April 18, 2018

HQ exigente faz Twin Peaks parecer cidadezinha normal


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ÉRICO ASSIS
São Paulo 
 
Maria é a que concorria em concursos de beleza, que se casou com um gângster, que às vezes sente que um fantasma bate na sua cabeça com uma pá e que é mãe de Luba.

Humberto é o garoto de olhos doidos que se deslumbra ao descobrir livros de história da arte e resolve esculpir os habitantes de Palomar --esculturas que depois joga no rio.

Casimira é a garotinha que perdeu o braço e usa a prótese de porrete ou tocha. Doralís, outra filha de Luba, vira paquita de programa infantil. Angel é o ex-presidiário.

Em "Diastrofismo Humano", segunda coletânea portentosa dos quadrinhos de Gilbert Hernandez, o leitor tem desculpa para se perder entre tantos, tantos personagens e suas vidas. Aparentemente, é intencional.

Hernandez já tinha ouvido todas as comparações entre o realismo fantástico de sua fictícia Palomar e "Cem Anos de Solidão", ou com as telenovelas mexicanas. Aí, parece que resolveu ligar o turbo: o elenco dobrou, os saltos para passado e futuro aceleraram e, para entender um fio da trama, às vezes você tem que ter em mente cenas aparentemente despropositadas de cem páginas ou na coletânea anterior do autor.

Iniciadas no começo dos anos 1980, as histórias de Palomar saíam em capítulos na revista Love & Rockets, marco do quadrinho indie criada por Gilbert e seus irmãos. As histórias de "Diastrofismo" são do auge da revista.

Há diferenças fortes entre as duas metades do novo volume. Na primeira, a trama com um assassino serial na cidadezinha mexicana tenta alinhavar vários desenvolvimentos na vida dos personagens.
Essa trama maior, porém, lembra um guarda-chuva pelo qual pingam subtramas que não parecem tão sub. O que Hernandez quer mesmo é ficar contando draminhas cotidianos.

Chega a ser irônico: os palomarinos quase ignoram a ameaça do assassino, pois estão mais ligados em sexo, babosas fritas (espécie de lesma que se come na cidade), brigas de família. O leitor também é levado a curtir mais esses momentos.

Já a segunda metade, a partir de "Adeus, Minha Palomar", é a da super-rotação. Hernandez não só despeja avanços na vida das personagens ou conta suas origens. Faz isso com mudanças de cena constantes e saltos temporais que exigem concentração do leitor.

Se nos quadrinhos mais comuns você se guia nessas transições pelas cores ou pela virada de página, aqui o autor conscientemente nega esses artifícios ao leitor e exige atenção total. Colas com o nome dos personagens e uma descrição rápida, no início e no final do volume, ajudam um pouco. Só um pouco.

Misture ainda os elementos sobrenaturais, a sexualidade (de todas as cores) à mostra, os comentários sobre política, racismo, sexismo, maternidade, fronteiras e paixões avassaladoras que, perto de Palomar, Twin Peaks vira uma cidadezinha normal.

Tudo é pano de fundo para jornadas transformadoras das personagens. O "diastrofismo" —a movimentação das placas tectônicas—, como diz o título, acontece em nível humano. Mas toma proporções reais na última história.

DIASTROFISMO HUMANO
Autor Gilbert Hernandez
Tradutora Cris Siqueira
Editora Veneta
Preço R$ 89,90 (252 págs)



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