por Rafael Galdo / Thalita Pessoa
Fotos Alexandre Cassiano
O GLOBO
RIO - Um vento gelado corta a Avenida Marechal Câmara, no Centro, no meio da madrugada. Sentado sobre um papelão e duas cobertas, enrolado numa manta velha, Luiz Cláudio, de 45 anos, é o único acordado. Ao seu redor, o silêncio de dezenas de pessoas que se encolhem na calçada e uma imensidão de incertezas, os motivos da angústia que lhe tira o sono há sete meses. Ex-aluno de uma faculdade de História, ele já foi bancário, almoxarife e operário. No ano passado, quando o desemprego apertou na cidade mineira de Juiz de Fora, onde vivia com a família, decidiu jogar a sorte no Rio. Até agora, só perdeu. O dinheiro acabou; ele não conseguiu trabalho. Luiz Cláudio se juntou a uma legião de 14.279 pessoas, segundo um levantamento da prefeitura, que têm nas ruas do Rio o único pouso. Tornou-se um dos muitos rostos de uma convulsão social notada a cada esquina carioca, agravada pela crise econômica. Os caminhos dessa gente, quase sempre, são invisíveis à maioria.
O Rio, hoje, tem mais moradores de rua que a população de 15 municípios do estado, como Santa Maria Madalena e Rio das Flores. Em algumas áreas, a quantidade de sem-teto é, oficialmente, o triplo de três anos atrás, embora pareça ainda maior. E grande parte — 5.895 deles, ou 41,29% — chegou à sarjeta há menos de um ano, de acordo com o estudo do município, realizado em 2016. Trata-se de um flagelo para o qual a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos busca alternativas. Mas o número de vagas em abrigos revela o quanto é grave a situação: são 2.155, distribuídas em 37 instituições.
Luiz Cláudio buscou ajuda no Abrigo Stella Maris, na Ilha do Governador, assim que acabou seu último centavo. Não suportou a superpopulação do lugar nem a insalubridade das instalações. Preferiu o relento ao que viu. Foi parar, primeiro, na Uruguaiana.
— Eu tremia. E, apesar de não ter um cobertor, não era de frio. Botei um papelão no chão, um tênis debaixo da cabeça, me agarrei à mochila com meus documentos e tentei dormir. Mas logo percebi que não dava — diz ele, explicando seus motivos. — Fui roubado duas vezes, e graças a Deus não levaram a pastinha com minhas recomendações de emprego. Nunca se sabe o dia de amanhã. Passei a catar papel. Mas pagam só R$ 8 por 300 quilos, mal dá para almoçar. As portas se fecharam. Para muitos, se você está na rua, é drogado ou ladrão. Você vira um pária, fica à margem da sociedade. Não quer dizer que seja um bandido. É um “nada” — diz Luiz Cláudio, que ainda não criou coragem de contar sua situação à filha, de 18 anos, para não deixá-la “desesperada”.
Devoto de São José, santo da família e do trabalhador, Luiz Cláudio agora se impõe um limite: espera julho chegar, mês em que poderá sacar seu FGTS inativo. Já tem tudo planejado: alugará um imóvel, continuará à procura de emprego e, se tudo der certo, buscará a família. Se o futuro não sair como o esperado, diz que não hesitará. Pedirá ajuda numa igreja para voltar a Juiz de Fora, mesmo com “uma mão na frente e outra atrás”.
A história dele mostra que, muitas vezes, a linha entre a vida sob um teto e o relento é tênue. As ruas estão cheias de relatos de tragédias que se desenrolaram como um improviso do qual sair parece ser algo impossível. Aos 30 anos, 12 de rua, Dênis Linhares não tem mais um lar desde que sua avó, com quem morava, morreu. O casal Paulo e Suzana Silva, de 42 e 40 anos (respectivamente), ficou desempregado, não pôde mais pagar o aluguel de uma quitinete em Antares, em Santa Cruz, e, há nove meses, foi parar numa das esquinas que concentram moradores de rua no Centro, entre as avenidas Graça Aranha e Almirante Barroso, e agora se entregam ao álcool.
MOTIVAÇÕES EM COMUM
Destinos que não são banais, mas extraordinariamente comuns nas ruas. Em seu levantamento, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos identificou causas que levaram quase 15 mil pessoas a viver nas ruas do Rio. Conflitos familiares (resposta de 34,37% deles), o álcool e as drogas (20,13%) e o desemprego (13,32%) são as mais citadas. Também aparecem na lista a fuga da violência nas comunidades em que viviam (2,32%), o despejo ou a perda da residência (1,85%), a moradia longe do trabalho (0,39%) ou mesmo vontade própria (8,96%).
No rumo de André Luiz Reis, de 34 anos, uma sucessão de infortúnios o levou a perambular pela Praça da Cruz Vermelha, no Centro. Baiano desempregado em Camaçari, faz 70 dias que chegou ao Rio. Tempo suficiente para emagrecer, pegar uma pneumonia e trocar os sorrisos pelo olhar perdido. Nada parecido com o sonho que ele alimentou ao vir para a cidade que ele admirava pela televisão.
Desembarcou com R$ 1.700, frutos de um bico que tinha feito na Ilha de Itaparica, na Bahia. Seu plano era alugar um quarto em Duque de Caxias e buscar trabalho. Estava tudo acertado. Mas, ainda com a bagagem nas costas, logo depois de sacar o dinheiro num banco, foi assaltado por um adolescente armado com uma faca. Ficou só com uma mochila e documentos. Até suas ferramentas de pintor, que estavam numa mala, ele perdeu.
— Não sabia o que fazer. Nunca tinha dormido na rua. Bateu o medo de que fizessem algo perverso comigo. E veio logo a depressão, por saber que minha família está na Bahia precisando de ajuda — conta André, que, na última quarta-feira, não pensou duas vezes ao pedir ajuda a uma equipe de abordagem especializada da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. — Isso não é vida. Quero recomeçar.
Em Copacabana, morador lê um livro na calçada em que passa as noites. Bairro é o segundo do Rio com maior quantidade de pessoas em situação de ruaFoto: Alexandre Cassiano /
Na Avenida Olegário Maciel, na Barra, Paulo César Carvalho, de 51 anos, é outro que vive sem lar. Ele diz que ainda não se considera um morador de rua. “Estou me virando”, afirma. Também se perdeu numa espiral de insucessos. Já teve uma empresa de construção civil com 18 funcionários na Região dos Lagos. A crise, então, fez com que, de patrão, ele virasse empregado. Veio ao Rio para trabalhar. Ganhava R$ 1.200 por semana. Mas o serviço acabou, e o chefe se mudou para Portugal. Perdeu o prumo, só foi acolhido numa maloca (nome que os moradores de rua dão aos lugares onde dormem). Divide uma calçada sob uma marquise com cerca de 15 pessoas.
No grupo, há homens e mulheres. Adolescentes e idosos. A todo momento, alguns dos adultos precisam acalmar uma senhora com problemas psiquiátricos. Em meio ao material que guardam há uma prancha, com a qual um deles costuma passear pela praia, embora não sabia surfar. Um outro jovem, que morava numa favela de Santa Cruz, admite ser dependente químico, e diz que prefere ficar ali do que sofrer represálias da milícia que controla a comunidade.
DISPUTA POR RESTOS DE COMIDA
Na quinta-feira à noite, muitos deles tinham passado o dia sem comer. A fome acabou depois que um casal desceu de um carro e começou a entregar quentinhas. Foi um alvoroço. Mas não havia para todos. Alguns acabaram ficando com fome. Penúria semelhante foi vista dois dias antes num dos endereços mais nobres do país, Ipanema. Por volta das 20h, Cristiane Francisca da Silva, de 44 anos, fez sua primeira refeição do dia: um abacate, sobra de uma feira. Há cinco anos que o céu da Praça General Osório é seu teto. Ex-moradora da Cidade de Deus, ela perdeu a direção quando não resistiu à tentação das drogas. Foram anos na cadeia, depois, a rua. Ela conta que está “limpa” desde janeiro, por esforço próprio. “Já viram um centro de recuperação público no Rio para mulheres?”, pergunta. Continua, contudo, sem emprego. Nem biscates consegue. Rotineiramente, passa fome. Apesar de tudo, não perde a capacidade de se indignar com a situação que compartilha com milhares de pessoas.
— Quando um mercado aqui perto fecha as portas, é preciso se apressar para catar os restos que jogam fora. É justo ter que comer o que está no chão, no lixo? É humilhante demais, mas a fome e a sede são insuportáveis. É por isso que, antes de a morte propriamente dita chegar, o morador de rua já está morto. Se torna invisível. É difícil que nos enxerguem como seres humanos. É mais fácil não nos ver — afirma ela, que ainda tem um sonho. — Queria ver minha família e dizer que estou trabalhando.
O Rio, hoje, tem mais moradores de rua que a população de 15 municípios do estado, como Santa Maria Madalena e Rio das Flores. Em algumas áreas, a quantidade de sem-teto é, oficialmente, o triplo de três anos atrás, embora pareça ainda maior. E grande parte — 5.895 deles, ou 41,29% — chegou à sarjeta há menos de um ano, de acordo com o estudo do município, realizado em 2016. Trata-se de um flagelo para o qual a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos busca alternativas. Mas o número de vagas em abrigos revela o quanto é grave a situação: são 2.155, distribuídas em 37 instituições.
Luiz Cláudio buscou ajuda no Abrigo Stella Maris, na Ilha do Governador, assim que acabou seu último centavo. Não suportou a superpopulação do lugar nem a insalubridade das instalações. Preferiu o relento ao que viu. Foi parar, primeiro, na Uruguaiana.
— Eu tremia. E, apesar de não ter um cobertor, não era de frio. Botei um papelão no chão, um tênis debaixo da cabeça, me agarrei à mochila com meus documentos e tentei dormir. Mas logo percebi que não dava — diz ele, explicando seus motivos. — Fui roubado duas vezes, e graças a Deus não levaram a pastinha com minhas recomendações de emprego. Nunca se sabe o dia de amanhã. Passei a catar papel. Mas pagam só R$ 8 por 300 quilos, mal dá para almoçar. As portas se fecharam. Para muitos, se você está na rua, é drogado ou ladrão. Você vira um pária, fica à margem da sociedade. Não quer dizer que seja um bandido. É um “nada” — diz Luiz Cláudio, que ainda não criou coragem de contar sua situação à filha, de 18 anos, para não deixá-la “desesperada”.
Devoto de São José, santo da família e do trabalhador, Luiz Cláudio agora se impõe um limite: espera julho chegar, mês em que poderá sacar seu FGTS inativo. Já tem tudo planejado: alugará um imóvel, continuará à procura de emprego e, se tudo der certo, buscará a família. Se o futuro não sair como o esperado, diz que não hesitará. Pedirá ajuda numa igreja para voltar a Juiz de Fora, mesmo com “uma mão na frente e outra atrás”.
A história dele mostra que, muitas vezes, a linha entre a vida sob um teto e o relento é tênue. As ruas estão cheias de relatos de tragédias que se desenrolaram como um improviso do qual sair parece ser algo impossível. Aos 30 anos, 12 de rua, Dênis Linhares não tem mais um lar desde que sua avó, com quem morava, morreu. O casal Paulo e Suzana Silva, de 42 e 40 anos (respectivamente), ficou desempregado, não pôde mais pagar o aluguel de uma quitinete em Antares, em Santa Cruz, e, há nove meses, foi parar numa das esquinas que concentram moradores de rua no Centro, entre as avenidas Graça Aranha e Almirante Barroso, e agora se entregam ao álcool.
MOTIVAÇÕES EM COMUM
Destinos que não são banais, mas extraordinariamente comuns nas ruas. Em seu levantamento, a Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos identificou causas que levaram quase 15 mil pessoas a viver nas ruas do Rio. Conflitos familiares (resposta de 34,37% deles), o álcool e as drogas (20,13%) e o desemprego (13,32%) são as mais citadas. Também aparecem na lista a fuga da violência nas comunidades em que viviam (2,32%), o despejo ou a perda da residência (1,85%), a moradia longe do trabalho (0,39%) ou mesmo vontade própria (8,96%).
Desembarcou com R$ 1.700, frutos de um bico que tinha feito na Ilha de Itaparica, na Bahia. Seu plano era alugar um quarto em Duque de Caxias e buscar trabalho. Estava tudo acertado. Mas, ainda com a bagagem nas costas, logo depois de sacar o dinheiro num banco, foi assaltado por um adolescente armado com uma faca. Ficou só com uma mochila e documentos. Até suas ferramentas de pintor, que estavam numa mala, ele perdeu.
— Não sabia o que fazer. Nunca tinha dormido na rua. Bateu o medo de que fizessem algo perverso comigo. E veio logo a depressão, por saber que minha família está na Bahia precisando de ajuda — conta André, que, na última quarta-feira, não pensou duas vezes ao pedir ajuda a uma equipe de abordagem especializada da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos. — Isso não é vida. Quero recomeçar.
Em Copacabana, morador lê um livro na calçada em que passa as noites. Bairro é o segundo do Rio com maior quantidade de pessoas em situação de ruaFoto: Alexandre Cassiano /
Na Avenida Olegário Maciel, na Barra, Paulo César Carvalho, de 51 anos, é outro que vive sem lar. Ele diz que ainda não se considera um morador de rua. “Estou me virando”, afirma. Também se perdeu numa espiral de insucessos. Já teve uma empresa de construção civil com 18 funcionários na Região dos Lagos. A crise, então, fez com que, de patrão, ele virasse empregado. Veio ao Rio para trabalhar. Ganhava R$ 1.200 por semana. Mas o serviço acabou, e o chefe se mudou para Portugal. Perdeu o prumo, só foi acolhido numa maloca (nome que os moradores de rua dão aos lugares onde dormem). Divide uma calçada sob uma marquise com cerca de 15 pessoas.
No grupo, há homens e mulheres. Adolescentes e idosos. A todo momento, alguns dos adultos precisam acalmar uma senhora com problemas psiquiátricos. Em meio ao material que guardam há uma prancha, com a qual um deles costuma passear pela praia, embora não sabia surfar. Um outro jovem, que morava numa favela de Santa Cruz, admite ser dependente químico, e diz que prefere ficar ali do que sofrer represálias da milícia que controla a comunidade.
DISPUTA POR RESTOS DE COMIDA
Na quinta-feira à noite, muitos deles tinham passado o dia sem comer. A fome acabou depois que um casal desceu de um carro e começou a entregar quentinhas. Foi um alvoroço. Mas não havia para todos. Alguns acabaram ficando com fome. Penúria semelhante foi vista dois dias antes num dos endereços mais nobres do país, Ipanema. Por volta das 20h, Cristiane Francisca da Silva, de 44 anos, fez sua primeira refeição do dia: um abacate, sobra de uma feira. Há cinco anos que o céu da Praça General Osório é seu teto. Ex-moradora da Cidade de Deus, ela perdeu a direção quando não resistiu à tentação das drogas. Foram anos na cadeia, depois, a rua. Ela conta que está “limpa” desde janeiro, por esforço próprio. “Já viram um centro de recuperação público no Rio para mulheres?”, pergunta. Continua, contudo, sem emprego. Nem biscates consegue. Rotineiramente, passa fome. Apesar de tudo, não perde a capacidade de se indignar com a situação que compartilha com milhares de pessoas.
— Quando um mercado aqui perto fecha as portas, é preciso se apressar para catar os restos que jogam fora. É justo ter que comer o que está no chão, no lixo? É humilhante demais, mas a fome e a sede são insuportáveis. É por isso que, antes de a morte propriamente dita chegar, o morador de rua já está morto. Se torna invisível. É difícil que nos enxerguem como seres humanos. É mais fácil não nos ver — afirma ela, que ainda tem um sonho. — Queria ver minha família e dizer que estou trabalhando.
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