July 27, 2017

Não poder contar com o alento da cultura é querer levar o brasileiro ao esgotamento absoluto


Washington Fajardo

A situação da cultura no país hoje é desesperadora. Curiosamente, após tantos e importantes avanços. Após os bons anos do período Gilberto Gil e Juca Ferreira I, a administração Dilma reduziu não apenas orçamento mas o papel estratégico do Ministério da Cultura. Na teoria da Nova Matriz Econômica, virou item supérfluo. Tentou corrigir o rumo com Juca Ferreira II, mas já era tarde: as crises econômica e política já produziam danos extensos e irrecuperáveis. O governo Temer não tem nem tempo nem lastro para refletir e agir sobre o setor. Em um ambiente de crise sistêmica interminável, não poder contar com o alento que a cultura produz na alma é querer de fato levar o brasileiro ao esgotamento absoluto.

No Rio, a insolvência do governo do estado dissolve também programações, museus existentes e novos, como o MIS, moribundo em gestação. O funcionamento do belo projeto das bibliotecas-parque tem sido constantemente ameaçado. O modelo de gestão por OS não resistiu ao primeiro vento. Há evidente necessidade de auxílio federal ao Rio, oxalá uma intervenção. Mas que venham também recursos para a cultura.

O inverso deveria valer. Quanto maior a crise, maior o orçamento para a área cultural. Quanto maior o desemprego, mais recursos para o setor.

Não se trata de leviandade com recursos públicos ou irresponsabilidade na definição das prioridades, mas clareza de que a cultura é setor importante da economia, gerando empregos e inclusão e alimentando o espírito. O niilismo forçado que estamos experimentando no Brasil e no Rio seria apaziguado pela nossa riqueza criativa.

A cultura é um setor que alia trabalho intelectual ao trabalho braçal, integrando diferentes tipos de qualificações profissionais. Permite desenvolver conteúdos nacionais, alimentando-se e inspirando territórios socialmente diversos, educando, desenvolvendo respeito, encontros, oferecendo um pouco de paz para os momentos mais duros. Tais conteúdos poderiam ser estratégicos para a política externa, promovendo o país, alavancando turismo e interesse comercial por nossas criações.

Cultura está presente na TV, no cinema, nos circos, no rádio, nas festas, nos bailes, nos museus, nos teatros. Está no patrimônio cultural recuperado, em eventos no espaço público. É riqueza que pode ser acessada gratuitamente.
Educação e saúde têm a proporcionalidade de seus orçamentos protegidos constitucionalmente. Cultura também educa, sendo uma das mais belas formas para ampliar o conhecimento sobre si mesmo, sobre o próprio corpo, sobre o corpo do outro e conservação da saúde.

Será que reagiríamos coletivamente da mesma maneira, hoje, se nossos espaços culturais estivessem em pleno funcionamento?

Melhorar o orçamento do setor teria impacto imediato na economia e no bem-estar social. Mas buscar novos modos de sustentabilidade para as finanças da área cultural é estratégico. Os responsáveis pelas políticas públicas não têm o direito de serem letárgicos em função de Estado tão crítica.

No Porto Maravilha foi a primeira vez que uma Operação Urbana Consorciada destinou 3% da receita da venda de títulos imobiliários para a recuperação do patrimônio cultural. Endowment é uma palavra em inglês para “fundo patrimonial perpétuo”, é um modo de garantir que iniciativas essenciais, e não autossustentáveis, possam se viabilizar pela renda das operações financeiras realizadas com o capital aplicado. Esse é um modelo que mantém universidades e instituições culturais pelo mundo.

A França, na crise de 2008, modernizou legislações para não prejudicar seus espaço culturais. Regras mais estáveis para endowments atraíram muitos doadores. O Museu do Louvre foi um dos maiores beneficiados.

No Brasil, fundos patrimoniais perpétuos já operaram na área educacional, como na Politécnica da USP e na escola de Direito da FGV. É necessário ampliar o entendimento sobre tal solução. O BNDES tem liderado esse debate. Se mais doadores fizerem o que fez João Moreira Salles ao destinar recursos em caráter irrevogável para o fomento da ciência, teríamos mais paz social.

Os governos poderiam também desenvolver soluções complementares ao alocar imóveis ociosos em uma carteira patrimonial cujas receitas de locação iriam para a cultura. Assim, por exemplo, o aluguel do edifício A Noite, para fim habitacional, ajudaria nas contas do Museu da República. Entretanto vendem suas propriedades, não garantindo nem moradia nem possível auxílio para o setor cultural. Suprassumo da burrice.

A crise atual poderia ser atenuada se o funcionamento dos espaços de cultura se mantivessem altivos, abetos e acolhedores. Gerando empregos e inspirando desempregados. Ampliando cidadania

O GLOBO, JUNHO 2017

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