February 11, 2018

Terra de ninguém


Cora Rónai

A Aliança Francesa fica na Duvivier, nós morávamos no Bairro Peixoto. Para quem não conhece Copacabana: uns oito quarteirões de distância, segundo o Google menos de dois quilômetros que se cobrem a pé em vinte e poucos minutos. Eu tinha aula às quartas-feiras, no fim da tarde. Voltava para casa já de noite, um pouco antes do jantar. Às vezes pegava a Avenida Copacabana, às vezes resolvia voltar pela praia, andando descalça na areia. Não era a única garota na rua: indo ou vindo, cruzava com várias outras crianças, uniformizadas ou não, sozinhas ou em grupos, a caminho da escola ou de casa.

— Não converse com estranhos, não aceite balinhas de ninguém! — advertiam os adultos.

Ainda me lembro de inúmeras vezes me preparar psicologicamente para recusar as balinhas que, afinal, nunca me foram oferecidas. Por “estranhos” entendiam-se os mais velhos, claro; com gente da minha idade eu conversava com frequência. Vida normal.

Mais tarde, já adulta, gostava de pegar ônibus que não sabia onde iam dar, e seguir até o ponto final, só assim, por nada; ainda faço isso quando viajo. Às vezes descia e andava pelas ruas, explorando o bairro, às vezes voltava no mesmo carro. Volta e meia os trocadores me mandavam descer, não gostavam que ninguém esperasse dentro do veículo, provavelmente para não correr o risco de alguém fazer duas viagens com uma única passagem.

Também gostava de passear pelo Centro — pela “cidade”, como se dizia — e embarafustar pelas ruas pequenas. Sempre achava uma novidade, um prédio que não conhecia, uma loja, um detalhe interessante. Aí já não valiam os sábios conselhos dos meus pais e, eventualmente, eu conversava com estranhos quando parava para tomar um café ou um refresco.

As ruas eram para isso, para serem andadas.

A cidade era para ser usada.

A cidade era nossa, a cidade era minha.

Não sei quando perdemos o Rio, quando começamos a andar na defensiva, desconfiados de todos, atentos à menor movimentação. Sei que já não há um único dia em que não me lembre da violência, da hora de me vestir e de escolher um brinco às tantas ocasiões em que aperto o passo — quando, na verdade, tudo o que queria era me deter e apreciar o caminho. Tudo se normaliza, da correntinha de ouro que fica na gaveta por precaução às caminhadas que substituímos por corridas de táxi minúsculas. Já não me lembro como é andar sem pressentimento; mesmo quando estou viajando levo a minha guarda carioca, as minhas orelhas em pé.

Tenho a exata noção da sorte que tenho e do privilégio de morar num bairro onde (ainda) não se escutam tiros dia e noite, onde balas perdidas são raras, onde nem traficantes nem polícia usam a minha casa como proteção ou passagem; mas uma cidade é toda ela, ou não é.

Ruas fechadas, inocentes baleados, crianças mortas a tiros: não há como aceitar isso, não há como achar que a situação pela qual passa o Rio de Janeiro é minimamente “normal”.

Não há como aceitar a omissão de um governador que se surpreende com a violência, que age como se a desconstrução da cidade não fosse sua responsabilidade. Pezão está no governo do estado há onze anos, em carreira solo ou em dupla com o presidiário Sérgio Cabral, e descobre, agora, que “essa não é a cidade que todos nós queremos”.

Não diga, governador: então o senhor percebeu.

O prefeito ainda acha que vai tudo bem, que a desordem urbana que compõe o caos é assim mesmo. Vive num mundo paralelo onde o importante é rezar e não beber demais.
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Há um buraco no asfalto em frente à minha casa. Uma tubulação qualquer se rompeu há mais de um ano e faz água. O buraco cresce. A água se acumula na sarjeta. Carros caem no buraco, moradores levam banho dos carros que passam rente. Às vezes alguns operários vêm fazer de conta que as autoridades estão tomando providências e tapam o buraco, mas três dias depois ele renasce em todo o seu esplendor. A gente percebe que alguma coisa foi feita porque ora o vazamento é de esgoto puro, ora é de água tratada: estamos, felizmente, na temporada da água tratada.

Olho para o buraco e penso como ele é emblemático dessa administração incompetente, incapaz de resolver o mais simples dos problemas urbanos.

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