May 8, 2017

Jovens do Alemão convivem com a dor e a morte desde cedo


Após uma semana de muita violência no Complexo do Alemão, jovens da comunidade contam o que esperam do futuro. Na foto, Malcon Osório
Foto: Agência O Globo/Pablo Jacob

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RIO - Com o bigode sempre aparado, FF, apelido de Felipe Farias, gostava de jogar bola no Inferno Verde, área do Complexo do Alemão onde foi criado por sua família. Participava de uma manifestação que pedia paz na favela ao ser atingido por uma bala na cabeça. Sonhava ser militar. Gustavo Silva perdeu a mãe ainda criança. Aprendeu a se virar desde cedo, trabalhando como ajudante de padeiro. Estava a caminho do trabalho às 6h, num dia de feriado, quando foi atingido também na cabeça. Caiu morto na porta da loja de roupas Bunker, na Alvorada, onde havia comprado uma camisa dias antes. Sonhava viajar pelo mundo. Paulo Henrique, rei das bolas de gude no beco onde vivia, no Cruzeiro, tinha apenas 6 anos no fim de 2010, quando 2,7 mil policiais e militares ocuparam o complexo onde ele nasceu. Pouco depois de completar 13 anos, um policial lhe acertou um cascudo forte por não gostar de vê-lo correr. O menino engoliu o choro e passou a abaixar a cabeça diante de policiais para não apanhar de novo. Enquanto caminhava para a casa de um amigo, onde jogaria videogame, foi atingido por um tiro na barriga. Perdeu o baço e o fígado, passou por duas cirurgias no Hospital Salgado Filho, mas não resistiu. Despediu-se da vida na terça-feira passada.

Paulo Henrique, Felipe e Gustavo, de 13, 16 e 17 anos, respectivamente, não se conheciam, mas tinham ao menos quatro coisas em comum. Eram jovens, foram criados no Alemão e morreram baleados na mesma semana, vítimas da guerra instaurada no Complexo do Alemão desde que a Polícia Militar decidiu instalar uma torre blindada no Largo do Samba, na Nova Brasília. Também foram enterrados no mesmo cemitério, em Inhaúma. Outras três pessoas morreram nos últimos dias no Complexo do Alemão: Bruno de Souza, de 24 anos, atingido em casa por um tiro de fuzil na perna quando aproveitava um dia de folga com sua família; Marcos Paulo Silva de Oliveira, de 15 anos, apontado pela Polícia Militar como traficante; e também uma senhora, de nome não identificado, que se assustou com o barulho dos tiros, teve uma parada cardíaca em casa e, ao cair, bateu a cabeça.
Segundo dados do Censo das Favelas, feito pelo governo do estado nas comunidades que receberiam investimentos do PAC, o Alemão tem aproximadamente 100 mil moradores, embora associações locais afirmem ser o dobro. Desses, 28% — quase 30 mil — são jovens de 15 a 29 anos, grupo mais vulnerável nas estatísticas brutais de homicídio no Brasil, onde mais de 50% das vítimas são dessa faixa etária. Apenas no Estado do Rio, em média, 2 mil jovens são assassinados por ano — mais de cinco por dia.

“Velhos momentos, grande saudade, eternas lembranças”, dizia a faixa carregada por dois adolescentes no enterro de Felipe Farias, na tarde de sexta-feira, no cemitério de Inhaúma. O caixão ainda estava aberto e havia ao menos 200 pessoas ao redor, a maioria amigos da escola e da vizinhança. Quando o caixão foi fechado, uma catarse tomou conta de quem estava perto. Um dos jovens tentou se jogar na cova, dizendo “volta, FF”. Outro repetia um pedido: “Bora pra praça, FF, bora jogar bola com a gente”. Um terceiro clamava por justiça: “É meu quinto enterro este ano, cadê a justiça?”. Na saída da cerimônia, o grupo de amigos se deparou com uma viatura da PM, estacionada na calçada do cemitério. Dois garotos apontaram para os policiais um fuzil imaginário. Um deles disse:

— A sorte desses vermes é que não sou bandido, mas nessas horas dá vontade de ser.

REVISTA POLICIAL ATÉ DEUNIFORME ESCOLAR



Na Avenida Central do Alemão, numa subida íngreme, três crianças brincavam com o celular da mãe de um deles enquanto, em casa, era preparado um churrasco. Seu Elias, motorista de caminhão e antigo morador da comunidade, descia com a caçamba de seu veículo lotada — era mais uma família deixando a favela para fugir da guerra. Logo em frente, dois policiais ocupavam irregularmente a laje de uma residência por ordem do major Leonardo Zuma, que insiste em manter os locais ocupados. Na quinta-feira da semana passada, o Tribunal de Justiça ordenou que a tropa saísse. Em um projeto social, do outro lado da rua, jovens conversavam sobre o que fazer durante um tiroteio: uma aula desnecessária no lugar onde todos aprendem muito cedo como agir em conflito.

— Meu irmão tem três anos de idade. Esta semana, ensinei a ele o que fazer quando os tiros começarem. Deitamos todos no chão, eu, ele e nosso irmão mais velho, de 20 anos, que tem autismo. Nunca usei drogas, nunca me envolvi com nada errado. Mas, quando eu passo, a polícia me vê como bandido. Já tive que tirar o uniforme escolar e esvaziar a mochila — desabafa Malcon Ozório, de 18 anos, nascido e criado no Alemão.

Estudante de turismo no curso técnico da Faetec, Malcon lembra de sua favela sendo visitada por turistas do mundo inteiro. Só a artista e produtora cultural Mariluce Souza chegava a levar 200 pessoas por dia em passeios de teleférico pelas 14 comunidades de lá. Isso acabou. O teleférico está parado há seis meses, suas estações viraram pontos isolados de policiamento e visitantes são uma espécie em extinção por ali.

Quem morre deixa marcas nas pessoas: nos muros, há pichações em homenagem aos que se foram. “Eduardo não será esquecido”, diz uma delas, sobre o menino Eduardo de Jesus, morto em 2015 com um tiro de fuzil na cabeça numa ação policial. No Cruzeiro, o pequeno Bryan, de 10 anos, veste uma camisa em que está escrito “Elaine vive”. É uma lembrança do enterro de Elaine Cristina, de 35 anos, atingida por uma bala perdida que deixou três filhos. Bryan conta que nunca perdeu ninguém de sua família para a violência, mas já se despediu de dois amigos em sua breve existência: além de Elaine, Paulo Henrique, de 13 anos.


— Era meu vizinho. A gente brincava muito, principalmente de bolinha de gude — conta.
Há crianças que brincam de tiroteio nos becos das favelas. Elas colam estacas de madeira para transformá-las em armas de brinquedo. Esse tipo de brincadeira, recorrente em outros lugares da cidade, não era vista há muito tempo. Voltou com os confrontos.

— As crianças veem e fazem igual — afirma o fotógrafo Bruno Itan, de 28 anos, idealizador do curso de fotografia Olhar Complexo, que vai formar em breve sua primeira turma, sendo 12 crianças e 27 adultos. — Quero ensinar as crianças o sentimento que a fotografia desperta, e dar a elas a referência de uma profissão.

Sonhando com uma vida melhor nesse cenário sírio, com tiros de fuzil e granadas explodindo na porta de suas casas, os jovens do Alemão perderam um ponto de apoio que ajudou a dar esperança para muitos e até mesmo a tirar pessoas do tráfico: o programa Caminho Melhor Jovem, que atendeu seis mil adolescentes de 15 comunidades da cidade, mas foi paralisado há dois meses. Quem não estudava conseguiu voltar para a escola com ajuda do projeto. Os que não trabalhavam eram encaminhados para cursos ou para um emprego. Foi assim com Hector Santos, de 20 anos. Apesar disso, ele já apanhou da polícia, a caminho de uma festa. Ao perguntar o que fizera para levar pontapés, recebeu uma resposta seca: “Nada, por isso mesmo está apanhando”. Sua casa foi revistada tantas vezes que sua mãe desistiu de arrumá-la.

— Eles sempre entravam com cachorros e bagunçavam tudo, procurando drogas. Minha mãe cansou — diz.

Hector conhecia Felipe, Paulo Henrique e também Caio de Moraes, assassinado aos 20 com um tiro no peito, há dois anos, crime atribuído a um PM da UPP Nova Brasília. Os assassinatos fizeram toda a sua geração perder a pouca esperança que retornara com a pacificação. Quando ele e seus amigos são indagados sobre o que sonham para o futuro, a resposta é uníssona: ver o Alemão em paz.

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