September 22, 2017

No conflito da Rocinha, autoridades devem explicações e pedido de desculpas


Flávia Oliveira


Na virada deste século, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) fez do Rio de Janeiro a primeira cidade do planeta a ter seu próprio relatório de desenvolvimento humano, um dado em particular chamou atenção dos pesquisadores encarregados da empreitada. Mantido o ritmo de avanço social, modesto à época, a Rocinha levaria 91 anos para igualar os indicadores de renda, educação e longevidade que a vizinha Gávea já exibia desde a última década dos anos 1990. Separados por uma via, os dois territórios materializavam a desigualdade que forjou o Rio de Janeiro — e também o Brasil. Nascer e crescer no lado rico, de alto IDH, significava viver 13 anos mais, ter o triplo de anos de estudo e seis vezes o rendimento familiar.

Quase duas décadas depois, o abismo novamente se escancara. Dessa vez, na forma de um confinamento que adiou o futuro de dezenas de jovens inscritos no exame de qualificação do vestibular 2018 da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), outra instituição fluminense que teima em sobreviver, apesar do empenho oficial em asfixiá-la. O grupo de alunos do Projeto de Ensino Cultural e Educação Popular (Pecep) não conseguiu sair da comunidade na manhã do último domingo, em razão do confronto entre grupos civis armados pelo comando do tráfico de drogas na maior favela da Zona Sul carioca. Viver na Rocinha foi a diferença entre comparecer ou não no local da prova.

Os estudantes, violados no direito constitucional de ir e vir, fariam exame de linguagens, matemática, ciências da natureza e humanas. Responderiam sobre o livro “A hora da estrela”, último romance de Clarice Lispector. A obra fala de Macabéa, migrante nordestina que sobrevive como datilógrafa no Rio, se apaixona por um mau-caráter, é diagnosticada com tuberculose, sonha com o futuro de amor, fama e fartura prometido por uma cartomante, mas morre atropelada diante de pedestres indiferentes.

Coincidência cruel, a desamparada protagonista de Clarice carrega características de moradores da Rocinha. A favela concentra grande número de nordestinos que vieram para o Rio de Janeiro em busca de trabalho e melhores condições de vida; tem desde os anos 1990 linha regular de ônibus para o Ceará. Apresenta uma das maiores taxas de incidências de tuberculose da América Latina, dez vezes maior que a média brasileira. Enfrenta a indiferença de governos e sociedade. Não perde a fé.
Na comunidade vivem homens e mulheres que trabalham duríssimo para ver os filhos na universidade. O caos da segurança pública, a grave crise institucional e financeira do estado, como a Mercedes-Benz do livro, atropelaram os sonhos de Uerj de jovens da Rocinha. Feriram o presente, mas não mataram o futuro. Eles hão de insistir.

Aos jovens estudantes, à comunidade acuada, à cidade perplexa, o governo do Rio tem de prestar contas. Em cinco dias de conflito, nem o governador Luiz Fernando Pezão nem o secretário de Segurança Pública, Roberto Sá, foram capazes de explicar por que, embora soubessem do enfrentamento iminente, não agiram para evitar a invasão da Rocinha por uma centena de homens fortemente armados oriundos de áreas tão distantes quanto o Morro de São Carlos, no Centro, e a Vila Vintém, em Padre Miguel. Ou qual a razão de deixarem policiais expostos ao conflito em via pública. O ministro da Justiça, Torquato Jardim, precisa dizer como um líder de facção criminosa, Antônio Francisco Bonfim Lopes, o Nem, consegue ordenar uma reação ao ataque inimigo do cárcere federal, em Rondônia.

A crise aguda da segurança pública escancara a falta de política e a incapacidade de diferentes níveis de governo trabalharem em conjunto na prevenção e no combate ao crime. Além disso, amplia o fosso da desigualdade social, já agravada pelo ambiente de recessão, aumento do emprego e falência do setor público. As autoridades devem explicações e um pedido de desculpas. Aos jovens estudantes da Rocinha. À comunidade. Ao Rio de Janeiro. Ao Brasil.

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