August 30, 2017

A Síria do Jacarezinho


Após 11 dias acuados por tiroteios, moradores da favela da Zona Norte desabafam. Foram sete mortes durante os confrontos que ameaçaram 90 mil pessoas


No Beco da Síria, como é conhecida a Rua Santa Teresinha, as marcas de tiros estão por todos os lados Foto: Bruno Itan / Olhar Complexo

por
O GLOBO

A Rua Santa Teresinha é uma passagem estreita por onde se chega à parte alta do Jacarezinho. Suas paredes têm incontáveis marcas de tiros. Nas últimas semanas, o lugar fez por merecer o apelido pouco honroso dado por moradores: Beco da Síria. Com pistola na cintura, um soldado do tráfico fica escorado em um poste, no meio da pequena via. Um pouco acima, um policial militar com fuzil protege a esquina do beco com a Rua Darci Vargas, em frente à sede da UPP. Estão separados por uma linha imaginária, a 50 metros de distância: de um lado, o Estado armado na favela; do outro, uma juventude perdida. Moradores que atravessam a passagem cruzam os dois, mas o medo faz muita gente mudar de caminho.

Estranha normalidade

Depois de sete mortes em 11 dias seguidos de tiros, a vida se restabelece com estranha normalidade no Jacarezinho. O comércio está fraco na Rua Comandante Gracindo de Sá, principal acesso à favela, ocupada por umas 200 lojas enfileiradas nas duas calçadas. Pouco a pouco, esses pequenos negócios vão reabrindo depois de quase duas semanas com as portas fechadas, mas a multidão que caminha de um lado ao outro, entrando e saindo do complexo, passa apressada demais para comprar qualquer coisa. São 9h da última quinta-feira, dia em que as escolas da região voltaram a funcionar. O meio-fio continua cheio de óleo escuro, que escorreu dos 32 transformadores explodidos por tiros nos últimos dias, e ainda há muito lixo espalhado pelos becos. Alguns saem de casa pela primeira vez em 15 dias, como a paraibana Luzia Gomes dos Santos, de 69 anos.

— Sair para quê, com aquele tiroteio? Só se for pra morrer. Estava cheia de dores e com hipertensão em casa, mas só hoje pude cuidar disso — disse a senhora na porta da Clínica da Família local, na Avenida Dom Helder Câmara, a poucos metros do acesso ao morro.

A favela tenta se recompor ao mesmo tempo em que contabiliza seus prejuízos, após a caçada vã da Polícia Civil ao assassino do agente Bruno Guimarães Buhler, morto aos 36 anos, com um tiro no pescoço, enquanto dava apoio a uma operação no local, no último dia 11. Após os confrontos diários, que puseram em risco a vida de 90 mil moradores, as incursões da Polícia Civil terminaram com cerca de 50 presos, mas nenhum fuzil apreendido. Agora, os moradores perguntam: de que adiantou?

— São operações que não resultam em nada — acredita o comerciante Sérgio Ricardo, de 54 anos, criado no Jacarezinho. — Minha mulher ficou quase três horas presa dentro da loja essa semana e não quer mais voltar aqui. Seis tiros entraram na loja, um deles acertou a máquina de sorvete. O conserto custa R$ 1,6 mil, não sei como vou pagar — lamenta, antes de contar que assumiu o ponto há apenas dois meses, depois de se mudar de outro que julgava pior.

Ao seu lado, Brenda Araújo Silva, de 21 anos, diz que a loja de roupas onde trabalha chegava a vender R$ 3 mil aos sábados e domingos, e pelo menos R$ 500 nos dias de semana. Sua chefe exigiu que ela abrisse o estabelecimento mesmo debaixo de tiro. Assim como a mulher de Sérgio, Brenda ficava nos fundos da loja, pois as balas não davam trégua. Em uma semana, ela vendeu apenas uma blusa e uma calça. Brenda tem três filhos — o primeiro nasceu quando ela tinha 13. O caçula, de 1 ano e meio, já identifica o som dos disparos.

— Assim que os tiros começam, ele fica repetindo “pou, pou” — afirma Brenda. — Nunca foi tão perigoso viver aqui. Infelizmente, não temos para onde ir.



'Vieram para matar'


Uma moradora se aproxima e pede a palavra. Pamela Rangel, de 36 anos, diz sentir-se “no meio da guerra do Iraque”. Está indignada por “viver como prisioneira” em sua própria casa.

— Sabemos que aqui tem tráfico, fomos criados aqui, estudamos com bandidos na escola. Mas meu marido é mestre de obras e eu sou esteticista. Essa guerra não é nossa, muito menos do meu filho, que tem 2 anos e meio. Os policiais vieram aqui para matar — afirma. — Gostaria de entender por que somos tratados como lixo. É por sermos pobres?

Quatrocentos e trinta e quatro alunos voltaram às aulas naquela quinta-feira no Colégio Salesiano, rede filantrópica de ensino que mantém uma unidade na parte mais alta do Jacarezinho há quase cinco décadas. Com a igreja do colégio lotada de crianças, a diretora Adriana Costa dá as boas-vindas como se elas estivessem voltando de férias. Quando Adriana decreta o reinício das aulas, as turmas ficam de pé e caminham para as salas em pura algazarra. Elas se beijam e se abraçam, algumas cantam, todas sorriem. Só quem vive sob tiros sabe o valor de voltar à escola após tantos dias sem sair de casa.

— Agora é atualizar o calendário e pensar em como repor o conteúdo perdido. Vamos fazer um recreio especial hoje para as crianças. Elas estão felizes por voltar, mas precisam muito de amor — diz Adriana, de 48 anos, que começou a trabalhar na unidade aos 14, como auxiliar de secretaria.

Quem também cuida de seus alunos como se fossem filhos é Adino Estelino Santos, de 40 anos, fundador do Centro de Integração Cultural, Assistencial e Educacional (Cicape), que oferece aulas de judô, jiu-jítsu, muay thai e capoeira para 250 jovens da favela. Ele conversa com a reportagem enquanto monitora cinco funcionários da Cedae, que finalmente puderam voltar ao Jacarezinho para consertar um cano que jorrava esgoto. O Cicape também tinha um pré-vestibular comunitário, mas as aulas foram encerradas por causa da violência: os professores pararam de ir à favela para ensinar.

— Não vou desanimar, não. Cuido deles como meus filhos, e sinto que agora eles precisam de mim como nunca — afirma.

Adino já conseguiu tirar muitos jovens do tráfico de drogas. Jovens iguais a um menino de uns 10 anos de idade, magrelo, sem camisa e que empunhava uma pistola naquela tarde de sol, perto de uma rua chamada Esperança.



Favela de luto


O Jacarezinho está de luto pelos seus mortos, mas não há tempo para chorar. Na Rua Amaro Rangel, uma das principais vias de comércio do complexo, duas meninas, de 13 e 9 anos, trabalham para manter um mercadinho de verduras aberto. Rafaela e Alice são filhas de Sebastião Sabino da Silva, verdureiro que vendia fiado a quem precisasse. Tião, como era conhecido, acordava às 4h todos os dias. Estava em seu quarto casamento e era pai de sete. Enquanto sua mulher cuida de uma barraca, também de verduras, as pequenas tomam conta do mercadinho. Ele morreu com três tiros de fuzil, na terça-feira, dia 15. Contam na favela que foi alvejado por atiradores de um helicóptero, e que policiais não deixaram ele ser socorrido — diziam que era bandido. A Civil garante em nota que seus policiais "jamais deixariam de socorrer vítimas ou impediriam que outras pessoas o fizessem".

— Minhas irmãs ficaram sem aulas e estão o tempo todo ajudando. É muito complicado. Meu pai se endividou um pouquinho, pois precisou comprar uma Kombi. As meninas ainda estão em choque, viviam com ele, mas a vida tem que seguir — afirma a filha Raquel, de 20 anos, que há três meses trocou o Jacarezinho por Água Santa. — Minha filhinha, Laura, completou um mês no dia em que ele morreu — conta, emocionada.

No ponto de mototáxi onde André Luís Medeiros trabalhava, seus colegas estão inconsoláveis. André morreu com três tiros numa perna quando esperava o dono de uma loja de rações, ao lado do ponto, fechar o estabelecimento. O mototaxista o levaria para sua casa, pois um blindado da polícia havia entrado atirando pela linha do trem, no começo da rua, a poucos metros. André não era pedreiro, mas construiu sozinho um quarto para sua filha, de 13 anos, que iria morar com ele. Torcedor fanático do Fluminense, não gostava de beber nem de sair: abria exceção para os jogos do tricolor no Maracanã, quando era possível. Estava juntando dinheiro para levar sua filha à Disney. Agora, a menina só dorme à base de remédios.
— Era muito trabalhador, ele mesmo consertava a moto quando dava defeito, estava com a mesma há dez anos. Quando queria fazer alguma coisa especial, a gente comia uma pizza — conta Julio Cesar Santos da Silva, presidente da cooperativa local de mototaxistas, um grupo de 70 trabalhadores que aguardam há anos uma licença da prefeitura.

Em cada beco, uma lembrança

Enquanto anda pela favela, o presidente da associação de moradores, Leonardo Pimentel, de 30 anos, vai colhendo relatos de dor. Ele diz ter sido procurado por meia dúzia de advogados se oferecendo para abrir uma ação coletiva contra o estado, com um pedido de indenização para os familiares das vítimas, mas a Defensoria Pública já está cuidando disso. Uma liminar obtida pela Defensoria, na tarde de sexta-feira, cassou o mandado de busca e apreensão coletivo – carta branca para agentes da lei entrarem em todas as casas do Jacarezinho. Políticos também entraram em contato, mas Leonardo, querido pelos moradores — a maioria o chama de “presidente” —, rejeita aproximações neste momento.

— A comunidade, infelizmente, está desunida. Não são políticos que vão nos ajudar neste momento, somos nós, aqui dentro, que precisamos nos unir — afirma Leonardo. — Quero ver quem entra aqui no sufoco, quando a população precisa. Quem vem depois é porque quer algo em troca — argumenta, lembrando que 2018 é ano eleitoral.

Ele evita andar em alguns becos onde amigos dos tempos de escola foram mortos. Já perdeu a conta de quantos conhecidos morreram nos embates que se repetem na favela desde antes de ele nascer, quando o dono do Jacarezinho era o traficante Paulo Roberto de Moura Lima, vulgo Meio Quilo, um dos lendários fundadores do Comando Vermelho, morto em 1987 após cair de um helicóptero durante uma tentativa de fuga da prisão. Três mil pessoas foram ao enterro de Meio Quilo e a morte provocou tensão na cidade, o que fez o então governador, Moreira Franco, pedir intervenção das forças federais no Rio — um filme assistido muitas vezes pelos cariocas.

Após a morte de Meio Quilo, o aumento da violência foi perverso para o Jacarezinho: sobrou pouco das mais de 500 fábricas que existiam ao redor da favela até os anos 1990, e que faziam da região o segundo maior polo industrial da cidade — perdia só para São Cristóvão. Foram embora gigantes como General Electric, e o imenso terreno de sua fábrica virou objeto de disputa entre a prefeitura do Rio e a multinacional sediada em Boston, que tem uma dívida com o município da ordem de R$ 40 milhões, segundo uma fonte da Fazenda municipal. O Diário Oficial já publicou a intenção do município de desapropriar a área e construir ali edifícios do Minha Casa Minha Vida — a ideia do prefeito Marcelo Crivella é verticalizar a favela com mais de 5 mil apartamentos, em edifícios de 12 andares. Procurada, a Secretaria de Urbanismo disse que aguarda o processo de desapropriação.


'Alguém vai morrer'

  Bandeiras do Flamengo tremulam ao vento na Rua Darci Vargas, a única onde é possível acreditar que existe uma UPP na região, instalada em janeiro de 2013. Dez policiais patrulham a rua, alguns com o celular na mão. Sabem que só serão atacados se cruzarem a linha invisível. Um deles, entediado, brinca de cutucar um gato com o bico do fuzil. Perto dali, Valda Norberto, de 62 anos, tenta se acostumar à ausência da melhor amiga, Georgina Maria Ferreira, dois anos mais nova. Elas moravam juntas desde 1991.

— Georgina era conhecida dentro e fora do Jacaré. Tinha amizade com muita gente e conseguia emprego para as pessoas da favela. Sua vida era ajudar: não parava em casa, estava sempre levando água para um, consertando a energia de outro — recorda Valda, com os olhos inchados de tanto chorar. — Como ela era grandona e contagiante, as pessoas não sabem que lutava contra a depressão. Por isso, passava o dia ajudando os outros, e os gatos abandonados. Era um anjo.

Quando morre na favela uma pessoa como Georgina, uma rede complexa de conexões se desmancha no ar: como se muitas pessoas fossem atingidas pelo tiro na cabeça que a matou. Georgina morreu fazendo o que mais gostava: tinha ido ajudar a vizinha Dona Penha a fechar seu bar, durante um tiroteio. Era tão querida que, na sexta-feira, foram celebradas três missas e cultos de sétimo dia em sua homenagem. Dalva conta que Georgina “tinha um sexto sentido inexplicável”. Na semana passada, acordou angustiada. “Tive um sonho”, disse para a amiga. “Alguém vai morrer.”

No comments:

Post a Comment