasiões descreveu de forma sombria os índios. “Minha filha foi salva do sacrifício”, disse a um canal evangélico no YouTube. “No povo dela, quando Lulu nasceu, mãe solteira não podia criar filhos e tinha de matar o bebê.” Lulu acabou “sendo abandonada”. A família que havia pegado Lulu para criar “não estava dando conta”, o que, embora ela não conclua, teria justificado a adoção. “Lulu tinha muitas dores físicas e emocionais”, disse na gravação.

Em 2013, em um culto, Damares fez um relato ainda mais dramático da infância de sua filha. Além de ter sido salva do infanticídio e maltratada pela miséria dos kamayurás, a menina seria escrava do próprio povo. “Quero mostrar para vocês uma menina de 6 anos, que foi escravizada em sua aldeia e tem uma história terrível. Mas eu não vou contar a história, não, porque esta é minha filha. Eu quero mostrar como está minha filha hoje: a cara da mãe”, disse, projetando fotos de Lulu, depois de enumerar diversos casos de crianças que teriam sido salvas do sacrifício.
O Parque do Xingu é um território de 26.400 quilômetros quadrados, cerca de 17 vezes o tamanho do município de São Paulo. Encravado no norte de Mato Grosso, hoje é cercado por extensas plantações de soja que avançam cada vez mais sobre a área de floresta. O desenho da demarcação atual, que protege a mata e a população de milhares de indígenas de diferentes etnias, existe desde 1978. É preciso andar ao menos duas horas de carro e mais 20 minutos de barco, trazendo combustível da cidade em galões, para chegar à aldeia Kamayurá, à beira de uma enorme lagoa.

Os kamayurás, que se reúnem todas as noites para assistir ao Jornal Nacional na televisão instalada na oca central da aldeia, ficaram a par da série de polêmicas que marcaram as primeiras semanas de Damares no ministério. Frases como “O Estado é laico, mas essa ministra é terrivelmente cristã” e “É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa” movimentaram as redes sociais e também as conversas na aldeia. No Fantástico , Damares disse que sua filha visita a família kamayurá regularmente, o que os indígenas ouvidos por ÉPOCA negaram.
A primeira visita de Lulu à aldeia, relataram os indígenas, só aconteceu há cerca de dois anos. Tainá, prima de Lulu, contou que não conseguiram conversar porque a menina disse ter esquecido o tupi. Se a filha adotiva de Damares não aparecia no Xingu, um dia a aldeia tentou ir até a cidade, relataram novamente os indígenas. Prima de Lulu, Kuéku disse que, há alguns anos, tentaram fazer contato com Damares para visitar Lulu em Brasília. “Damares mandou a menina para São Paulo, para não ter como ver a mãe”, disse Kuéku.
As acusações de maus-tratos e infanticídio feitas pela ministra são rebatidas com veemência pelos kamayurás. “Quem sofreu mesmo, quem ficava acordada fazendo mingau era a vovó Tanumakaru, não a Damares. Ajudei a buscar leite nessa época. Lulu dormia com a vovó na rede”, disse a pajé Mapulu. “Chegou aqui a notícia de que estavam dizendo que tentaram enterrar a Lulu, que ela não podia mais voltar para a aldeia porque estava ameaçada. Tudo mentira. Damares cometeu um grande erro. É mentira dizer que Lulu foi resgatada. Se Damares tivesse visto Lulu em um buraco no chão e pegado ela de lá, podia dizer isso”, complementou a pajé.

Os kamayurás não negam seu passado de sacrifícios. No caso de Lulu, foi Piracumã, o tio da criança, quem insistiu para que a mãe não enterrasse o bebê. O costume, segundo os índios, ainda era muito comum, especialmente em casos de mães solteiras. A pajé Mapulu, porém, negou que eles hoje ainda pratiquem infanticídio. “Antigamente, tinha o costume de enterrar. Hoje, a lei mudou”, contou Mapulu. “Se a mulher fica grávida, outro pega. Eu tenho três filhos sem pai. Antigamente, não aceitava. Hoje mudou, a gente é brasileiro, tem cartão (de identidade) .” Para ilustrar, ela apontou para trás: “Todas essas aí? Sem pai”. São cinco meninas.
A adoção entre familiares é comum na aldeia. Os pais biológicos não são, necessariamente, os que criam o bebê na fase de amamentação. Quem cria o neném, no entanto, tem um vínculo com ele pelo resto da vida. Quando crescem, as crianças têm certas obrigações, como cozinhar a tapioca e o peixe para os familiares mais velhos. É para cuidar de Tanumakaru que os indígenas pedem o retorno de Lulu. Para quem mora numa metrópole, a razão pode parecer esdrúxula. Mas, na tribo — onde ela nasceu e de onde foi levada —, as tarefas são vistas como uma retribuição do cuidado que a menina recebeu dela, sua “verdadeira” mãe.

A família negou que tenha rancor da menina. “Só tem eu de filha para cuidar da minha avó, levar ela no banheiro, cozinhar”, disse Kuéku. “Meu pai sempre fala, quando a vovó quer comer biju: ‘Cadê Lulu? Por que a branca levou?’”, contou Kuéku.
Apesar das acusações contra Damares, kamayurás que moram em Brasília defendem a ministra. Ali, vive uma comunidade de cerca de 30 kamayurás — a maioria ligada à ONG de Damares. Na última terça-feira, após saber da visita da reportagem à aldeia, no Xingu, Makal, o pai de uma menina indígena com uma doença degenerativa atendida na capital pela ONG, procurou ÉPOCA para contar uma história positiva sobre Damares. A ministra tinha acabado de receber perguntas da revista sobre o conteúdo da apuração.
Segundo o kamayurá, Damares teria, “há mais ou menos dois anos”, procurado os familiares de Lulu e comunicado a decisão de devolver a garota, já com 18 anos, à aldeia. Teriam sido os familiares, segundo Makal, que se recusaram a receber Lulu, alegando que ela deveria ficar em Brasília e estudar: “Eles é que quiseram que ela ficasse”, disse.
Além de isentar Damares, o indígena acusou os kamayurás do Xingu de tentarem prejudicar a ministra. “As pessoas mentem. Estão querendo se aproveitar da situação para criticar a ministra.” Para Makal, a Atini é sua “segunda aldeia”. Se não fosse pela assistência da ONG de Damares, sua filha, Sheila, não teria sobrevivido. “A intenção da Damares é que Lulu volte para a comunidade”, disse.


Lulu e a ministra Damares. A jovem está prestando vestibular e é tida como “grudada” com a mãe, a quem defendeu nas redes sociais Foto: Reprodução
Lulu e a ministra Damares. A jovem está prestando vestibular e é tida como “grudada” com a mãe, a quem defendeu nas redes sociais Foto: Reprodução
Em outubro do ano passado, Damares encaminhou Lulu para um cargo comissionado, com salário entre R$ 2.389 e R$ 4.779 — a depender de gratificações —, no gabinete do deputado Erivelton Santana (Patriota-BA). “Não tive oportunidade de conversar muitas vezes com a Lulu. Ela é esperta, expedia documentos, atendia o telefone, fazia atendimento para o pessoal”, disse o deputado a ÉPOCA. Questionado sobre se Damares havia indicado a filha, disse que foi “um amigo em comum”. A carreira de assessora parlamentar, no entanto, durou pouco. Foi encerrada em 6 de dezembro, mesma data em que a mãe foi anunciada ministra por Bolsonaro.
Mapulu, a pajé, disse que toda a comunidade quer o retorno dos kamayurás ao Xingu. Existe um conflito entre quem defende a preservação da aldeia e o desejo de alguns indígenas de viver na cidade, o que afeta também crianças. É isso que explica o discurso dissonante entre os índios no Xingu e quem mora em Brasília e conhece Damares.
“Acabou essa ideia de dar criança para o branco criar. A gente entrou na lei do branco. Se você levar um menino, chega a Funai na sua casa e pergunta ‘Cadê menino de volta?’.” Amanuá Kamayurá, servidor da Fundação Nacional do Índio (Funai) que atende o Xingu, concorda. “Todo índio que sai daqui tem de passar pela Funai. Acordo verbal não tem valor nenhum. Tem de ter acordo judicial, tem de ter ação, tem de ter autorização.”


A sede da Atini, ONG que se dedica a ajudar índios e combater o que chama de infanticídio em aldeias Foto: VINICIUS SASSINI
A sede da Atini, ONG que se dedica a ajudar índios e combater o que chama de infanticídio em aldeias Foto: VINICIUS SASSINI
Para estar de acordo com a lei, a adoção de uma criança indígena precisa passar pelo crivo da Justiça Federal e da Justiça comum. A adoção, ou mesmo apenas a guarda ou tutela, depende de um aval da Funai, que analisa se a identidade cultural, os costumes e as tradições da criança serão minimamente respeitados. Neste caminho, o Ministério Público Federal também analisa casos em que uma criança indígena passa para o poder de uma família de não índios. Esse procedimento foi formalizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 2009, mas já era exigido pela Funai e pelo Judiciário antes disso.
A partir do momento em que alguém abriga uma criança de outra família, mesmo na comum prática de “pegar para criar”, é necessário procurar a Vara da Infância e da Juventude para regularizar a situação legal. Caso contrário, pode haver empecilhos na matrícula da criança na escola ou no atendimento no sistema de saúde. Esse tipo de procedimento envolvendo indígenas é raro na Justiça local em Brasília, por exemplo. Nos últimos 15 anos, os profissionais que atuam na área, ouvidos por ÉPOCA, se recordam apenas de uma adoção e de uma guarda desse tipo.
A própria Damares, antecipando-se a eventuais questionamentos a respeito da “adoção” de Lulu, afirmou ao programa Fantástico, da TV Globo, que a menina não era formalmente adotada, mas que via a família biológica com frequência. Damares reconheceu que nunca procurou a Justiça para regularizar a adoção ou a guarda da menina. No processo, uma equipe de estudos psicossociais deve analisar se há vínculos entre a criança e os adotantes e se a família mais extensa — tios, avós, primos — corroboram a adoção. No caso dos indígenas, deve ser ouvida a aldeia. Uma lei de 2009 obriga que os novos pais façam um curso de preparação psíquica e social. Profissionais que atuam na área lembraram que nenhuma criança pode ser “transferida” para outra família sem autorização judicial. Isso vale, inclusive, para crianças criadas por avós.

Maristela Basso, professora de Direito Internacional e Privado da USP, explicou que, no processo de adoção, “o antropólogo verifica se a criança vai encontrar no lar que a abriga condições de manter sua memória, sua tradição, sua cultura”. É preciso que ela tenha condições, no novo lar, de manter seus hábitos e de se adaptar gradualmente. A adoção costuma ser permitida quando o menor é rejeitado pela aldeia ou tem problemas de saúde. “Se a criança é muito pequena, a adaptação no mundo do branco é mais rápida”, disse a advogada. Não foi o caso de Lulu, cujos parentes a criaram bem.
O crime surge apenas quando se configura um rapto, um sequestro de incapaz, ou mesmo os chamados consentimentos viciados, em que os pais são induzidos a entregar suas crianças. Há julgados no Superior Tribunal de Justiça (STJ) de casos em que os pais não acreditam se tratar de um rapto e são induzidos a erro. “O instituto da adoção é de elevada magnitude e revestido de nobreza, ética, verdade e afeto, e isso não combina com atos ilícitos”, afirmou Walter Gomes de Sousa, supervisor da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância do Distrito Federal.
A “adoção” feita por Damares tem quase 15 anos. Assim, mesmo que a Justiça considerasse que houve algum tipo de crime, ele poderia estar prescrito. Um maior de idade pode ser adotado por qualquer um que tenha mais de 16 anos de diferença e queira adotá-lo, disse Maristela Basso. “Se for um menor, aconselharia devolver à aldeia e requerer a adoção pela via judicial imediatamente. Mas um maior de idade não é mais indígena para esse fim.”

Na quarta-feira, a blogueria indígena Ysani Kalapalo publicou um vídeo em que afirma que ÉPOCA entrou no Xingu de forma ilegal para prejudicar Damares. O vídeo foi reproduzido por bolsonaristas nas redes sociais, mas a informação é mentirosa. A autorização para a entrada da reportagem foi cedida por Kumaré Txicão, coordenador regional da Funai no Parque do Xingu, em 22 de janeiro.
A ONG de Damares, a Atini, tem cunho religioso e missionário. O movimento se declara pelo resgate de crianças indígenas em situações de risco de morte. Basicamente, tem uma única bandeira: salvar essas crianças do infanticídio.
A Atini virou uma organização não governamental, registrada na Receita Federal, em dezembro de 2006. Os principais líderes fundadores foram Damares e o casal de missionários Edson e Márcia Suzuki, que também criaram uma criança indígena.
A base da ONG é uma chácara de 5 alqueires, no Núcleo Rural Casa Grande, na região administrativa do Gama, no Distrito Federal. Diversas organizações religiosas estão na região. Poucas são as placas que indicam o endereço da Atini.
ÉPOCA esteve no local no último dia 25. Caseiros cuidam do espaço, que tem diversas casas e chalés, onde ficam famílias de indígenas. Num campinho de futebol, quatro crianças indígenas brincavam no momento da visita da reportagem. Os caseiros não quiseram falar.

Em mais de 12 anos de existência formal, a atuação da Atini passou a ser alvo de investigações por rapto de crianças indígenas. ÉPOCA teve acesso a documentos referentes à atuação do casal Márcia e Edson e a um outro caso envolvendo um casal do Rio de Janeiro. O pano de fundo é sempre o risco do chamado infanticídio dessas crianças em suas tribos e uma atuação da ONG na acolhida de crianças.
A atuação de Márcia e Edson nos suruwahá ocorreu em 2006, ano do registro formal da Atini. Os dois missionários foram contratados pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para atuar como intérpretes da língua suruwahá no atendimento a uma criança chamada Iganani, diagnosticada com retardo de crescimento e de desenvolvimento neuropsicomotor. A partir daí, teria ocorrido a retirada de um grupo de indígenas da comunidade.

A aldeia dos kamayurás fica à beira de um enorme lago. À noite, os índios se reúnem para assistir ao Jornal Nacional Foto: Jorge William / Agência O Globo
A aldeia dos kamayurás fica à beira de um enorme lago. À noite, os índios se reúnem para assistir ao Jornal Nacional Foto: Jorge William / Agência O Globo
Dois extensos relatórios da Funai, elaborados em 2011, registram o que ocorreu. Para a Funai, houve uma “subtração” dos índios pela organização evangélica Jovens com uma Missão (Jocum), entidade que contou com a atuação do grupo fundador da Atini. Os suruwahás eram considerados de recente contato com a cultura branca. Deixaram a tribo a menina Iganani e sua mãe, Muwaji Suruwahá.
Segundo a Atini, Iganani foi condenada à morte em razão de uma paralisia cerebral. A forma escolhida para a morte foi o envenenamento pela própria comunidade, segundo a versão da ONG. Muwaji, então, teria procurado os missionários para “enfrentar” a própria tribo. Mãe e filha foram levadas para São Paulo para tratamento médico.


Os relatórios da Funai apontam que outras duas crianças foram retiradas da comunidade posteriormente: Ahuhari, de 12 anos, e Inikiru, de 9. Márcia e Edson também foram responsáveis por essa “subtração”, segundo os documentos.
Os técnicos da Funai descreveram que Ahuhari vivia o rito de passagem da infância para a fase adulta. Tinha acabado de caçar uma primeira anta, o que é considerado uma grande honra para os suruwahás. As crianças foram levadas para Brasília. E assim descreveu uma professora sobre o comportamento de Ahuhari na escola: “Ainda não fala o português, não respeita a professora, não interage com os colegas, está sempre com um pedaço de pau na mão e fala muito em flechas”.
Os parentes das crianças exigiram o retorno delas à tribo, e em 2008 o Ministério Público Federal foi informado da situação. Em 2009, todos eles foram encontrados na chácara da Atini — a mesma visitada por ÉPOCA. Por mais de uma vez, os relatórios da Funai citam que a comunidade não se conformou com a ausência das crianças e que não houve consentimento para a saída do grupo.
A Funai concluiu naquele ano de 2011 ser necessário pedir uma “busca e apreensão de incapazes”, de forma que a guarda fosse devolvida à aldeia. Em setembro de 2013, num relatório de quatro páginas enviado à Justiça Federal, o delegado da Polícia Federal Manoel Vieira da Paz Filho, com atuação em Brasília, concluiu que não foram confirmadas as informações sobre retiradas de indígenas de suas tribos sem o conhecimento de servidores da Funai e dos líderes das tribos.









Para chegar a essa conclusão, o delegado ouviu uma integrante da Jocum e Muwaji Suruwahá. A mãe disse que estava “incerta” sobre ter interesse em voltar a viver em sua aldeia e que necessitava continuar em Brasília para o tratamento da filha.
Infanticídio é um termo evitado pelo Ministério da Saúde. A pasta prefere neonaticídio. Em uma resposta a questionamentos de ÉPOCA, a assessoria deu a dimensão da polêmica envolvendo o assunto: “Por definição, o neonaticídio é um fenômeno complexo que desafia os paradigmas dos sistemas de saúde não indígenas, seus códigos morais e jurídicos e exige uma adequada compreensão do contexto sociocultural onde ocorrem”.

O ministério chamou de “suposição” considerar como neonaticídios as mortes por agressão de indígenas de até 1 ano de idade registradas pelo sistema de saúde. Em 2012, foram 57 mortes por agressão, e 37 em 2016, segundo dados da própria pasta, que não detalhou em quais etnias esses óbitos foram registrados.
ÉPOCA obteve, porém, duas notas técnicas produzidas em 2015 e em 2016 pela Secretaria Especial de Saúde Indígena, do Ministério da Saúde, que detalham a extensão da prática do neonaticídio — ou infanticídio — no Brasil, por etnia. O primeiro documento produzido pela secretaria do Ministério da Saúde afirma terem ocorrido 40 mortes em 2014, assim distribuídas: 32 nos ianomâmis, uma nos sanumás e uma nos xirianas, registradas pelo distrito existente nos ianomâmis; duas nos kaingangs, registradas no distrito Interior Sul; duas nos kaiowás, em Mato Grosso do Sul; uma nos barés, registradas no distrito de Manaus; e uma nos guajajaras, no Maranhão.

A nota técnica lembra que o Código Penal prevê o infanticídio como o ato de “matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”. “No caso indígena, a escolha de não deixar o neonato sobreviver existe desde antes do contato com os costumes brasileiros não indígenas e não é considerado, por eles, como crime ou um ato condenável”, continua. Ainda segundo o documento, “questões sociais” levam a mãe indígena a essa decisão: falta de alimentos, comunidades desestruturadas, falta de apoio do pai, nascimento de gêmeos. “Para os indígenas, o neonato que ainda não recebeu a primeira amamentação ainda não possui pessoalidade”, cita a nota.

A secretaria vinculada ao ministério lembra que a prática é mais comum entre os ianomâmis e que também “há casos relatados” entre os suruwahás, povo com “pouquíssimo contato” com não indígenas. As mães ianomâmis têm partos sozinhas, na floresta, e escolhem pela não sobrevivência dos bebês em situações de dificuldades extremas. Os casos citados no relatório são falta de saúde da mãe, falta de apoio do pai, malformação e deficiência do bebê. A etnia ianomâmi aceita a prática e dá autonomia de decisão à mãe.
Depois da primeira nota técnica, a Secretaria Especial de Saúde Indígena produziu um segundo documento, em 2016, para dizer que os primeiros dados tinham equívocos. Os casos de neonaticídios se restringiam a três etnias, e não a sete, segundo a secretaria. Teriam sido, na verdade, 39 mortes entre os ianomâmis, uma nos sanumás e uma nos xirianas em 2014. Em 2015, foram 41 nos ianomâmis.

Tanto o MPF em Roraima, onde estão os ianomâmis, quanto o MPF no Rio Grande do Sul, onde estão os kaingangs, investigaram em inquéritos civis públicos se a Funai foi omissa na adoção de políticas públicas para coibir infanticídios em comunidades indígenas. Os procuradores da República não encontraram indícios de omissão e arquivaram os inquéritos, o que foi confirmado pelo colegiado responsável por avaliar os arquivamentos, no âmbito da Procuradoria-Geral da República (PGR).

No mesmo culto em que mencionou a história de sua filha Lulu, em 2013, Damares disse, sem citar fontes, que 450 crianças indígenas são enterradas por ano e que de 30 a 40 etnias mantêm a prática do infanticídio. “Lá no Xingu, quando nascem crianças gêmeas, os índios enterram as duas crianças índias”, afirmou sem ser contestada. Uma das bandeiras de Damares, que contou com sua atuação direta no Congresso, é o Projeto de Lei que criminaliza eventual leniência de autoridades com o infanticídio. No culto em 2013, ela defendeu a aprovação da lei. “A Igreja Evangélica brasileira pode dizer para eles o seguinte: você não consegue criar essa criança paralítica? A gente cria. Dá para nós. A gente cuida, a gente quer ficar com ela.” À época, segundo ela, a Atini já havia “resgatado” 37 crianças.


O Projeto de Lei encampado por Damares, bem antes de ela ser uma ministra de Estado, considera “nocivas” as práticas de infanticídio de crianças indígenas. A proposta elenca casos de “homicídios de recém-nascidos” e obriga a comunicação dos casos às autoridades. Se isso não ocorrer, pode configurar-se omissão de socorro, com pena de prisão de um a seis meses, conforme o projeto. Constatada a intenção de neonaticídio, as crianças devem ser retiradas das comunidades e ser colocadas em abrigos. O projeto foi aprovado em 2015 na Câmara e encaminhado ao Senado. Levou o nome de Lei Muwaji, o nome da mãe suruwahá que foi retirada da tribo com sua filha pelas ONGs Jocum e Atini. Defensores de povos indígenas preveem que a lei abriria margem para uma punição indevida de agentes da Funai.
A reportagem procurou a ONG Atini e questionou se todos os indígenas atendidos enfrentavam, de fato, risco de morte. A advogada da organização, Maíra de Paula Miranda, disse que a chácara acolhe hoje seis crianças e outras cinco crianças vivem com a família em outro endereço no Gama, no Distrito Federal. Duas foram “vítimas ou ameaçadas de tentativa de infanticídio”, segundo a advogada. Outros dois têm doenças para as quais não há recursos nas aldeias. A advogada não forneceu informações sobre as demais crianças.

Segundo Miranda, todas as crianças estão na companhia de seus pais, sendo essa a política da Atini. Ao todo, a ONG já atendeu 51 crianças, disse a advogada. “Elas eram crianças que sofriam risco de morte ou de maus-tratos nas aldeias. Várias delas puderam retornar para a aldeia ou para o entorno da mesma, quando o risco diminuiu.” Miranda afirmou que a Atini nunca fez encaminhamentos para adoção.
A advogada reiterou que o relatório sobre os índios suruwahás concluiu que “não foram confirmadas as informações sobre retiradas de indígenas de suas tribos sem o conhecimento de servidores da Funai e dos líderes das tribos. A Atini jamais cometeu qualquer tipo de ato ilícito contra qualquer povo indígena. Muito pelo contrário, a entidade sempre lutou a favor dos direitos dos povos indígenas e da promoção de sua cultura e práticas tradicionais, desde que não violem os direitos humanos universais e seu bem maior: a vida!”.
A ministra Damares Alves procurou ÉPOCA quando a reportagem ainda estava no Xingu. Disse que estava “à disposição para responder às perguntas (...) sobre nossas crianças, sobre minha filha e sobre as famílias”. “Não temos nada a esconder. Mas insisto: tratem tudo com o olhar especial para estes povos, para as mães e crianças que sofrem”, afirmou, via WhatsApp.

Em Brasília, no entanto, ela se recusou a dar entrevista e respondeu apenas parcialmente a 14 questionamentos da revista. “Todos os direitos de Lulu Kamayurá foram observados. Nenhuma lei foi violada. A família biológica dela a visita regularmente. Tios, primos e irmãos que saíram com ela da aldeia residem em Brasília. Todos mantêm uma excelente relação afetiva. A ministra Damares Alves não integra a ONG Atini desde 2015. Portanto, todas as perguntas relacionadas à entidade devem ser direcionadas para lá.”
Perguntamos por que Damares não devolveu a criança à aldeia após o tratamento. “Lulu Kamayurá já retornou à aldeia. Ela deixou o local com a família e jamais perdeu contato com seus parentes biológicos.” A questão sobre não ter adotado formalmente Lulu foi ignorada.
Lulu Kamayurá apagou sua conta no Facebook desde que Damares virou ministra. Em seu perfil, porém, vinha defendendo a mãe adotiva de polêmicas recentes. Hoje com 20 anos, estuda para o vestibular. Segundo pessoas ligadas a Damares ouvidas por ÉPOCA, a ministra e a filha têm uma relação muito próxima. Lulu frequenta a igreja evangélica com a mãe, trabalhou na Atini com ela e tem sentido falta de Damares depois que virou ministra.














 


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