September 16, 2017

O ressurgimento do reacionarismo estético como problema da cultura ocidental no século 21 é preocupante.

Sergio Rodrigues 



São muitos os temas de discussão levantados pelo cancelamento da exposição de arte "queer" em Porto Alegre, que tem monopolizado os quebra-paus virtuais. Trato aqui de apenas um deles: o reacionarismo estético que marca este início de século.

Embora o protagonismo do MBL no episódio possa sugerir que a falta de noção sobre o que é arte se limita à ala mais tosca da direita, não temos tanta sorte. Grande parte do filistinismo destes tempos emana da esquerda.

Vai ficando cada vez mais incorporada ao senso comum a ideia de que toda representação artística deve ser lida ao pé da letra como depoimento cândido, documento de interesse sociológico ou, pior, propaganda.

Junto com isso vem um buquê de noções antilibertárias e antiartísticas: a condenação censória de tudo que "ofenda" alguém, o "lugar de fala" como uma cela a aprisionar todo artista, a "apropriação cultural" que segrega influências, etc.

Todas essas linhas de força convergem para um ataque supraideológico à liberdade de expressão, e não só a dos artistas. Mas não precisamos ir tão longe na filosofia.

Para a brevidade desta coluna basta anotar que o ambiente asfixiante do reacionarismo estético condena qualquer sopro de ficção, poesia, ironia e distanciamento crítico a ser um suspiro de moribundo. Não há arte que possa vingar assim.

Um bom exemplo é "Cena de Interior II", quadro em que Adriana Varejão, artista séria, recorre à estética da arte erótica japonesa para representar cenas formativas de certa sexualidade brasileira de raízes rurais e escravagistas. Na cartilha tatibitate do reacionarismo, virou "apologia da zoofilia".

O vício é generalizado. Se um personagem de filme fuma um baseado, dirige depois de encher a cara ou xinga o pastor de ladrão, o reacionarismo estético vê nisso apologia das drogas, da direção irresponsável e da intolerância religiosa.

Não faz diferença que as cenas possam ser representações realistas da vida e nesse sentido funcionar –ou não, aí é que está– dentro de uma construção dramática. Em vez de julgá-las pelo modo como se encaixam no quadro simbólico da obra, o reacionarismo as toma pelo valor de face.

Rebaixado tão drasticamente o horizonte intelectual, tudo vira "incentivo". A personagem adolescente de um romance faz sexo grupal e engravida? Pouco importa que pague um preço alto em infelicidade, está incentivando o sexo precoce e promíscuo em jovens leitoras indefesas. Se for negra, esquece-se o incentivo, mas aí estamos diante de uma odiosa caracterização racista.

O reacionarismo estético é inimigo das sutilezas e ambiguidades que caracterizam a arte. Tudo deve ser chapado e traduzível num slogan. Também odeia o específico, o contingente, a exceção. Apareceu na obra, virou mandamento universal.

O fenômeno não é novo nem exclusivo do Brasil. Quem ler os autos do processo movido contra o romance "Madame Bovary", do francês Gustave Flaubert, verá que já estava quase tudo lá.

Só que aquele era o século 19. O ressurgimento do reacionarismo estético como problema da cultura ocidental no século 21 é preocupante. O Brasil nem precisaria acrescentar ao pacote suas grotescas deficiências educacionais para se ver em apuros. 

FOLHA, SETEMBRO 2017 

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