January 26, 2018

O precedente que subverte o ideal democrático




Entre os loucos que passaram o dia de hoje assistindo ao julgamento dos recursos do “caso tríplex”, no canal do TRF4 no Youtube, eu fui um deles. Movido por curiosidade acadêmica e preocupação profissional, fiquei das 8h30 às 17h e pouco ouvindo todas as manifestações e votos. Com base na experiência e conhecimento dos desembargadores e uma ponta de esperança num julgamento bem técnico, eu esperei (mesmo) ouvir uma explicação que me convencesse da materialidade e autoria dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, porque a sentença do Moro não me havia convencido. Na minha humilde posição de muito menos experiência e estudo dos que os julgadores, digo que continuo não convencido. Problema meu se não estou, certo? Pode ser. Mas, como tenho esse gosto pelo Direito Criminal e uma comichão que não consigo conter de escrever sobre ele – e na falta de outro canal, já que estou enfurnado pela dissertação (pausada hoje) – escrevo aqui no Face mesmo, só pra extravasar, atendo-me unicamente ao aspecto técnico-jurídico, sem externar nenhum tipo de paixão política ou coisa do gênero.

Eis o que diz o art. 317 do Código Penal: “Corrupção passiva. Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa”.

Pois bem. Está descartada, pelo que vi, a hipótese mais comum da corrupção passiva que é a de “receber” a vantagem indevida, já que o patrimônio de Lula em nada se fez acrescer com a negociação do apartamento. Com efeito, Marisa (pq o contrato estava em nome dela, mas tudo bem até podemos incluir Lula como beneficiário tbm, afinal eram casados), pagou várias prestações ao Bancoop de um apartamento normal no tal prédio no Guarujá. Ocorre que, lá pelas tantas, a OAS (substituindo o Bancoop), segundo a denúncia, iria lhe entregar um outro apartamento com muito mais valor: um tríplex, com várias reformas. A vantagem indevida apontada adviria de se pagar X e receber um bem no valor de XXX; um “duplo X” de vantagem. Em troca, segundo a denúncia: vantagens da OAS em 3 contratos relativos a obras/serviços da Petrobrás. 

Ocorre que esse recebimento do apartamento nunca se efetivou. Lula/Marisa nunca tiveram a posse ou a propriedade, ou qualquer outro direito real, sobre o bem, de acordo com as provas. O que tiveram foi uma espécie de “reserva” do apartamento, não se sabe para quando. Todos vamos concordar que só haveria vantagem se o bem realmente fosse recebido pelo valor de XXX, sendo pagos apenas X. Se eles recebessem o apto. X, não haveria problema algum. Só que nem isso ocorreu. Com efeito, Lula/Marisa não receberam nem o apto. X, nem o XXX, nem o dinheiro de volta, o que os fez mover uma ação contra o Bancoop e a OAS, pedindo R$ 300.000,00 de indenização. Pausa. Por que quem iria, em tese, receber o apto. XXX ilicitamente, ou seja, pagando apenas X, foi reclamar na justiça o apartamento X? Se iria receber esse bem da OAS "de boa", porque processá-la? Só pra adiantar um pouco a questão da ocultação de bens (lavagem de dinheiro), por que iria dar publicidade ao negócio, na Justiça (!), se, em tese, queria que ninguém soubesse que receberia XX de vantagem no negócio? Não faz sentido nenhum.

Também não houve prova de que Lula fosse realmente conseguir receber o tríplex, pagando apenas X. Não se pode descartar a hipótese de que a OAS fosse exigir que pagasse mais XX ou qualquer outro valor, posteriormente, para fazer a troca do apto. X pelo XXX. A acusação disse que essa troca ocorreria, assim mesmo, “de graça”, com o pagamento de apenas X. Concluiu isso com base em contratos rasurados e não assinados – rasurados e não assinados, repita-se – de mudança da unidade X para a unidade XXX. Também com base em depoimentos de pessoas que conheciam o apto. (corretores, instaladores de móveis, porteiro etc.) como o “apto. de Lula”, por ouvir falar. Marisa e o filho – Lula, não – foram vistos duas vezes visitando o apto. XXX por algumas dessas pessoas e isso bastou como prova de que tinham a chamada “transmissão” do bem. O que é isso, juridicamente falando? Nada. Ir ver um apto., com interesse nele, não tem efeito jurídico nenhum, muito menos penal. 

Alguns argumentos em prol da absolvição de Lula, diziam que se não há prova da vantagem indevida efetivamente auferida, não há crime. Aí discordo. A coisa não é tão simples assim. Outros núcleos verbais do art. 319 ainda ficam pendentes de exame. Refiro-me a “solicitar” a vantagem indevida ou “aceitar” a promessa de tal vantagem. A questão aí é: existe prova de que Lula solicitou ou aceitou a vantagem de receber o apto. XXX pagando apenas X? Penso que não. Nenhuma pessoa (nem o Léo Pinheiro) disse que o Lula tomou a iniciativa de propor à OAS essa negociação espúria. E quanto a “aceitar”? Aí há o depoimento de Léo Pinheiro afirmando que fazia o “meio-de-campo” entre a OAS e o João Vacari, relativamente à compra do imóvel e às suas reformas. Veja que Léo Pinheiro nem tratava diretamente com Lula sobre o assunto, mas com Vacari. Isso faz com que o primeiro nunca tenha levado uma proposta da OAS a Lula, nem presenciado a aceitação de Lula de uma proposta da OAS.

Aí também vêm os problemas relativos ao valor e à suficiência da prova. Léo Pinheiro é corréu-delator. Embora não tenha tido delação premiada homologada, recebeu redução de 2/3 da pena. Isso torna seu depoimento bastante suspeito, por seu interesse direto (e compreensível) em não “mofar” na prisão, seja como culpado, seja como inocente. João Vacari, contudo, não foi ouvido como testemunha, nem acusado como corréu. Cabia à acusação o ônus de ouvi-lo, para confirmar com alguma coisa mais o depoimento de Léo Pinheiro. No entanto, não o chamou ao processo. Dizer que podia a defesa arrolá-lo é inverter o ônus da prova, o que é o contrário ao devido processo legal, mas foi isso que os desembargadores disseram. Disso resulta que a conclusão de que Lula “aceitou” a promessa de vantagem indevida se assenta sobre o depoimento de um delator coacusado.

Os julgadores, então, se ativeram aos indícios. Concluíram que havia indícios (leia-se: suspeitas, mas não provas) de que as acusações eram verdadeiras. E condenaram, declaradamente, com base nisso. De fato, existe uma disposição do Código de Processo Penal (CPP) que define o que são indícios: “Art. 239. Considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. E para que servem os indícios? De acordo com o mesmo CPP, servem para: a decretação de sequestro de bens (art. 126), a hipoteca legal (art. 134), ir no encalço de réu foragido (art. 290, §1º, b), para a pronúncia (art. 413) ou para abrir novas investigações (art. 417). Veja-se que se tratam de decisões não definitivas sobre a culpa, mas relativas a medidas cautelares, à atividade investigativa e ao juízo perfunctório de envio do processo ao Tribunal do Júri. 

Pergunta: serve para condenar? Resposta: NÃO! Nem o CPP, que é de 1941, época do Estado Novo (ditadura de Getúlio), escrito pelo mesmo autor do AI-1 do golpe de 1964, Francisco Campos, chega ao absurdo de dizer que se pode condenar alguém com base em indícios, mas a 8ª Turma do TRF4 chegou.


Mas vamos admitir, apenas por hipótese, que existisse prova plena de que Lula pagou X e realmente solicitou, recebeu ou aceitou promessa de receber o apto. XXX. Isso já configuraria o crime de corrupção passiva? Não. Seria necessário provar duas coisas, antes. Primeiro que essa vantagem era indevida. À primeira vista, a OAS é a prejudicada: entregaria o apto. XXX recebendo apenas X. Prejuízo a ela de XX. Isso não configuraria o crime do art. 317 porque, para tanto, seria necessária a prova do segundo ponto: haver prejuízo concreto ou potencial à Administração Pública. Aí vem a explicação da acusação: a OAS propôs/aceitou esse negócio porque iria receber suas vantagens nos 3 contratos da Petrobrás. O que a acusação tem que provar? Que a negociação Lula/OAS do tríplex estava ligada aos 3 contratos da Petrobrás. Ah, podia ser a qualquer contrato da Petrobrás? Não, tinha que ser a esses 3, porque a denúncia delimita a acusação e todo o conteúdo do processo. Se se descobrisse que essa negociação dizia respeito, não a esses 3 contratos da Petrobrás, mas a outros contratos, a denúncia teria que ser aditada e começar o processo quase que todo de novo. Pergunta: houve prova de que essa negociação do Léo Pinheiro, com Vacari, a mando de Lula, e a OAS tinha como pano de fundo os 3 contratos com a Petrobrás da denúncia? Resposta: não. Quem disse que não? Juiz Sérgio Moro, no julgamento dos embargos de declaração da defesa de Lula. Disse que eles tinham a ver com um “grande esquema de corrupção”, mas não com contratos da Petrobrás, muito menos com os 3 contratos da denúncia, especificamente. Resta esse ser abstrato: a grande quimera dos contratos que tinham dinheiro de corrupção e que concentra todo o mal e atrai todas as penas.

Por falar em atrair, foi essa circunstância de a vantagem indevida advir dos 3 contratos da Petrobrás, que foi usada como fator de atração de competência do “juiz da Lava-Jato”. Ah, mas o apto. ficava no Guarujá, São Paulo, por que ser julgado em Curitiba e na Justiça Federal? Pois é. O MP de São Paulo também questionou isso, dizendo que o caso tinha que ser processo na Justiça Estadual paulista. Mas é assim: por ter começado a investigação de propinas relativas a contratos da Petrobrás, em 2014, na Justiça Federal de Curitiba, esta ficou preventa para todos os processos relativos a isto: propinas de contratos da Petrobrás. Daí quando o MPF põe na denúncia que o apto. XXX foi adquirido/reformado com negociação relativa a “esquema” com a Petrobrás, o “buraco negro” da JF Curitiba suga a ação penal num flash. O problema reside no momento em que o juiz admite não haver prova de nenhuma relação da promessa de vantagem indevida (apto. XXX) com os contratos da Petrobrás. A premissa que fixava a competência pela prevenção se esvai e resta uma sentença proferida por um juiz materialmente incompetente, não natural e, por consequência, nula. O TRF4 entendeu que isso não tinha problema.

Então, temos, quanto ao crime de corrupção passiva, nenhuma prova de que a vantagem foi indevida, nem que essa vantagem teve ligação com contratos da Petrobrás, nem que Lula solicitou, aceitou ou recebeu essa vantagem. Sem prova, sem crime. Ilícita a condenação. Antes disso, ilícito o processamento na JF de Curitiba.

Aí vem o crime de lavagem de dinheiro. “Lei 9.613/98. Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”. Esse é mais simples. Primeiro, tem que haver uma infração penal provada, no caso, o crime de corrupção passiva, que, como vimos, não tem prova. Já podíamos parar por aí. Mas se houvesse, o que Lula teria ocultado? Em princípio, na sentença de Moro, seria a “propriedade de fato” do apto., que seria dele e não da OAS. Como essa tese já tinha sido pisoteada no mundo do Direito “normal”, que exige (do tipo: “se, e somente se”) registro no cartório de imóveis, para a transferência da propriedade, a 8ª Turma, principalmente o Revisor, veio com esta saída: Lula não dissimulou a propriedade, que, de fato, não tinha, mas ocultou os “direitos” que tinha sobre o imóvel, como negociado com a OAS. Mas que direito seria esse? O de “reserva”? Como reivindicar esse direito, sem um contrato de promessa de compra e venda registrado em cartório? Ma’nunca! Qualquer credor da OAS que, por exemplo, penhorasse esse imóvel para pagar dívida da OAS (como de fato ocorreu recentemente) teria mais direito que o Lula. Nem a posse Lula teria para reclamar em juízo, já que nunca passou um único dia ou noite no imóvel. Enfim, tirar esse imóvel do Lula, era mais fácil que roubar doce de criança. Em outras palavras, Lula não tinha como ocultar a origem daquilo que nunca entrou na sua esfera de direitos patrimoniais. A acusação – agora a condenação – se resume a ocultar uma possível vantagem ilícita futura e incerta. “Estou ocultando aqui, pra ninguém saber, a aquisição ilícita de um patrimônio que estou tramando realizar um dia”. Se for assim, todo ato de corrupção que não seja feito às claras e confessadamente será, automaticamente, um crime de ocultação de capitais. Isso não tem nada a ver com o crime tipificado na legislação especial, mesmo. Mas o TRF4 achou que tinha. Discordo.

“Ih, mas não adianta espernear. O juízo de fato, ou seja, quanto às provas da autoria e materialidade se esgotaram na segunda instância. Não tem como discutir mais no STJ ou no STF: Lula era o proprietário de fato do apto, ponto, acabou. Aceita que dói menos”. Calma lá. Primeiro, tem um catatau de nulidades (questões de direito) a serem rediscutidas no STJ e no STF. Segundo, cabe ao STJ e ao STF dar a última palavra sobre a interpretação da legislação federal e constitucional que rege a valoração da prova, para, por exemplo, dizer que indícios, delação isolada de corréu etc. não servem como prova. Terceiro, cabe ao STJ interpretação da lei penal, incluindo o art. 317 do CP e o art. 1º da Lei 9.613/98. O STJ pode muito bem partir do fato declarado pelo TRF4 como ocorrido – “propriedade de fato”, “direito de reserva do apto” ou “aquisição/ocultação desse direito de reserva” – e como não ocorrido – “não houve relação com contratos da Petrobrás” – e entender que esse fato não se enquadra nos crimes citados ou que não atrai a competência da JF. Do mesmo modo, cabe ao STF interpretar tal legislação à luz da Constituição e por aí vai. Enfim, ainda tem água pra rolar.

Tudo bem, você pode concluir que o Lula não conseguiu explicar a história do apto. direito, nem das intenções/vantagens dele e da OAS no negócio. Concordo. Mas isso não autoriza, por si só, a presumir que os crimes descritos na denúncia efetivamente ocorreram. Se autorizar pro Lula, vai autorizar para mim e para você também. No dia que você não conseguir explicar um negócio que você fez, vão poder presumir que teve crime por trás. E nem vai achando que isso foi assim porque ele é um ex-presidente. Como operador do direito posso dizer isto: as coisas que são decididas nos processos “grandes”, por assim dizer, depois servem de fundamento para uma infinidade de processos “pequenos”. Sim, o seu, por exemplo, ou daquele seu parente. Todo mundo que tem um parente está sujeito a ter um caso criminal na família, pode crer, o que alcança, claro, todo mundo, afinal ninguém nasceu de uma chocadeira. E quando for a vez dele, advinha: vai ter uma certa interpretação da lei, mais severa, que vai se aplicar ao caso dele, por conta de um precedente. Esse precedente pode ter sido estabelecido hoje.

A coisa, portanto, é mais grave do que parece. Com certeza muito mais grave do que o Lula se safar dessa e concorrer à Presidência de novo e até de ganhar. Se a gente achar que a candidatura de Lula é um risco tão grande que vale a pena condená-lo ilicitamente, outras coisas ilícitas serão possíveis para atingir fins supostamente não desejados por um grupo de gente insatisfeita. E se a maioria de fato não deseja o Lula mais como Presidente, a melhor forma de definir isso é nas urnas, dizendo não à sua eleição. “Ah, mas o Lula será eleito por uma massa de ignorantes”. Ainda que o seja, a regra democrática ainda é a da maioria e, como disse, Winston Churchil, “a democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas” (aproveita que tá no cinema). Rejeitar a maioria democrática é rejeitar a possibilidade de a maioria do povo escolher seu governante, e partindo da premissa presunçosa de que “nós”, uma minoria, sabemos escolher melhor do que a maioria. Por quê? Porque “nós” somos melhores. Mas quem é “nós”? Quem nos define e nos escolhe como “os melhores”? A Constituição escolheu esse “nós” como a maioria do eleitorado. Subverter isso é subverter o ideal democrático tão jovem ainda no Brasil (vai fazer só 30 anos em 2018).

Como cidadão e como profissional do Direito, eu ficaria mais tranquilo com essas interpretações do TRF4 sendo afastadas, pelo STJ e STF. Não pelo destino do Lula. Mas pelo destino dos que vão ter que viver sob um ordenamento jurídico interpretado da forma como foi, com extensão do conceito de crimes, de inversão do ônus da prova, das regras de jurisdição etc. Eu ficaria mais tranquilo com Lula solto e concorrendo, mesmo eu não votando nele, do que no cenário desenhado para o futuro a partir do julgamento de hoje.

NIC 0 LAU

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