July 19, 2017

Espanto. Pioram os relatos diariamente.




Fred Coelho


1. Cada notícia parece que vai mudar tudo, e nada muda. Ou melhor, lá dentro, onde o peito aperta, as coisas mudam o tempo inteiro. Isso quer dizer que ainda há algo aí, alguma coisa que ainda se machuca e fica ferida com os fatos repetidos. Ficamos o tempo inteiro esperando um equilíbrio que sempre será enviesado. Não há mediana possível em meio aos polos de um país machucado. Existem raivas que apagam fatos necessários, existem fatos que apagam raivas necessárias. A justiça, sentimento legítimo em uma sociedade desigual, pode reduzir tudo a um caldo vingativo. Cada acusação é respondida com outra acusação. E, ainda assim, dói.

2. De fato, estamos com os nervos à flor da pele há tempos. Para alguns, o corte é 2013. Para outros, como vimos na repercussão do indiciamento do ex-presidente Lula, desde 2002. Para muitos, desde a tarde que conduziu o atual presidente a um governo ilegítimo — basta vermos os números de popularidade do senhor que antes era a solução salvadora dos que inflaram patos amarelos pelas ruas e agora virou problema. Quer dizer, os patos pagos pela Fiesp já comemoraram a reforma trabalhista. E o Refis. E a rolagem de dívidas. E a mudança na presidência do BNDES. Pensando bem, os patos da Fiesp não andam tão decepcionados quanto os demais cidadãos.

3. Em sua famosa crônica sobre Brasília, um dos mais belos textos já escritos por estas praias, Clarice Lispector diz que “os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado”. É o espanto ainda o sentimento que nos move nesses tempos em que vivemos, há anos, o dia a dia de Brasília? É espanto ainda a palavra quando sabemos que um governo atua pesado para se manter em um cargo obtido com os mesmos expedientes que agora usam para tentar derrubá-lo? Espanta-nos ainda vermos a sangria pública de um Ministério da Cultura, abandonado em seu já mínimo orçamento, deixado na rua, sem ninguém em seu comando, sem honrar compromissos, fechando suas frentes de ação até seu fim por inanição? Espanta ver esse governo simplesmente não dar nenhuma palavra pública sobre este fato? Espanto inexplicado é pouco. Ou muito, frente à nossa anestesia. Clarice sabia. Brasília é “o perfil imóvel de uma coisa”. E essa coisa suga a força vital daquilo que nem sabemos mais o que é.

4. Mas sempre há uma vontade de superar o espanto. Porque ainda nos espantamos com a forma como a política é feita no Brasil. Não podemos abandonar a política pelo fato de nos decepcionarmos com políticos. Em política, a dose de pragmatismo, às vezes, deve ser forte, de todos os lados. Todos os crimes se acumulam em redes que cada caldo ideológico usa para atacar o outro. A boa luta política, goste ou não, é isso: ouvir, pensar, medir, agir. O que não se pode é desistir dela. Achar que o nome menos “comprometido” com a política é uma saída. Não é. Ainda é preciso se espantar como Clarice. Ainda é preciso mover o que cisma em ser imóvel.

5. Os relatos sobre o dia a dia da máquina pública pioram diariamente. Os relatos sobre a segurança pública pioram diariamente. Os relatos sobre a mistura entre religião e administração pública pioram diariamente. Os relatos sobre o investimento público em cultura pioram diariamente. Os relatos sobre a truculência social de agentes públicos pioram diariamente. Os relatos sobre os retrocessos financeiros pioram diariamente. Os relatos sobre o número de moradores de rua pioram diariamente. Os relatos sobre o número de pessoas sem casa pioram diariamente. Os relatos sobre a quantidade de armas em circulação na cidade pioram diariamente. Os relatos sobre os relatos pioram diariamente.

6. O que nos decepciona nas pessoas? É algo dentro de nós? Ou dentro do outro? A decepção vem porque não se cumpriu o esperado? A decepção é um espanto? O que me decepciona pode ser individual ou é coletivo? Ao nos decepcionar com alguém, ainda podemos mudar, ainda podemos achar que dá para seguir? Nós nos decepcionamos porque não cumpriram o que esperávamos. Na decepção há uma capa de beleza e crença na vida. A tristeza decorre do fato de que algo se rompeu. Ou de que não se entende bem o que esperar do outro, da vida, do mundo. O antídoto? Espere tudo. A decepção será apenas com você mesmo. Pode doer menos, e nos faz entender as coisas para além da superfície histérica dos eventos. Pese na balança o que o outro fez e o que você faria. Ou o que o outro fez por outros e o que você fez pelos outros. Se decepcionar pode ser uma forma de manter para sempre o espanto de Clarice. Ir além, porém, é mover o imóvel.

7. Somos um país cujo atual projeto é a frustração. Sem interesse pela cultura, sem destaque para a vida pulsante dos que criam mundos e mentes, sem reconhecimento dos nossos limites e das conversas profundas e necessárias que devemos ter para seguirmos acreditando na democracia. A frustração é o espanto com nós mesmos. Imóveis.

O GLOBO, junho 2017



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