October 21, 2017

A Rocinha e o Camboja

Maria Carmem de Sá, O Globo

A invasão da Rocinha, há alguns dias, por cem homens fortemente armados assustou moradores e motoristas que passavam no entorno. Entre os invasores, certamente, havia adolescentes. Meninos trabalhando no tráfico de drogas é cena comum no Rio de Janeiro, e é raro a opinião pública fazer qualquer defesa deles.

Na mesma semana estreou em um canal de streaming o novo filme de Angelina Jolie, que narra a guerra civil do Camboja sob a perspectiva de uma menina recrutada como soldado e obrigada a lutar na linha de frente do exército. Aqui a empatia é imediata: como não se sensibilizar com a história de uma criança obrigada a realizar atrocidades?

Nas favelas cariocas, há décadas, crianças e adolescentes são cooptados pelo tráfico de drogas, considerado uma das piores formas de trabalho infantil pela Organização Internacional do Trabalho. Obrigados a realizar todo tipo de ato para proteger o território, muitas vezes são algozes de quem desafia o domínio da facção, que os faz reféns sem que eles se deem conta. Por que não despertam a mesma empatia que a menina cambojana?

A Anistia Internacional estima que existam aproximadamente 300 mil crianças-soldado em todo o mundo. Mas um adolescente carioca que trabalhe em uma boca de fumo não entra nessa conta. A expressão se aplica apenas a países que vivam situação de conflitos armados oficialmente declarados. Com facções se enfrentando diante de uma polícia acuada e desorganizada e um Exército que mobiliza 500 homens em busca de uma pistola, o Rio vive uma situação de guerra — só não oficialmente declarada.

Em tempos de discussão acerca da redução da maioridade penal, falta reconhecer que essa guerra existe e vitima principalmente a camada mais pobre da população, que dia a dia vê seus filhos engrossarem as fileiras de facções criminosas, tornando-se crianças-soldado. E que as soluções mágicas sempre prometidas jamais funcionaram na cidade maravilhosa no nome, mas um inferno cada vez maior para quem vive aqui.

“A melhor maneira de proteger as crianças dos conflitos armados é prevenindo esses conflitos”, disse Graça Machel, ex-representante especial da ONU para crianças e conflitos armados, por ocasião do 20º aniversário da Resolução 51/77 (1997) da Assembleia Geral sobre a proteção e os direitos das crianças que se encontram em meio a conflitos. Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, uma educação de boa qualidade e um trabalho produtivo e decente são a chave para a paz e o desenvolvimento. Isso deveria valer para as crianças cariocas.

Reduzir a idade penal — sob o pretexto de combate à impunidade — é premiar quem, nas últimas décadas, com políticas equivocadas e corrupção em praticamente todos os setores, permitiu o surgimento de nossas crianças-soldado. Romper o ciclo de violência em que esses adolescentes estão inseridos é o verdadeiro desafio. No Camboja, a guerra civil acabou. Na Rocinha, parece estar longe do fim.
Adolescentes, soldados do tráfico, posam com armas em punho em favela do Rio de Janeiro (Foto: Felipe Dana / AP)
Adolescentes, soldados do tráfico, posam com armas em punho em favela do Rio de Janeiro (Foto: Felipe Dana / AP / G1)
 
Maria Carmem de Sá é coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

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