March 3, 2017

O fim da fábula do Carnaval


Flávia Oliveira

 Na fábula, o casal, tomado pelo pecado da avareza, ganha de um duende a galinha que põe ovos de ouro. Um por dia. Como levaria semanas, meses, anos para que a fortuna desejada se materializasse, surge o plano: abrir a galinha e, de uma só vez, extrair dela toda a riqueza. Foi assim que a cobiça deu fim à prudência. A metáfora cabe como luva no enredo de 2017 que empurrou para o córner o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro.

Às vésperas do desfecho trágico — e ainda a tempo de evitá-lo — cabe o alerta: não matem a galinha dos ovos de ouro. Nestas linhas escritas horas antes da apuração das notas do Grupo Especial vai o lamento pelo que o carnaval 2017 poderia ter sido, mas não será, seja quem for a campeã, a vice, as quatro outras agremiações que voltarão ao Sambódromo no sábado, a rebaixada (se houver). Perdemos todos. A folia deste ano será lembrada mais por falhas e ausência do que pela genialidade de sambistas e artistas. O território sagrado da mais importante festa brasileira foi profanado. É preciso sacralizá-lo de volta.


Em quatro dias, descortinaram-se mazelas de anos e anos de descuido, desrespeito e arrogância na gestão de um espetáculo de imenso retorno econômico-financeiro e inestimável — e, portanto, mais importante — valor histórico, artístico e cultural. Foi um show de falta de liderança, preparo técnico, empatia e humanidade. Componentes e públicos foram desrespeitados; artistas, humilhados.


Começou com o acidente bizarro com o carro da Paraíso do Tuiuti, que feriu 20 pessoas ao imprensá-las contra as grades na entrada da passarela. Continuou com o derramamento de óleo na pista por uma das alegorias da Vila Isabel. Prosseguiu com carro cambaleante da União da Ilha, que chegou a tocar no estúdio de TV na Praça da Apoteose; e com a plataforma que desabou com uma passista da Mocidade Independente de Padre Miguel. Culminou com o desabamento do terceiro andar da alegoria da Unidos da Tijuca, que deixou 12 vítimas.


Explica muito sobre a gestão do carnaval que o único episódio a provocar a interrupção da festa — por quase uma hora — tenha sido o vazamento de óleo. A presidente do Salgueiro, Regina Celi, se recusou a iniciar o desfile sem a limpeza completa da pista. O espetáculo parou pelos danos que o piso escorregadio poderia provocar aos integrantes da comissão de frente e aos casais de mestre-sala e porta-bandeira. Mas seguiu com 32 feridos sendo socorridos. Além de protocolo de gestão de crise, faltou coerência.


A série de acidentes na Sapucaí escancarou na passarela o descaso com a segurança, velho conhecido nos barracões. Na Cidade do Samba, o trabalho precário grassa, seja pelo manejo inadequado de equipamentos e materiais, seja pelo modelo informal de contratação. Nos últimos dias, ficou claro que as alegorias que carregam dezenas de pessoas e encantam milhares também são inseguras. “Nada se sabe sobre estrutura dos carros, capacitação de condutores, plano de gestão de crise. A improvisação passou do limite”, alerta Moacyr Duarte, especialista em gerenciamento de risco. A temporada de crise econômica, tudo indica, agravou a negligência.


Foi assim que a Unidos da Tijuca, acidente ocorrido, seguiu desfilando e expôs ao ridículo autoridades, público e artistas. Impôs a intérprete e bateria a execução do samba-enredo e transformou em lamentável ironia o bordão “Que show!” do cantor Tinga. Fez mestre Casagrande cruzar cabisbaixo a avenida. Levou integrantes da comissão de frente à exaustão pela exibição seguida da coreografia numa escola que, por 40 minutos, praticamente não se moveu. Obrigou o premiado casal Rute e Julinho a dançar no improviso, oferecendo o pavilhão aos cumprimentos de passantes, numa cena tão inédita quanto melancólica na pista de desfiles.


Em nota, a Liesa manifestou “preocupação com os episódios ocorridos nos desfiles de domingo e segunda”, como se não fosse a entidade responsável pela organização e pela normatização da festa. Afirmou que, em 33 anos de Sambódromo, houve poucas ocorrências do tipo, como se o tamanho e a sofisticação da festa em 2017 fosse o mesmo de 1984. Marcelo Crivella, prefeito do Rio, ausente estava e assim permaneceu, como se não fosse atribuição dele zelar pelo evento mais importante e mais rentável da cidade.


O que aconteceu na Marquês de Sapucaí no carnaval 2017 não foi fatalidade, obra do divino, castigo do orum. Foi a sobreposição de anos de gestão temerária, descaso, imperícia e burrice. A importância histórica e cultural dessa festa deveria ser suficiente para convencer os senhores das escolas de samba e as autoridades locais a preservá-la. Se o intangível não os comove, que se sensibilizem pela força da grana. Desrespeitar o carnaval diante de público, patrocinadores e artistas desvaloriza e empobrece a festa, além de reduzir a rentabilidade. É o mesmo que matar a galinha dos ovos de ouro. É o fim da fábula.


O GLOBO, 2 de março de 2017 

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