April 4, 2018

Sonho vive no fundo do rio


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Gumercindo da Silva Anjos, 75, vive às margens do lago da barragem de Sobradinho - Daniel Marenco / Agência O Globo

SOBRADINHO e REMANSO, BAHIA - “Eu vivia em Bossoroca e sonhava melhorar. Bossoroca está no fundo das águas. Mas o jumento que levava água está no mesmo lugar”, diz seu Gumercindo da Silva dos Anjos, de 75 anos. Ele nasceu em Sento Sé, de onde Bossoroca era distrito. Hoje mora na cidade de Sobradinho, que não existia antes do lago e surgiu a partir do canteiro de obras da hidrelétrica.

A vida de seu Gumercindo condensa a do seu sertão. Em Bossoroca, plantava como quase todo mundo ali. Cultivava mandioca, feijão e abóbora. Veio o lago, Bossoroca foi para o fundo d’água e ele virou pescador. Se mudou para a nova Sobradinho com a mulher, Maria, e os nove filhos — “todos foram para a escola. Hoje não precisam de ninguém”. Mas, à medida que envelhecia, o peixe também desaparecia. Juntou o que tinha e virou pequeno comerciante.


Foi em Sobradinho que seu Gumercindo, que faz questão de andar pela cidade com o velho e imenso chapéu de pescador do São Francisco, conheceu Francisco Ivan Aquino, de 58 anos. Aquino chegou a Sobradinho em 1973. Veio com a família. O pai trabalhava na usina hidrelétrica. Viu o município nascer e crescer. De todos os municípios do entorno do reservatório, Sobradinho tem a melhor situação, 77% dos habitantes têm coleta de esgoto. Mas não há tratamento. Ele segue a céu aberto direto para o São Francisco
.
— E não é apenas o esgoto doméstico. A agricultura joga seus resíduos no lago, e o uso de agrotóxicos é elevadíssimo. Isso em toda a região — diz Aquino, que é o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Lago de Sobradinho

A água da cidade é captada direto do lago, por meio do Canal da Serra da Batateira, uma obra nunca concluída. Uma bomba coberta por plásticos e um cano emendado se encarregam de puxar a água barrenta do São Francisco de dentro do lago para o canal.

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— O canal está assoreado, seu leito não foi concluído e a captação é precária. As comunidades perto do centro sofrem com a falta d’água. A um quilômetro do lago, já temos problemas de escassez e se recorre ao caminhão-pipa. Você vê o lago da janela, mas precisa pedir à prefeitura para receber o caminhão-pipa — reclama Aquino.

Nos projetos irrigados da periferia de Sobradinho, a situação não é melhor do que nas cidades. Os pequenos produtores rurais reduziram a área plantada à metade na comunidade de Tatauí 3. O Dia do Rio, instituído no ano passado pela Agência Nacional de Águas (ANA) para racionalizar o consumo em meio à crise hídrica, foi voluntariamente ampliado. No Dia do Rio, toda quarta-feira, a água só pode ser usada para consumo humano e dos animais. Os setores elétrico, minerador e agrícola param.
— Não tivemos opção e decidimos não irrigar também no domingo. Não tem água. A chuva desse ano melhorou um pouco as coisas, mas não vai durar — resigna-se Jean Carlos Novaes, de 38 anos. Ele tinha dez hectares com milho, feijão, melancia e abóbora. Agora tem cinco.
Moradores de Sobradinho utilizam como área de lazer à margem do rio Sobradinho junto à barragem - Daniel Marenco / Agência O Globo
Bossoroca, vez por outra, revive nos sonhos de seu Gumercindo, afinal “quem não tem saudade, não tem coração”. Das promessas de água farta, prefere não lembrar:

— Há 43 anos criaram esse reservatório. Para explorar energia, prometeram água encanada e boa para todo mundo. Cansei. Era fanático por política, desisti. A gente sabe que não se vende o mesmo bode duas vezes. Mas aqui as promessas se repetem a cada eleição.


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