February 28, 2017

Delator da Odebrecht e manicure que roubou fralda têm penas semelhantes


ANGELA BOLDRINI

A única coisa que Alexandrino de Alencar, ex-diretor da Odebrecht Infraestrutura, e Keli Gomes da Silva, analfabeta e manicure, têm em comum é o tempo de sentença: sete anos e meio.

Ela, por furtar quatro pacotes de fralda de um supermercado na Brasilândia, periferia de São Paulo. Prejuízo de algo como R$ 150.

Ele, um dos 77 executivos da empreiteira que fechou acordo de delação premiada no âmbito da Operação Lava Jato, por participar de esquema de corrupção na Petrobras. Pagamento de propina, apenas no Brasil, de R$ 1,9 bilhão, segundo confessou a própria empresa –valor 12,6 milhões de vezes maior que as fraldas levadas por Keli.

Romeia Pereira da Silva foi condenada a 34 anos de prisão por receptação –crime de adquirir ou ocultar produto de origem ilícita– por causa de nove toca-discos, encontrados em sua loja, chamada "Sucauto".

Está presa há cerca de oito anos, cinco e meio a mais do que cumprirá em regime fechado Marcelo Odebrecht, ex-presidente da empreiteira homônima que também fechou acordo de colaboração premiada na Lava Jato.

A similaridade na condenação, apesar da disparidade dos crimes, pode ser explicada por diversos fatores, afirma a juíza e pesquisadora Fernanda Afonso de Almeida, que tratou das diferenças de condenação entre os chamados "crimes de colarinho branco" e os delitos patrimoniais –como roubo e furto– em sua dissertação de mestrado na Faculdade de Direito da USP, em 2012.

"Existe, por exemplo, uma distinção de tratamento das próprias leis, com elementos como a 'extinguibilidade' da pena no caso de sonegação fiscal para aqueles que devolvem o recurso", afirma ela. "No caso do furto, mesmo que a pessoa devolva o objeto, a pena permanece."

A juíza afirma ainda que há uma razão social na diferença de condenações de crimes tipicamente associados às classes altas, como a corrupção, e às classes baixas, como o roubo.

O professor de direito da USP Mauricio Dieter endossa a afirmação. "Da perspectiva social, é claro que um pessoa como a Romeia vai receber uma pena mais alta, por uma série de questões", diz ele.
"No caso dela, não tem acesso à melhor defesa, enquanto aquele que comete o crime de colarinho branco normalmente tem acesso às melhores defesas, vai às audiências de terno e gravata, os filhos estudam na mesma escola que o juiz."

Para Dieter, no entanto, essa diferença não é necessariamente ruim. "Às vezes, se o rico tem um tratamento justo, eu consigo articular isso a favor dos pobres", afirma ele. "O que não se pode fazer é querer socializar a injustiça."

DELAÇÃO
 
No caso dos executivos da Odebrecht, há ainda o fator da colaboração premiada, que reduz a pena.
Apesar disso, os delatores da empreiteira serão os que cumprirão maior tempo atrás das grades –a sentença total de Marcelo Odebrecht é de dez anos, divididos igualmente entre regime fechado, domiciliar fechado, semiaberto e aberto.

Já Alexandrino e Benedicto Junior, ex-presidente da Construtora Norberto Odebrecht, ambos condenados a sete anos e meio, já devem começar em regime domiciliar fechado. Keli, a manicure, passou um ano em regime fechado e hoje cumpre pena no semiaberto –no início de 2017, teve a pena reduzida em um ano após apelação.

Os antecedentes criminais e o tipo de crime também podem influir na pena de casos como o dela, que era reincidente em furto. A pena base no caso de roubo impróprio é de quatro anos.

Almeida defende uma reforma no Código Penal para que se acertem as diferenças, como por exemplo a extensão da extinção da pena para casos de furto em que o objeto é devolvido. "Além disso, os crimes contra o patrimônio são supervalorizados, e os de colarinho branco não fazem parte dele, estão em leis esparsas", afirma.

FOLHA  28 de fevereiro

Novo documentário narra a trajetória do roqueiro Serguei



Se existe um cantor que transgrediu as regras a ponto de ser o rei do underground brasileiro, ele é Sérgio Augusto Bustamante. Aos 83 anos, Serguei ainda respira o estilo rock n' roll por cada poro, apesar da saúde debilitada pelo mal de Alzheimer. Hedonismo define o roqueiro, que agora tem a carreira retratada em três longas-metragens.

Um deles é o documentário "Serguei, o Psicodélico", que a reportagem assistiu com exclusividade e deve estrear nos cinemas no segundo semestre deste ano. Os outros são "O Último Beatnik", com o ator Eriberto Leão no papel de Serguei, e uma pornochanchada.

"Neste momento de caretice generalizada, contar a história de um artista que nunca se rendeu ao moralismo e à repressão governamental é necessário", afirma André Kaveira, diretor do documentário. Vivendo em difícil situação financeira, o músico é coprodutor do projeto feito com verba própria e independente.

A obra foi gravada em dois anos de viagens num motorhome pelo Brasil e os Estados Unidos para mergulhar na vida do cantor. A essência beatnik "pé na estrada" impulsionou a caça pelas testemunhas de eventos surreais, como a noite em que Serguei dividiu o palco de um prostíbulo em Copacabana com Janis Joplin.

"Naquele tempo não tinha selfie, senão a gente teria registrado tudo", brinca a cantora Alcione, que relata no documentário a aventura regada a vodca vagabunda, após a cantora norte-americana ser quase barrada no baile por conta do visual hippie de chinelos. "Ela parecia uma cigana doida com um lenço na cabeça".

BATEU UMA ONDA FORTE
 
Intervenções sensuais da atriz Elida Braz conduzem a narrativa, inspirada numa viagem de ácido, com animações lisérgicas e vídeos VHS. O visual bate com o teor polêmico das entrevistas. De cara, a polícia sai atrás de Serguei, que beijava um rapaz em plena Cinelândia carioca em 1950. Serguei estampou os jornais em 1967 ao protestar nas ruas do Rio empunhando um cartaz a favor da liberdade de expressão em plena ditadura militar.

ROQUEIRO DESCOLADO
 
O trabalho de comissário de bordo fez do artista um "sacoleiro hipster" da época. Serguei abastecia o armário do cantor Roberto Carlos com camisas roqueiras compradas fora do país. Ambos foram amigos e iam ao cinema, quando o "rei" entrava disfarçado das fãs pelos fundos no meio da sessão.
Fora do expediente, o comissário das lentes de olhos azuis "fazia a louca". Na Espanha, ele dançou e derrubou vinho na atriz italiana Gina Lollobrigida, considerada então uma das mulheres mais bonitas do mundo. Resultado: demissão. O cantor foi ao Festival Woodstock, morou em San Francisco numa comunidade hippie com Janis Joplin, onde conheceu Jim Morrison, e foi garçom num restaurante em Nova York nas Torres Gêmeas.

REGISTRO HISTÓRICO
 
Depoimentos de Ney Matogrosso, Frejat, Erasmo Carlos, Angela RoRo, Michael Sullivan, Angela Maria, Evandro Mesquita, Tico Santacruz, Nelson Motta, Maria Juçá, Silvinho Blau Blau, Alcione e outras personalidades dimensionam a importância do caráter contestador do músico na sociedade e na história do rock nacional. A trilha sonora apresenta 18 faixas do artista. Relatos de shows históricos, como do Rock in Rio de 1991, conquistam os fãs.

CONTÉM NUDES
 
Cenas de uma transa entre Serguei e um rapaz de 20 anos arrematam a aventura de uma personalidade que "gosta de sexo pra cacete". Questionado sobre qual reação espera do público, ele não titubeia. "Não me preocupo com o que vão pensar, aquilo ali sou eu na minha essência."

 O cantor Serguei em Saquarema em foto de 2016

February 27, 2017

A grande beleza de viver


RICARDO COSTA


Tenho pensado muito na igualdade, a despeito de sermos tão diferentes. Há dias morreu um amigo e fui visitá-lo pela última vez. Nas capelas vizinhas havia muita gente, mas todos choravam seus mortos com a mesma dor. Vi nascer também uma criança, única, especial e amada. Entretanto, as enfermeiras puseram nela uma pulseira para que não a confundissem com outra qualquer.
2016 foi um ano de desigualdades. Percepções desiguais, verdades parciais, atitudes absolutas, desrespeitosas. Fragilizaram-se as certezas e os afetos, deixando nossa sociedade fragmentada, presa fácil para os urubus.

É hora de refazer laços. Degelar as águas; deixá-las fluir de novo para recriar uma corrente caudalosa. Que bom que chegou o carnaval! Para nos mostrar a realidade exatamente como ela é (ou deve ser). Sim, coberto de fantasias, sonhos e diversidade, o carnaval nos traz a realidade necessária. Nos blocos, brincar livre e sem medo com gente de todas as cores, credos, orientações sexuais e lugares. O tambor precisa bater de novo, achar o ritmo. É preciso cantar aos ventos essa festa de liberdade, esperança e generosidade.

Sempre gostei do carnaval de rua. Queria ter mais dele dentro de mim. Alegro-me ao ver que somos parte dessa história que trouxe de volta ao Rio tantos encontros singelos na dura “cidade partida”. Pois não é que o Escravos da Mauá, bloco que fundei com amigos queridos, fez seu 25º desfile? Um quarto de século, não dá para acreditar.

A gênese do Escravos (como a de outros blocos irmãos) foi marcada pela amizade e a cooperação. Os fundadores tinham entre si uma conexão geracional e espacial. Mas ligavam-se centralmente por laços de afeto numa rede que mostrou força e resistência para sobreviver, crescer e se relacionar com o entorno de forma inovadora.

Essa força produziu-se instintivamente amalgamando pessoas de origens sociais diversas, moradores de diferentes cantos da cidade em torno de música, festa e patrimônio cultural. Os fundadores convidaram os amigos que se encantaram e passaram adiante a experiência para seus próprios amigos. Já estes convidaram outros. E depois os amigos dos nossos amigos seguiram nessa rota compondo assim uma trama de novos nós em progressão geométrica, até que se formou esta rede robusta de afetos em que todos são legítimos autores.

Não houve um plano estratégico deliberado. Tudo se organizou fora da esfera oficial, colaborativamente, das pontas para o centro. Reverberando sentimentos geracionais, aprendendo com o território, sintonizando vontades de participação, nutridos por um acervo poético e musical, fizeram-se os nós, depois a rede de afetos, o tecido de sentimentos e com ele a mais linda fantasia!

Neste carnaval, não se deixe abater pela desesperança. Venha para a rua, por um futuro onde brilhem a democracia, a liberdade, a igualdade e o respeito. Como diz um dos nossos sambas: no Rio, a esperança não cansa jamais, na praça a alegria é a guia da paz.


O GLOBO, 26 DE FEVEREIRO

‘La La Land’ producer Jordan Horowitz is the truth-teller we need right now


  • By Stephanie Merry, www.washingtonpost.com
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  • After “La La Land” producers Jordan Horowitz and Marc Platt delivered their acceptance speeches for best picture, fellow producer Fred Berger found out in the middle of his speech that their movie was not, in fact, the victor — and he offered up an awkward “we lost by the way” before ambling away from the podium.

    Berger wasn’t about to stick around to figure out what exactly happened, and who could blame him? It’s an embarrassing situation.

    But amid the confusion, there was one person willing to take charge and explain — even though he had just given an acceptance speech for an award he didn’t actually deserve.
    Horowitz marched up to the microphone to make an announcement. “Moonlight won,” he said.
    “Guys, guys, I’m sorry, no,” Horowitz said. “There’s a mistake. ‘Moonlight,’ you guys won best picture.”

    “This is not a joke,” he promised.

    “Come up here,” he commanded, motioning with his hand.

    While the people in the audience were gasping with surprise, Horowitz — as if to assure them this wasn’t fake news — held up the card just pulled from the actual award envelope, so that the cameras could zoom in.

    “Moonlight,” he said. “Best picture.”

    Jimmy Kimmel seemed like he wanted to be anywhere but on an Oscars stage at that moment. He tried to make some jokes. The host said he wished that “La La Land” and “Moonlight” could win, but Horowitz wasn’t having it.

    “I’m going to be really thrilled to hand this to my friends from ‘Moonlight,’” he replied.
    Horowitz wasn’t just a gracious loser; he became the closest thing the Oscars can get to a folk hero.
    It’s funny, right? Because what he did wasn’t exactly revolutionary. He told the truth even though it was difficult and awkward and embarrassing, because he had just stood in front of the world and thanked his friends and family for an award that wasn’t his. But that didn’t stop him from admitting that he was wrong, even though he was a victim of circumstance. He could have slunk offstage and let Jimmy Kimmel and Warren Beatty continue to fumble through an explanation. Instead he did the dirty work with what looked like pride.

    This kind of behavior shouldn’t be all that exceptional, but truth has been hard to come by lately. We’ve all just come off an election in which politicians have happily danced around facts, and the president continues to make false or misleading claims. When the truth is inconvenient, a lot of people spin it or bend it to their will. But that’s not Horowitz’s style.
    What was going through his mind when all of this was happening?

    He tried to articulate it during an interview with E! following the awards.

    “It happened really fast,” he said, but his job is to take charge. “Listen, I’m a producer. I gather things together and I change directions and I march things forward.”

    He had also just given a speech about wanting to do more bold and diverse work, he said, so it seemed appropriate somehow that he was able then to hand off his award to such a bold, diverse movie. After all, his movie had already won six awards, and over the last six months, during the craziness of awards season, he’d become close to the people who worked on “Moonlight.

    When Horowitz was a victor, he seemed like a nice enough guy. But as a loser, he showed what a champion for truth looks like.
     

February 23, 2017

Vem de bate-bola!


Marcus Faustini

A cada ano, as turmas inovam nos materiais das fantasias, nos adereços e na performance da saída

Já é carnaval na cidade do Rio de Janeiro. Quem é de bloco exibe sua euforia pelas timelines da vida, quem é de escola de samba está pronto para exaltar a agremiação ou a beleza do espetáculo na avenida. Mas, no subúrbio, um outro carnaval mostra sua vitalidade, mesmo com a crise econômica. São os numerosos bate-bolas e clóvis, essas turmas de mascarados cariocas capazes de despertar sentimentos de profunda paixão em seus integrantes, que não medem esforços de viver a alegria da brincadeira, de lutar pelo reconhecimento de sua cultura, contra a discriminação por parte de autoridades e pela superação da lógica de guerra entre turmas, que marcou anos anteriores.

Anderson Souza já é homem feito. Uma vida de batalhas e correrias, típica de todo carioca popular. Mas os olhos de Anderson ganham aquele brilho de adolescente quando o assunto é bate-bola. Buda, como é chamado pelos mais próximos, é líder da Turma da Fascinação de Oswaldo Cruz, que completa 18 carnavais na próxima semana, quando a turma estará novamente nas ruas. Anderson é reconhecido como um líder consciente que age com humildade e competência, valores muito importantes para a cultura dos bate-bolas e clóvis. Faz tempo que acompanho sua dedicação. Posso dizer com tranquilidade que ele é um personagem importante dessa cena.


Há 11 anos realizei um documentário sobre algumas dessas turmas que marcam a cena do carnaval do subúrbio carioca. Da Zona Norte até Santa Cruz, na Zona Oeste, fui escutar como os próprios integrantes pensavam aquela cultura. O filme correu cinemas, canais de TV e festivais. Foi minha forma de homenagem. Saí de bate-bola, moleque, numa fantasia feita por uma tia, pelas ruas do Jacarezinho. A maioria das turmas que filmamos estão ativas até hoje. Uma tradição que, por vezes, infelizmente, é noticiada como um ponto fora da curva do carnaval, sem demonstrar toda potência e complexidade desse universo. Alguns avanços aconteceram nos últimos anos. As turmas foram reconhecidas como patrimônio cultural da cidade e foram criadas linhas de fomento em alguns editais. Mas elas sobrevivem mesmo é da devoção de seus integrantes. Marcelo Rodrigues, outro personagem importante, líder da Turma do Índio, tido por muitos como um dos grandes nomes da cultura dos bate-bolas, vem dedicando esforços para criar o museu dos bate-bolas. É um tipo de líder que vive a alegria da brincadeira, mas sabe que precisa lutar pelo reconhecimento da tradição da cultura dos bate-bolas.


A cada ano, as turmas inovam nos materiais das fantasias, nos adereços e na performance da saída. O sistema de criação envolve uma cadeia produtiva cheia de artistas oriundos das turmas. Alguns são artesãos, costureiras etc. Possuem um sistema estético definido, arranjos cooperativos e uma cadeia econômica vibrante. Os integrantes pagam as fantasias mensalmente ao longo do ano. Encontros mensais formam a identidade das turmas e o senso de comunidade. É possível contemplar o resultado das turmas durante o carnaval. Nos blocos do Centro, no carnaval de coretos ou no tradicional palco da Cinelândia, onde acontece o concurso das fantasias, sempre aparece alguma turma. Mas o grande momento da cultura dos bate-bolas, especialmente da Zona Norte, é a saída da turma. A plateia se aglomera perto do portão da casa onde a turma se prepara, fogos são disparados, música-tema na batida da caixa de som, e a saída da turma acontece. Momento mágico, quem viu sabe como é!


Os bate-bolas e clóvis mantêm na vida urbana a força da cultura popular, mas com fortes traços territoriais. As turmas de Santa Cruz têm a tradição de mais panos, para poder rodar a fantasia enquanto caminham. Uma das cenas mais marcantes que vi foi uma turma fazer esse tipo de evolução na Rua Felipe Cardoso, em Santa Cruz, no carnaval de 2005. Um daqueles momentos que dão gosto lembrar! Por outro lado, as turmas que se dedicam a manter a tradição da performance de assustar pessoas usam roupas mais curtas. Pra quem quer se iniciar na cultura é bom saber que bate-bolas são a versão que usa uma bexiga e corre atrás de quem provoca. E clóvis é um termo mais usado para as turmas que usam outros adereços — sombrinhas, por exemplo — e priorizam andar exibindo suas fantasias.


No mapa deste ano tem saída de turmas em Cascadura, Realengo, Marechal, Paciência, Baixada Fluminense etc. Vai ter turma dos Malditos, Sinistro, Abusado, Amizade, Estrelas, Família Furo Olho, Velhas, Índio, União, Aventura e Fama, “Agunia”, entre tantas outras. Mais de uma centena de turmas misturando adultos e crianças, homens e mulheres. No próximo dia 26, domingo de carnaval, a partir das 14h, a Turma da Fascinação faz mais uma saída. Esta será especial, completando a maioridade. Anderson comemora os 18 anos da turma, mas já pensa na festa dos 20 anos.


— Pra gente que rala o ano todo é uma libertação, aqui nós somos os artistas — disse-me Anderson, com a cabeça em 2019.


Vem de bate-bola, meu bem!


O GLOBO, 21 DE FEVEREIRO DE 2017

February 20, 2017

Morador de Vigário Geral que vende balas no Santos Dumont tem mais de cem fotos com artistas

por

 O celular de Adauto Miguel quebrou e ele não tem R$ 140 para o conserto. Aos 17 anos, vive sozinho em uma quitinete em Vigário Geral, onde não há televisão nem geladeira, quase nada além de uma cama. Caiu na vida ao ser expulso de casa pelo padrasto, após uma briga, há pouco mais de um ano. Morou de favor com amigos e vendeu água na Praia de Ipanema, mas foi oferecendo balas no Aeroporto Santos Dumont que descobriu, além do ganha-pão, um jeito de ser notado.

 Desde que o aparelho se espatifou no chão, há uma semana, sua conta no Instagram está desatualizada. É lá que ele posta fotos nas quais aparece abraçando personalidades que só via na TV. Apesar da pressa para embarcar ou da vontade de entrar logo num táxi depois da viagem, quase todas param quando ele se aproxima.

 — Nunca tinha ido a um aeroporto. Quando cheguei lá pela primeira vez fiquei intimidado. Via famosos passando e queria chegar perto, mas não conseguia. Depois aprendi que posso falar com qualquer um, mesmo sendo tímido — diz Adauto, com uma porção de balas Halls nas mãos, chinelos nos pés e camisa e bermuda no corpo franzino.

 FLAGRADO POR PAPARAZZO

  Cento e dois famosos já posaram ao seu lado. Atores, cantores, atletas, músicos, bailarinas do Faustão e até um astro internacional: o roqueiro americano Chris Cornell. A primeira postagem foi em 28 de agosto, uma selfie com Rafaela Silva, poucos dias após a judoca conquistar o ouro olímpico. No dia seguinte, foi a vez de Sabrina Sato, que o abraça e encosta sua cabeça na dele. Para fechar o mês, Juliana Paes. Todos abrem largo sorriso: parecem gostar do garoto, que fotografa até quem não conhece muito bem, como João Carlos Martins. “O maestro que eu não sei o nome”, escreveu na legenda.

 Suas postagens são divertidas. Flagrado por um paparazzo com Juliana Paes, escreveu na imagem: “Fomos pegos batendo um papo”. Ao lado de Sophia Abrahão, mandou essa: “Sempre terá o meu amor”. Com a também atriz Giovanna Ewbank escreveu: “Pagou até uma coxinha”. Para a foto com a apresentadora Sabrina Sato: “Quero te ver outra vez, você deixou saudade”. Com Rodrigo Santoro foi lacônico: “Humilde”. Laura Cardoso, para ele, é apenas “Laurinha”. Suely Franco, chama de “Vovó Suely”. Até político, como Marcelo Freixo, entra no seu hall da fama.

Adauto é popular no Santos Dumont. Alguns faxineiros o chamam pelo nome. E os seguranças gostam do garoto, embora sejam obrigados a retirá-lo do saguão do segundo andar, onde costuma ir para tirar selfies. Para evitar confusão, nessas horas ele esconde as balas na mochila.
Funcionária de uma loja, Rafaella Aguiar, de 19 anos, descobriu recentemente que Adauto está no Instagram. — Fui postar uma foto que fiz com a Xuxa e descobri por acaso a conta dele. Tem foto com todo mundo, como esse garoto consegue? — indaga, com uma dose de inveja, a também colecionadora de selfies com famosos, embora, nesse quesito, não chegue aos pés de Adauto.

Às vezes, ele é reconhecido. Em janeiro, estava distraído quando ouviu uma voz grave: “E aí, moleque?”. Era o ator Oscar Magrini. Eles se abraçaram e Adauto não perdeu a oportunidade de mais um clique. Com Preta Gil já foram três. Com Fernanda Lima, dois. — Fernanda disse que me levará para o programa dela — conta.
Não são poucos os que, como Adauto, aproveitam o vaivém de celebridades para guardar uma recordação. A diferença é que ele faz isso com maestria. Qual o segredo, além de uma “esperteza que só tem quem está cansado de apanhar”, como cantam Os Paralamas do Sucesso?
— É um menino gentil, pediu a foto de uma maneira muito delicada — afirma o ator João Vicente de Castro. — Para você vender bala no Santos Dumont, com a desigualdade batendo na sua cara o tempo todo, precisa ser uma pessoa admirável e de grande caráter.
EM BUSCA DE SEGUIDORES
Ao voltar para casa, Adauto caminha quatro quilômetros do aeroporto até a Central do Brasil, onde pega um trem para Vigário Geral. Como não tem nada em casa, onde mora desde janeiro, ele consegue o jantar com a mãe, que vive no mesmo bairro, um dos piores IDHs da cidade. Foi ela quem ajudou o filho a arrumar uma vaga no Bob’s do Via Parque, onde o rapaz trabalha desde o início do ano fazendo milk-shake. O primeiro salário está para sair e, com o dinheiro, pagará o aluguel e o conserto do celular.
Mesmo empregado, Adauto não deixa de vender balas no aeroporto. Sua meta agora é ter mais gente acompanhando suas postagens: até sábado, ele somava 135 seguidores.
— Um dia, todos vão saber quem é o @AdautoMiguel22 — garante.
O GLOBO, 20 DE FEVEREIRO DE 2017

February 19, 2017

Caminhando com Trump


Adriana Carranca

Reação a governo controverso gera mobilizações positivas em diferentes áreas

Para não dizer que não falei das flores, em meio ao cataclismo dos primeiros 15 dias de Donald Trump na Presidência dos EUA há pelo menos um efeito provocado por seu governo até agora que pode ser visto sob uma perspectiva um pouco mais positiva. A ver. 

Trump conseguiu levar às ruas de Washington e outras 500 cidades americanas um número estimado entre 3,3 milhões e 4,6 milhões de pessoas na Women’s March, a maior marcha da História dos EUA, mesmo considerando as estimativas mais baixas (o cálculo foi possível graças a um grupo de cientistas que se voluntariou para analisar dados de satélites, balões meteorológicos, fotos e imagens do Google Maps, após a polêmica em torno do público presente na cerimônia de posse do presidente). É um marco e tanto. Os protestos reuniram mais gente do que as marchas de Selma a Montgomery, em 1965, que resultaram em conquistas históricas para o movimento de direitos civis americano.

Dois dias depois, milhares de estudantes em todo o país esvaziaram as salas de aula e se colocaram na frente das universidades em protesto contra “um Gabinete bilionário e corrompido movido a combustíveis fósseis”, nas palavras dos líderes do movimento. “A juventude está se levantando”, disse Greta Neubauer, diretora de um dos grupos universitários que estão reavivando o movimento estudantil americano. Vinte e um estudantes entraram com uma ação na Justiça contra o governo por incapacidade de lidar com os efeitos das mudanças climáticas. “Há 75 milhões de pessoas neste país com menos de 18 anos. Nós não tivemos a oportunidade de votar nas eleições passadas”, disse um deles ao site EcoWatch, que criou uma plataforma chamada TrumpWatch para acompanhar de perto as medidas do novo presidente que possam ter impacto no clima. “Nosso direito a um futuro justo e sustentável é inegociável.”

Um professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de Syracuse, David Sobel, lançou uma plataforma na internet para que filósofos compartilhem ideias de como reagir a Donald Trump. Mais de 40 ganhadores do Prêmio Nobel, dezenas de acadêmicos prestigiados, integrantes das Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina e milhares de professores assinaram uma petição contra o decreto de Trump anti-imigração
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Horas depois de anunciado, advogados correram ao Aeroporto Internacional JFK para defender como voluntários quem estava sendo barrado e preso. No saguão, milhares de manifestantes se amontoavam com cartazes improvisados: “Muslims are welcome here, no hate, no fear!” (“Muçulmanos são bem-vindos aqui, sem ódio, sem medo”). Um juiz agiu rápido e bloqueou em parte a ordem de Trump. O mesmo ocorreu em outros aeroportos.

A comoção incentivou doações a organizações como No One Left Behind, de veteranos, que ajuda imigrantes afegãos e iraquianos que contribuíram com as tropas americanas na guerra a se estabelecerem nos EUA. Numa pequena cidade do Texas, judeus entregaram a chave da sinagoga aos vizinhos muçulmanos para que tenham um lugar para rezar até ser reconstruída a mesquita local, incendiada.

Ex-funcionários públicos criaram o site IndivisibleGuide.com, em que revelam as práticas mais eficientes para chegar aos congressistas e “bloquear a agenda de Donald Trump”. Outro grupo tem ensinado cidadãos a se registrarem para votar à distância e a usarem apps como TurboVote, que alerta sobre votações locais próximas, e Countable, que rastreia políticas em discussão no Congresso.

Também os estão incentivando a reservar ao menos uma hora por semana para escrever e telefonar a seus representantes no Congresso. Modelos de cartas foram distribuídos. Tuítes compartilhando os números diretos, alguns de celular, dos senadores se multiplicaram. Nos últimos dias, as ligações congestionaram as linhas telefônicas do Senado. Senadores disseram ter mudado de opinião sobre a nomeação de Betsy DeVos para a pasta da Educação após receberem “um volume pesado de ligações” com denúncias sobre seu desconhecimento da área, deixando-a a apenas um senador de ser rejeitada.

Os principais jornais dos EUA, entre eles “New York Times”, “Washington Post” e o site ProPublica, tiveram aumento de assinantes após as eleições, o que muitos acreditam ser uma resposta à profusão de notícias falsas pelo presidente, sua equipe e apoiadores. 

Trump seguirá com uma política agressiva. Mas não será sem resistência.

A empreitada do crime progride

vinicius torres freire

Presos na penitenciária "Adriano Marrey, em Guarulhos

O tamanho e a organização das quadrilhas de suborno das empreiteiras dão o que pensar sobre o alcance das facções criminosas dos presídios.

Não se imaginava que empresários e executivos bandidos comprassem tantos, por tanto dinheiro, por tanto tempo, em tantos lugares. No entanto, não eram clandestinos. Era gente que estava à nossa vista, era eleita "empresário do ano", dava entrevista, saía nas colunas, fazia caridades, discutia "projetos de país", "regulação do mercado".

Enfim, se tratava de integrantes de escol do estamento empresarial-estatal. Talvez ainda se trate, no presente, pois vários devem estar soltos, fazendo "aditivos de contratos", tolerados ou se esgueirando furtivamente por aí, tais quais colaboracionistas na Europa do pós-guerra.

Até onde teriam se infiltrado as facções, bem mais obscuras? É pelo menos uma dúvida angustiante razoável, para ser otimista. As milícias do Rio, por exemplo, são parte evidente da política municipal da Baixada Fluminense. Um vereador hoje pode ser prefeito amanhã, quem sabe político federal pouco mais adiante.

Algumas facções, porém, parecem mais organizadas, eficientes e profissionais do que as milícias.

É óbvio que uma facção criminosa não terá poder caso não possa administrar recursos e oferecer benefícios a seus associados. É óbvio que não terá meios de fazê-lo a não ser que o poder público seja inoperante, por corrupção ou incompetência. Nos presídios, sabe-se que isso é certo. E fora deles? Onde mais as facções operam, por ação ou omissão das autoridades oficiais?

O PCC organizou-se em presídios do interior paulista entre 1993 e 1995, ano em que já era extenso e operacional, chacinando desafetos e organizando motins. Ainda em 1997, o governo tucano paulista negava sua existência. Em 1995, o PCC amotinava um presídio; em 2001, 29. Chacinava policiais. Em 2006, lançou uma onda de ataques terroristas que parou São Paulo.

São histórias sabidas. Menos lembrados são os resultados de inquéritos parlamentares e investigações de policiais, promotores e pesquisadores acadêmicos, da primeira metade da década passada.

Os diversos ramos do crime se esbarravam, se articulavam ou já eram redes, notavam os investigadores. Fazia já tempo, notava-se faz uma década, estavam conectadas ou faziam negócios entre si quadrilhas de narcotráfico, contrabando, lavagem de dinheiro, jogo ilegal (bicho, bingo, caça-níqueis), financiamento de políticos do crime ou agregados, desvio de dinheiro público, corrupção de autoridades.

Uma década depois, as maiores facções são sabidamente nacionais, oligopólios ou conglomerados. Tentativas de monopolização do negócio do tráfico e da administração paralela dos presídios têm causado morticínios desde meados do ano passado, dizem os entendidos.

Dadas a extensão das operações, a quantidade de dinheiro envolvida e os problemas logísticos e político-administrativos da empreitada, é razoável acreditar que as facções contam com a inoperância ou a conivência do Estado apenas nos presídios?

Quando se vai investigar tal desastre? Quando o governo tiver sido comprado pelas facções, tal qual as empreiteiras fizeram? Será pior e tarde demais.

February 18, 2017

How Jokes Won the Election

  • By Emily Nussbaum, www.newyorker.com
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  • “Wait a minute—this podcast is coming from inside the house!”
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    Since November 9th, we’ve heard a lot of talk about unreality, and how what’s normal bends when you’re in a state of incipient autocracy. There’s been a lot written about gaslighting (lies that make you feel crazy) and the rise of fake news (hoaxes that displace facts), and much analysis of Trump as a reality star (an authentic phony). But what killed me last year were the jokes, because I love jokes—dirty jokes, bad jokes, rude jokes, jokes that cut through bullshit and explode pomposity. Growing up a Jewish kid in the nineteen-seventies, in a house full of Holocaust books, giggling at Mel Brooks’s “The Producers,” I had the impression that jokes, like Woody Guthrie’s guitar, were a machine that killed fascists. Comedy might be cruel or stupid, yet, in aggregate, it was the rebel’s stance. Nazis were humorless. The fact that it was mostly men who got to tell the jokes didn’t bother me. Jokes were a superior way to tell the truth—that meant freedom for everyone.

    But by 2016 the wheel had spun hard the other way: now it was the neo-fascist strongman who held the microphone and an army of anonymous dirty-joke dispensers who helped put him in office. Online, jokes were powerful accelerants for lies—a tweet was the size of a one-liner, a “dank meme” carried farther than any op-ed, and the distinction between a Nazi and someone pretending to be a Nazi for “lulz” had become a blur. Ads looked like news and so did propaganda and so did actual comedy, on both the right and the left—and every combination of the four was labelled “satire.” In a perverse twist, Trump may even have run for President as payback for a comedy routine: Obama’s lacerating takedown of him at the 2011 White House Correspondents’ Dinner. By the campaign’s final days, the race felt driven less by policy disputes than by an ugly war of disinformation, one played for laughs. How do you fight an enemy who’s just kidding?

    Obama’s act—his public revenge for Trump’s birtherism—was a sophisticated small-club act. It was dry and urbane, performed in the cerebral persona that made Obama a natural fit when he made visits to, say, Marc Maron’s podcast or Seinfeld’s “Comedians in Cars Getting Coffee.” In contrast, Trump was a hot comic, a classic Howard Stern guest. He was the insult comic, the stadium act, the ratings-obsessed headliner who shouted down hecklers. His rallies boiled with rage and laughter, which were hard to tell apart. You didn’t have to think that Trump himself was funny to see this effect: I found him repulsive, and yet I could hear those comedy rhythms everywhere, from the Rodney Dangerfield “I don’t get no respect” routine to the gleeful insult-comic slams of Don Rickles (for “hockey puck,” substitute “Pocahontas”) to Andrew Dice Clay, whose lighten-up-it’s-a-joke, it’s-not-him-it’s-a-persona brand of misogyny dominated the late nineteen-eighties. The eighties were Trump’s era, where he still seemed to live. But he was also reminiscent of the older comics who once roamed the Catskills, those dark and angry men who provided a cathartic outlet for harsh ideas that both broke and reinforced taboos, about the war between men and women, especially. Trump was that hostile-jaunty guy in the big flappy suit, with the vaudeville hair, the pursed lips, and the glare. There’s always been an audience for that guy.

    Like that of any stadium comic, Trump’s brand was control. He was superficially loose, the wild man who might say anything, yet his off-the-cuff monologues were always being tweaked as he tested catchphrases (“Lock her up!”; “Build the wall!”) for crowd response. On TV and on Twitter, his jokes let him say the unspeakable and get away with it. “I will tell you this, Russia, if you’re listening—I hope you’re able to find the thirty thousand e-mails that are missing,” he told reporters in July, at the last press conference he gave before he was elected. Then he swept his fat palm back and forth, adding a kicker: “I think you will probably be rewarded mightily by our press.”

    It was a classically structured joke. There was a rumor at the time that Russia had hacked the D.N.C. At the same time, Hillary Clinton’s e-mails from when she was Secretary of State—which were stored on a private server—were under scrutiny. Take two stories, then combine them: as any late-night writer knows, that’s the go-to algorithm when you’re on deadline. When asked about the remark, on Fox News, Trump said that he was being “sarcastic,” which didn’t make sense. His delivery was deadpan, maybe, but not precisely sarcastic.

    But Trump went back and forth this way for months, a joker shrugging off prudes who didn’t get it. He claimed that his imitation of the disabled reporter Serge Kovaleski was a slapstick take on the reporter “grovelling because he wrote a good story.” (“Grovelling,” like “sarcastic,” felt like the wrong word.) He did it when he said that Megyn Kelly had “blood coming out of her wherever”—a joke, he insisted, and he actually meant her nose. “I like people who weren’t captured,” about John McCain: that had the shape of a joke, too.

    The Big Lie is a propaganda technique: state false facts so outlandish that they must be true, because who would make up something so crazy? (“I watched in Jersey City, N.J., where thousands and thousands of people were cheering as that building was coming down.”) But a joke can be another kind of Big Lie, shrunk to look like a toy. It’s the thrill of hyperbole, of treating the extreme as normal, the shock (and the joy) of seeing the normal get violated, fast. “Buh-leeve me, buh-leeve me!” Trump said in his act, again and again. Lying about telling the truth is part of the joke. Saying “This really happened!” creates trust, even if what the audience trusts you to do is to keep on tricking them, like a magician reassuring you that while his other jokes are tricks, this one is magic.

    It could be surprisingly hard to look at the phenomenon of Trump directly; the words bent, the meaning dissolved. You needed a filter. Television was Trump’s natural medium. And television had stories that reflected Trump, or predicted his rise—warped lenses that made it easier to understand the change as it was happening.

    No show has been more prescient about how far a joke can go than “South Park.” Its co-creators, the nimble libertarian tricksters Trey Parker and Matt Stone, could sense a tide of darkness that liberal comedians like John Oliver and Samantha Bee could not, because “South Park” liked to ride that wave, too. For two decades, “South Park,” an adult animated show about dirty-mouthed little boys at a Colorado school, had been the proud “anti-political-correctness” sitcom. Season 19, which came out in 2015, was a meta-meditation on P.C., and, by the season’s end, one of the characters, Mr. Garrison, was running for President on a platform of “fucking immigrants to death.” There was also a Canadian President who emerged as “this brash asshole who just spoke his mind,” the show explained. “He didn’t really offer any solutions—he just said outrageous things. We thought it was funny. Nobody really thought he’d ever be President. It was a joke! But we just let the joke go on for too long. He kept gaining momentum, and by the time we were all ready to say, ‘O.K., let’s get serious now—who should really be President?,’ he was already being sworn into office.”

    Yet, as Season 20 opened, the show was doing precisely what a year earlier it had warned against: treating Garrison’s Trump as an absurd, borderline-sympathetic joke figure, portraying him and Clinton as identical dangers, a choice between a “giant douche” and a “turd sandwich.” Beneath that nihilism, however, “South Park” was onto something both profound and perverse. The fight between Trump and Clinton, it argued, could not be detached from the explosion of female comedy: it found its roots in everything from the female-cast “Ghostbusters” reboot to the anti-feminist GamerGate movement. Trump’s call to Make America Great Again was a plea to go back in time, to when people knew how to take a joke. It was an election about who owned the mike.

    In one plot, the father of one of South Park’s little boys is a misogynist troll who gets recruited by a global anonymous online army; in another, the boys and girls at the school split into man-hating feminists and woman-hating “men’s rights” activists. Meanwhile, an addictive snack called Member Berries—they whisper “ ’Member? ’Member?”—fills the white men of the town with longing for the past, mingling “Star Wars” references with “ ’Member when there weren’t so many Mexicans?” Mr. Garrison, as “Trump,” rides this wave of white male resentment and toxic nostalgia. But the higher he rises the more disturbed he is by the chaos he’s unleashed. Desperate to lose, he imagines that if he finally offends his followers they won’t vote for him.

    Halfway through the season, Mr. Garrison’s Trump appeared as a standup comic. As the crowd chants “Douche! Douche! Douche!,” he struts onstage with a microphone, as cocky as Dane Cook. “So I’m standing in line at the airport, waitin’ in security because of all the freakin’ Muslims,” he begins, and then, when his fans hoot in joy, he tries for something nastier. “And the T.S.A. security people all look like black thugs from the inner city, and I’m thinking, Oh, good, you’re gonna protect us?” When racist jokes get only bigger laughs, he switches to gags about sticking his fingers into women’s butts and their “clams.” Finally, some white women walk out. “Where did I lose you, honey?” he taunts them from the stage. “You’ve been O.K. with the ‘Fuck ’Em All to Death’ and all the Mexican and Muslim shit, but fingers in the ass did it for you. Cool. Just wanted to see where your line was.”

    As prescient as “South Park” could be, it clearly counted on Clinton’s winning: a dirty boy requires a finger-wagging mom. After Election Day, the writers quickly redid the show, and the resulting episode, “Oh, Jeez,” exuded numbness and confusion. “We’ve learned that women can be anything, except for President,” one character tells his wife and daughter. There were things “South Park” had always had trouble imagining: it was complex and dialectical on male anger and sadness, and able to gaze with empathy into the soul of a troll, but it couldn’t create a funny girl or a mother who wasn’t a nag. What it did get, however, was how dangerous it could be for voters to feel shamed and censored—and how quickly a liberating joke could corkscrew into a weapon.

    In November, shortly after the host of “The Apprentice” was elected President, the troubled starlet Tila Tequila—herself a former reality-TV star, one whose life had become a sad train wreck—blinked back onto the gossip radar. Now she was a neo-Nazi. On her Twitter account, she posted a selfie from the National Policy Institute conference, an “alt-right” gathering, where she posed, beaming a sweet grin, her arm in a Hitler salute. The caption was a misspelled “sieg heil.” Her bio read “Literally Hitler!”

    It was an image that felt impossible to decode, outside the sphere of ordinary politics. But Literal Hitler was an inside joke, destabilizing by design; as with any subcultural code, from camp to hip-hop, it was crafted to confuse outsiders. The phrase emerged on Tumblr to mock people who made hyperbolic comparisons to Hitler, often ones about Obama. Then it morphed, as jokes did so quickly last year, into a weapon that might be used to mock any comparisons to Hitler—even when a guy with a serious Hitler vibe ran for President, even when the people using the phrase were cavorting with Nazis. Literal Hitler was one of a thousand such memes, flowing from anonymous Internet boards that were founded a decade ago, a free universe that was crude and funny and juvenile and anarchic by design, a teen-age-boy safe space. The original version of this model surfaced in Japan, on the “imageboard” 2chan. Then, in 2003, a teen-ager named Christopher Poole launched 4chan—and when the crudest users got booted they migrated to 8chan, and eventually to Voat.co. For years, those places had mobbed and hacked their ideological enemies, often feminists, but they also competed for the filthiest, most outrageous bit, the champion being whatever might shock an unshockable audience. The only winning move was not to react.

    In “An Establishment Conservative’s Guide to the Alt-Right,” two writers for Breitbart mapped out the alt-right movement as a patchwork of ideologies: there were “the Intellectuals,” “the Natural Conservatives,” men’s-rights types, earnest white supremacists and anti-Semites (whom the authors shrug off as a humorless minority), and then the many invisible others—the jokers, the virtual writers’ room, punching up one another’s gags. In Breitbart’s take, this was merely payback for the rigidity of identity politics. “If you spend 75 years building a pseudo-religion around anything—an ethnic group, a plaster saint, sexual chastity or the Flying Spaghetti Monster—don’t be surprised when clever 19-year-olds discover that insulting it is now the funniest fucking thing in the world,” the article states. “Because it is.”

    Two thousand sixteen was the year that those inside jokes were released in the wild. Despite the breeziness of Breitbart’s description, there was in fact a global army of trolls, not unlike the ones shown on “South Park,” who were eagerly “shit-posting” on Trump’s behalf, their harassment an anonymous version of the “rat-fucking” that used to be the province of paid fixers. Like Trump’s statements, their quasi-comical memeing and name-calling was so destabilizing, flipping between serious and silly, that it warped the boundaries of discourse. “We memed a President into existence,” Chuck Johnson, a troll who had been banned from Twitter, bragged after the election. These days, he’s reportedly consulting on appointments at the White House.

    Last September, Donald Trump, Jr., posted on Instagram an image of Trump’s inner circle which included a cartoon frog in a Trump wig. It was Pepe the Frog, a benign stoner-guy cartoon that had been repurposed by 4chan pranksters—they’d Photoshopped him into Nazi and Trump drag, to mess with liberals. Trump trolls put Pepe in their avatars. But then so did literal Nazis and actual white supremacists. Like many Jewish journalists, I was tweeted images in which my face was Photoshopped into a gas chamber—but perhaps those were from free-speech pranksters, eager to spark an overreaction? It had become a distinction without a difference. The joke protected the non-joke. At the event that Tila Tequila attended, the leader shouted “Heil Trump!”—but then claimed, in the Trumpian manner, that he was speaking “in a spirit of irony.” Two weeks ago, the Russian Embassy tweeted out a smirking Pepe. The situation had begun to resemble an old story from the original fake-news site, the Onion: “Ironic Porn Purchase Leads to Unironic Ejaculation.”

    There’s a scene in the final season of “Mad Men” in which Joan and Peggy, former secretaries, have risen high enough to be paired as a creative team. It’s 1970; the feminist movement has the pull to be threatening. (Earlier, it was a punch line: “We’ll have a civil-rights march for women,” Peggy’s left-wing boyfriend, Abe, said, laughing.) They sit at a conference table to meet their new bosses, three frat-boy suits from McCann Erickson. “Well, you’re not the landing party we expected,” one of them says.

    The account is Topaz pantyhose, a competitor of the newly global L’Eggs. “So they’re worried that L’Eggs are going to spread all over the world?” one man says with a leer. “That wouldn’t bother me at all.” It’s a joke delivered past the women to the other men, who chuckle and make eye contact. Peggy and Joan smile politely. It goes on like that: the women’s pitches slam against a wall, because the men are one another’s true audience. “Would you be able to tell them what’s so special about your panties?” they ask Joan. She can be crude or elegant, she can ignore them, or she can be a “good sport.” But every path, she knows from experience, leads to humiliation
    .
    Afterward, Joan and Peggy stand in the elevator, fuming. “I want to burn this place down,” Joan says. They have an argument—they fight about Peggy being homely and Joan hot, how each of them dresses and why. The argument has the same premise as the jokes: how men see you is all that matters. Knowing what’s wrong doesn’t mean you know how to escape it.

    I thought of that scene the first time I saw the “Access Hollywood” tape, the one that was supposed to wreck Trump’s career, but which transformed, within days, on every side, into more fodder for jokes: a chance to say “pussy” out loud at work; the “Pussy Grabs Back” shirt I wore to the polls. In the tape, Billy Bush and Trump bond like the guys at McCann Erickson, but it’s when they step out of the bus to see the actress Arianne Zucker that the real drama happens. Their voices change, go silky and sly, and suddenly you could see the problem so clearly: when you’re the subject of the joke, you can’t be in on it.

    The political journalist Rebecca Traister described this phenomenon to me as “the finger trap.” You are placed loosely within the joke, which is so playful, so light—why protest? It’s only when you pull back—show that you’re hurt, or get angry, or try to argue that the joke is a lie, or, worse, deny that the joke is funny—that the joke tightens. If you object, you’re a censor. If you show pain, you’re a weakling. It’s a dynamic that goes back to the rude, rule-breaking Groucho Marx—destroyer of élites!—and Margaret Dumont, pop culture’s primal pearl-clutcher.

    When Hillary described half of Trump’s followers as “deplorables,” she wasn’t wrong. But she’d walked right into the finger trap. Trump was the hot comic; Obama the cool one. Hillary had the skill to be hard-funny, too, when it was called for: she killed at the Al Smith charity dinner, in New York, while Trump bombed. It didn’t matter, though, because that was not the role she fit in the popular imagination. Trump might be thin-skinned and easily offended, a grifter C.E.O. on a literal golden throne. But Hillary matched the look and the feel of Margaret Dumont: the rich bitch, Nurse Ratched, the buzzkill, the no-fun mom, the one who shut the joke down.

    On “The Waldo Moment,” an episode of the British show “Black Mirror,” a miserable comic named Jamie is the voice behind Waldo, an animated blue bear, whose specialty is humiliating public figures. His act is scatological and wild, in the tradition of Ali G and Triumph the Insult Comic Dog, as well as the meaner correspondents on “The Daily Show.” It’s ambush comedy, taking the piss. But Jamie’s bosses, hip nihilists with their eye on the bottom line, see greater potential for profit—online, an act like Waldo can go viral, jumping live from phone to phone.
    As a gag, they run Waldo for Parliament, just as Colbert once started his own satirical super PAC. Jamie has no true politics—“I’m not dumb or clever enough to be political,” he protests—but his crude attacks take off. He becomes a populist sensation, like Trump: he’s the joke that’s impossible to fight. The politicians he’s attacking are required to be serious, both the Tory stuffed shirt and the young female Labour upstart, who is dryly funny in private but can’t risk showing it in public. A blue bear doesn’t need to follow rules, however. Since Waldo attacks phonies—and is open about his own phonyness, including the fact that he’s a team effort—viewers find him authentic. Even a brilliantly acerbic chat-show interrogator can’t unseat him, because Jamie’s got so much more bandwidth. He’s allowed to curse, to be stupid, to be angry—the fight is fixed in his favor, because all the emotion belongs to him.

    “The Waldo Moment” came out in 2013. By then, viewers had spent years getting their news delivered via comedy, and vice versa. Jon Stewart was two years from retirement; Colbert would soon jump to CBS. Newspapers, starved of print ads, had died years before—or been shoved into the attention economy, where entertainment mattered most. Online, all clicks were equal. Breitbart got traffic off quasi-comical headlines; the conspiracy theorist Alex Jones screamed on his livestream like Sam Kinison. It was no great leap for paranoid delusions, like Pizzagate, or deliberate hoaxes, like the one about the Pope endorsing Trump, to pass muster on Facebook, because the design made all news-like items feel fungible. On both the left and the right, the advertising imperative was stronger than the ethical one: you had to check the URL for an added “.co” to see if a story was real, and how many people bothered? If some readers thought your story was a joke and others thought it was outrageous, well, all the better. Satire was what got traffic on Saturday night.

    Like “South Park,” “Black Mirror” could see far, but not all the way to the end. Waldo, who has come in second in the election, gets acquired by sinister global-capitalist forces, which recognize that his Pepe-goofy image is the ideal mask for fascist power. As a militarized police force rousts homeless people from an alley, Waldo gleams from billboards, his message having pivoted to “Hope.” When the episode came out, it was divisive: some viewers found it overly cynical in its portrait of the mob. Now it seems naïve: the creators did not imagine that Waldo might win—or that the person controlling him might want to win. Like Mr. Garrison, like the shysters in “The Producers,” Jamie tries desperately to escape the prank persona that he’s created. But when he shrieks “Don’t vote for me!” the audience only laughs; when he flees the van in which he’s performing, his boss takes over the voice of Waldo. It’s only when Jamie threatens to disrupt the show, attacking the screen on which Waldo appears, and the blue bear orders the crowd to beat him up, that people stop laughing.

    When Vladimir Putin was elected President, in 2000, one of his first acts was to kill “Kukly,” a sketch puppet show that portrayed him as Little Tsaches, a sinister baby who uses a “magic TV comb” to bewitch a city. Putin threatened to wreck the channel, NTV, unless it removed the puppet. NTV refused. Within months, it was under state control. According to Newsweek, “Putin jokes quickly vanished from Russia’s television screens.”

    Soon after Trump was elected, he, too, began complaining about a sketch show: “Saturday Night Live,” which portrayed him as a preening fool, Putin’s puppet. His tweets lost the shape of jokes, unless you count “not!” as a kicker. He was no longer the blue bear. Instead, he was reportedly meeting with Rupert Murdoch about who should head the F.C.C. Soon, Trump would be able to shape deals like the A.T. & T. and Time Warner merger, to strike back at those who made fun of him or criticized him, which often amounted to the same thing. Fox would likely be Trump TV.

    Last week, at his first press conference as President-elect, Trump made no jokes. He was fuming over the BuzzFeed dossier and all those lurid allegations worthy of “South Park,” the pee jokes lighting up Twitter. Only when he reminisced about his rallies did he relax, recalling their size, the thrill of the call and response. He almost smiled. But when CNN’s Jim Acosta tried to ask a question about Russia, Trump snapped back, furiously, “Fake news!”—and the incoming White House press secretary, Sean Spicer, told Acosta that if he tried that again he’d be thrown out. Now, it seems, is when Trump gets serious. A President pushes buttons in a different sense. As Putin once remarked to a child, “Russia’s borders don’t end anywhere”—before adding, “That’s a joke.” 

    NEW YORKER, JANUARY 2017 
     

No Rio, mais da metade dos presos com maconha é autuada por porte


  • ELENILCE BOTTARI

Enquanto os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) discutem a descriminalização dos usuários de drogas em uma ação que corre desde 2015, a cada duas pessoas presas com maconha no Rio, uma é autuada por porte. Um estudo do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostra que 37.246 das 67.352 flagradas com o entorpecente do início de 2010 até outubro do ano passado — 55,30% — foram autuados por suposto consumo da substância.

 LEI DE DROGAS ULTRAPASSADA”

Segundo o ISP, em 50% dos casos envolvendo maconha, o acusado carregava menos de dez gramas da erva. Para efeito de comparação, o estudo cita a legislação da Espanha, onde o critério de classificação é de até cem gramas para o uso: “Assim, pode-se dizer que 64% das ocorrências de tráfico de maconha (foram 30.106 casos no período analisado) seriam consideradas posse pelo modelo espanhol”. Para a pesquisadora Ilona Szabó, diretoraexecutiva do Instituto Igarapé, a política de segurança do Rio segue a lei de 2006. Para ela, o estudo do ISP é de extrema importância para guiar a tomada de decisão de gestores públicos e a mudança de rumo na políticas sobre drogas:

— Os dados analisados comprovam o que já constatávamos em depoimentos e no cotidiano das grandes cidades. Os policiais militares e civis são obrigados a cumprir uma lei de drogas ineficiente e ultrapassada.

Ilona afirma ainda que os números do instituto são a prova de que a política de combate aos entorpecentes no estado falhou:

 — As operações que causam resultados significativos são aquelas com o serviço de inteligência, para o desmantelamento de redes de crime organizado, um problema que assola todo nosso estado, e não na apreensão de droga, que é uma consequência. Nada poderia ser mais didático: o retorno em relação ao investimento de tempo, equipamento e pessoal nas operações que envolvem coleta de informação e inteligência, como a realizada na retomada do Complexo Alemão, é muito maior do que a repressão generalizada, sem foco ou orientação.

A pesquisadora também defende a retomada do processo no STF, interrompido com a morte do ministro Teori Zavascki, morto em janeiro:

— Para mudar a atual situação, é fundamental que o assunto seja retomado no STF com urgência. A partir daí, a lei terá que ser adequada, e a atuação policial poderá ser redirecionada para o combate ao crime organizado e violento. A votação no Supremo é o início desse processo.

Para o delegado titular da 7ª DP (Santa Teresa), Orlando Zaccone, que também é secretário da Associação dos Agentes da Lei contra a Proibição (Leap Brasil), o país está atrasado até mesmo sobre o tema do debate:

— A maioria dos países da América Latina não criminaliza a posse de droga. A Argentina, por meio da Suprema Corte, descriminalizou a posse e o uso nos anos de 1990. No Brasil, deveríamos estar discutindo a regulamentação do mercado. A Leap Brasil acredita que a legalização da produção, do comercio e do consumo de todas as drogas será o único caminho para enfrentarmos a questão da violência, que não é produto do consumo, mas da proibição. Um mercado regulamentado, a gente controla. É na proibição que existe o descontrole.

REGISTRO DEMORA TRÊS HORAS

Orlando Zaccone diz que são muitos os casos de detenção de usuários de drogas em sua delegacia:
— Fazer uma ocorrência dessa demora, em média, três horas. Segura policiais que poderiam estar reforçando o patrulhamento nas ruas. Eles ainda têm que levar a substância para comprovação e, depois, o caso será encaminhado ao Juizado Especial Criminal, para uma audiência que deverá estabelecer uma cesta básica. Nada disso contribui para a redução do consumo.

Os dados do relatório foram coletados nos registros de apreensões de drogas da Polícia Civil e de laudos de perícias do Instituto de Criminalística Carlos Éboli (ICCE), que atestam a presença de substâncias ilícitas e sua quantidade. Também foram examinados casos de cocaína e crack. O levantamento demonstrou ainda que, entre 2008 e 2015, as apreensões de drogas no estado triplicaram, chegando a mais de 28 mil casos.

o globo 16 de fevereiro de 2017

February 17, 2017

Movimento negro corre risco de virar caricatura



mariliz pereira jorge

Faz mais ou menos um ano, estava na feirinha do Lavradio, no centro do Rio, e uma designer negra vendia brincos de sua fabricação com o desenho de rostos femininos com black power. Eram lindos e eu fiquei encantada por mais de um modelo. Quando já escolhia um para levar, veio o diabinho na orelha e falou que possivelmente eu queimaria no inferno da opinião alheia. Onde já se viu uma branca, usando a imagem de uma negra pendurada na orelha para dar uma de fashion?

Fui embora, deixando a artista sem entender a minha desistência diante do entusiasmo com que eu havia acabado de demonstrar pelas peças. Abri mão da compra por medo, por cagaço de ser perseguida pela patrulha, e achando que estava fazendo algo muito importante para contribuir para a valorização dos negros, seus movimentos e suas lutas. Sério? Por que deixei de usar um brinco com a imagem de uma negra?

Essa lembrança me ocorreu nos últimos dias quando o assunto apropriação cultural veio à tona porque uma jovem branca, que usava um turbante por causa de um câncer, foi abordada por uma negra que disse que ela não deveria usar a tal indumentária. Pronto. Pense no bate-boca na internet.

Reprodução/Facebook
Thauane Cordeiro, em foto postada em rede social

Obviamente, de um ano para cá percebi a armadilha que caí ao dar ouvidos e importância a uma ideia que não faz o menor sentido. Falar em apropriação cultural num mundo cada vez mais globalizado, em que as pessoas clamam por igualdade, não tem nada de ingênuo, é oportunista mesmo.
Fico com Oswald de Andrade: só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Patrulhar o que os brancos vestem, comem ou cantam não resolverá o problema crítico de desigualdade no Brasil, a quantidade de negros mortos pela polícia, o desequilíbrio da presença nas universidades, em cargos de chefia, a representatividade política. O Brasil é um país racista. Mas não deixaremos de ser apenas porque de agora em diante um grupo pequeno de pessoas decidiu que branco não pode usar turbante, dreadlocks, ser sambista.

Vocês acharam exagero a treta por causa do turbante? Tem ativista negro que acha absurdo que brancos ganhem dinheiro com o samba "enquanto negros talentosos morrem de fome". Tem disso. Negros, segundo o que li em alguns blogs, não podem se relacionar com brancas. São chamados de "palmiteiros". Há páginas na internet que só existem para fazer chacota de negros famosos e suas mulheres "branquelas". Tem disso também. Se isso não é preconceito e intolerância, não sei o que é. Imagine se fosse o contrário.

Mas o problema é branco usando turbante.

A própria discussão sobre apropriação cultural é uma apropriação de debates em universidade americanas, que acabaram se espalhando pelo mundo. Sério que os negros daqui precisam se apropriar da problematização dos negros de lá?

Uma das coisas que chamou atenção foram as acusações de que a história da branca com turbante tenha sido inventada. Exatamente o que fazem quando uma mulher conta que foi estuprada. "Nossa, essa história está muito estranha." A vítima transformada em culpada na mesma hora. Ora essa.

É claro que o relato pode ser apenas uma fanfic dessa geração tombamento-lacração, mas a repercussão dela apenas mostra a fragilidade de algumas causas que os movimentos tomam para si.

 Este episódio, por exemplo, só serviu para virar piada entre pessoas que concordam com tudo que os movimentos negros denunciam e reivindicam, mas jamais levarão a sério a ideia de que um grupo pode decidir quem está credenciado a usar uma peça de roupa ou um penteado no cabelo. Só deu munição a gente de fato racista, que acha que programas sociais são privilégio e não necessidade.

Movimentos sociais só têm efeito se criam empatia e se conscientizam. O que temos visto são grupos ou indivíduos que sequestraram a fala de milhões para dizer o que é certo ou errado, e nem sempre representam a maioria. Vemos isso no feminismo também. O resultado é gente pregando para doutrinado, lacrando em páginas do Facebook (devidamente fechadas para comentários contrários, claro), afastando das questões que realmente importam uma massa descomunal de gente, erguendo muros instransponíveis entre pessoas e ideias, transformando o ideal da igualdade numa caricatura.

Enquanto isso, negros continuam sem acesso ao ensino superior, lotando 

presídios ou covas no cemitério. Enquanto isso, discutimos se branco pode usar turbante, se pode ser sambista, se negro pode casar com branca.

FOLHA, 16 DE FEVEREIRO DE 2017


 

Marcha para Brasilia



Nelson Paes Leme, O Globo

Parlamento brasileiro já não representa a sociedade civil há muito tempo, mas ainda insiste em sórdidas manobras e conchavos nada republicanos



Praça dos Três Poderes, Brasília; A esquerda o STF, ao centro o Congresso Nacional, a direita o Palácio do Planalto (Foto: Arquivo Google)

Parece que os Três Poderes dessa República em avançado estado de putrefação não compreenderam bem o recado e o significado dos grandes movimentos populares contra a corrupção e a impunidade dos políticos que vêm ocorrendo no Brasil desde o mensalão.

O povo brasileiro simplesmente não aceita mais ser conduzido por essa classe política nauseabunda que agoniza sem qualquer senso autocrítico.

O Parlamento brasileiro já não representa a sociedade civil há muito tempo, mas ainda insiste em sórdidas manobras e conchavos nada republicanos, visando a usufruir do simulacro de representação que ainda lhe resta.

Os recentes movimentos no Executivo e no Legislativo, literalmente conluiados, a essa altura, para tentar melar e desarticular a Operação Lava-Jato — no momento da verdadeira devassa que as colaborações premiadas das empreiteiras lançam ambos os poderes no epicentro da mais escancarada corrupção passiva — são agressivos. Isso dá bem a medida da ousadia e do claro enfrentamento a que se dispõem os políticos delatados, como arma de defesa
.
O PMDB, nitidamente desfigurado de seu papel histórico, uma vez que da cúpula partidária há egressos de legendas espúrias de todos os matizes, menos do velho partido de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, debate-se em fétidos estertores.

Qual a única saída para essa súcia? Apostar no quanto pior, melhor.

Uma Comissão de Constituição e Justiça do Senado, prenhe de delatados e investigados, ainda por cima presidida pelo notório Edison Lobão, é uma verdadeira cusparada no rosto de uma sociedade cada vez mais distante e horrorizada com a representação política em nosso país, em meio à maior crise econômica, federativa e social, cujo emblema de frontispício é o maior desemprego de que se tem notícia na História do Brasil.

A desarticulação e a desorganização das forças que, bravamente, tentam resistir e que têm conseguido colocar, via internet, essas multidões em pacíficas passeatas nas ruas só atendem aos interesses dos maus políticos.

De nada adianta ficarem essas massas inorgânicas desfilando aos domingos pelas avenidas das cidades quando tudo o que de menos republicano ocorre fica a centenas, às vezes milhares de quilômetros dos grandes centros urbanos, no Planalto Central do Brasil, em meio a uma arquitetura de ficção científica. E ocorre nos dias úteis (ou seriam inúteis?).

Os prédios tombados de Oscar Niemeyer são hoje o abrigo dessa conspiração espúria: melar a Lava-Jato, transformando juízes como Sérgio Moro e Marcelo Bretas em pérfidos, cruéis e desumanos algozes; os jovens procuradores da República em precipitados e levianos advogados públicos e os policiais federais em atores de algum filmezinho qualquer de seriado de TV. Não é bem assim.

Há uma nova geração de homens e mulheres públicos e públicas concursados e concursadas, idealistas, estudiosos e estudiosas da História, que não aceita mais o cinismo dessas raposas de cabelos pintados e implantados e desses bigodes tingidos, traçando os destinos da Nação em seus ternos de grife e colarinhos brancos enxovalhados com a imundície dos desvios de dinheiro público.


Dinheiro que poderia estar minorando a precariedade dos serviços essenciais a uma população majoritariamente desatendida e depauperada, a morrer desumanamente nos corredores dos hospitais sucateados ou pelas balas perdidas, na verdadeira guerra urbana potencializada pelas rebeliões nos fétidos e superpopulados presídios.

Todos vítimas de uma educação falida e mal paga, com as principais universidades brasileiras fechando as portas por falta até de papel higiênico.

Essa é a realidade do Brasil de hoje que essas hienas nos entregam sem qualquer arrependimento ou escrúpulo.

Em qualquer outro país do mundo, uma tal ordem (ou desordem) dessa natureza já teria sido rompida, pelo menos para tentar-se uma nova ordem.

Imaginar que esses marginais da política, ainda investidos em seus mandatos, irão entregar o poder que têm, por bem, é acreditar em Papai Noel.

Sem que o povo brasileiro abdique de suas comodidades urbanas e promova uma gigantesca marcha sobre a Capital Federal, distante e alienada desse país continental, nada ocorrerá. A Marcha sobre Brasília é uma imposição da História.

Milhões de brasileiros e brasileiras criando um grande congestionamento nas largas avenidas de Lucio Costa e cercando os prédios de Niemeyer, em apoio a esses jovens juízes, promotores e policiais federais, certamente irá promover um grande debate interno dentro dos palácios, onde uma tímida oposição a esse descalabro mal consegue alguma voz na mídia. Esta prefere dar voz à ignomínia dessas aves de rapina que infestam e infectam a vida pública.

Vorazes predadores inconsequentes de uma república agônica e desgovernada em direção a algum fatal iceberg.

February 16, 2017

A importância da Lava-Jato

Vinte e sete enunciados sobre a oportunidade de desmontar o mecanismo de exploração da sociedade brasileira

 Operação Lava Jato (Foto: Montagem blog do Noblat)

José Padilha, O Globo

1)Na base do sistema político brasileiro opera um mecanismo de exploração da sociedade por quadrilhas formadas por fornecedores do estado e grandes partidos políticos. (Em meu ultimo artigo, intitulado Desobediência Civil, descrevi como este mecanismo exploratório opera. A diante me refiro a ele apenas como “o mecanismo”.)

2) O mecanismo opera em todas as esferas do setor público: no legislativo, no executivo, no governo federal, nos estados e nos municípios.

3) No executivo ele opera via o superfaturamento de obras e de serviços prestados ao estado e as empresas estatais.

4) No legislativo ele opera via a formulação de legislações que dão vantagens indevidas a grupos empresariais dispostos a pagar por elas.

5) O mecanismo existe a revelia da ideologia.

6) O mecanismo viabilizou a eleição de todos os governos brasileiros desde a retomada das eleições diretas, sejam eles de esquerda ou de direita.

7) Foi o mecanismo quem elegeu o PMDB, o DEM, o PSDB e o PT. Foi o mecanismo quem elegeu José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer.

8) No sistema político brasileiro a ideologia está limitada pelo mecanismo: ela pode balizar politicas públicas, mas somente quando estas políticas não interferem com o funcionamento do mecanismo.
9) O mecanismo opera uma seleção: políticos que não aderem a ele tem poucos recursos para fazer campanhas eleitorais e raramente são eleitos.

10) A seleção operada pelo mecanismo é ética e moral: políticos que tem valores incompatíveis com a corrupção tendem a serem eliminados do sistema politico brasileiro pelo mecanismo.

11) O mecanismo impõe uma barreira para a entrada de pessoas inteligentes e honestas na política nacional, posto que as pessoas inteligentes entendem como ele funciona e as pessoas honestas não o aceitam.

12) A maioria dos políticos brasileiros tem baixos padrões morais e éticos. (Não se sabe se isto decorre do mecanismo, ou se o mecanismo decorre disto. Sabe-se, todavia, que na vigência do mecanismo este sempre será o caso.)

13) A administração pública brasileira se constitui a partir de acordos relativos a repartição dos recursos desviados pelo mecanismo.

14) Um político que chega ao poder pode fazer mudanças administrativas no país, mas somente quando estas mudanças não colocam em cheque o funcionamento do mecanismo.

15) Um político honesto que porventura chegue ao poder e tente fazer mudanças administrativas e legais que vão contra o mecanismo terá contra ele a maioria dos membros da sua classe.

16) A eficiência e a transparência estão em contradição com o mecanismo.

17) Resulta daí que na vigência do mecanismo o estado brasileiro jamais poderá ser eficiente no controle dos gastos públicos.

18) As políticas econômicas e as práticas administrativas que levam ao crescimento econômico sustentável são, portanto, incompatíveis com o mecanismo, que tende a gerar um estado cronicamente deficitário.

19) Embora o mecanismo não possa conviver com um estado eficiente, ele também não pode deixar o estado falir. Se o estado falir o mecanismo morre.

20) A combinação destes dois fatores faz com que a economia brasileira tenha períodos de crescimento baixos, seguidos de crise fiscal, seguidos ajustes que visam conter os gastos públicos, seguidos de novos períodos de crescimento baixo, seguidos de nova crise fiscal...

21) Como as leis são feitas por congressistas corruptos, e os magistrados das cortes superiores são indicados por políticos eleitos pelo mecanismo, é natural que tanto a lei quanto os magistrados das instâncias superiores tendam a ser lenientes com a corrupção. (Pense no foro privilegiado. Pense no fato de que apesar de mais de 500 parlamentares terem sido investigados pelo STF desde 1998, a primeira condenação só tenha ocorrido em 2010.)

22) A operação Lava-Jato só foi possível por causa de uma conjunção improvável de fatores: um governo extremamente incompetente e fragilizado diante da derrocada econômica que causou, uma bobeada do parlamento que não percebeu que a legislação que operacionalizou a delação premiada era incompatível com o mecanismo, e o fato de que uma investigação potencialmente explosiva caiu nas mãos de uma equipe de investigadores, procuradores e de juízes rígida, competente e com bastante sorte.

23) Não é certo que a Lava-Jato vai promover o desmonte do mecanismo. As forças politicas e jurídicas contrárias são significativas.

24) O Brasil atual esta sendo administrado por um grupo de políticos especializados em operar o mecanismo, e que quer mantêlo funcionando.

25) O desmonte definitivo do mecanismo é mais importante para o Brasil do que a estabilidade econômica de curto prazo.

26) Sem forte mobilização popular é improvável que a Lava-Jato promova o desmonte do mecanismo.

27) Se o desmonte do mecanismo não decorrer da Lava-Jato, os políticos vão alterar a lei, e o Brasil terá que conviver com o mecanismo por um longo tempo.

 

February 14, 2017

Talvez até desse um romance


Marcelo Cipis de 10. FEV DE 2017
Talvez isto até desse um enredo razoável de romance histórico-político do tipo Gore Vidal.

Em uma república em algum lugar na América Latina, o vice-presidente mobiliza toda a casta política para derrubar a presidente que o elegeu e "estancar a sangria" produzida por denúncias de corrupção a envolver toda a classe, além do próprio personagem em questão.

Depois do golpe, a sangria no entanto não para totalmente. A máquina colocada em funcionamento no Poder Judiciário continua, mesmo que aos trancos e barrancos.

Mas eis que um "terrível acidente" culmina na morte do juiz do Supremo Tribunal Federal responsável pelas homologações das delações contra a casta política, exatamente no momento em que elas pareciam envolver de vez os nomes-chave do governo do vice-presidente golpista e do partido fundamental de sustentação do seu governo, partido que poderíamos chamar em nosso romance de, digamos, PSDB.

No lugar do juiz acidentado, o vice-presidente nomeia em seu lugar seu próprio ministro da Justiça: homem organicamente vinculado a todos os esquemas do dito, digamos, PSDB. Alguém cuja meteórica passagem pelo referido ministério foi marcada por uma crise no sistema penitenciário que resultou no assassinato de centenas de presos, levando a república em questão a figurar no noticiário internacional devido ao seu sistema carcerário medieval.

No meio da crise, o ministro entrou para a história não por ter feito ações sensatas e precisas para conter o problema, mas por simplesmente ter mentido despudoradamente quando evidenciados sua inação e descaso à ocasião de um pedido de auxílio de uma governadora de Estado. Algo tão absurdo que até mesmo a imprensa, normalmente complacente com o vice-presidente golpista, foi obrigada a reconhecer que o ministro era o homem errado no lugar errado.

Como se não fosse suficiente, o personagem já tinha provocado polêmicas ao defender a tortura "em alguns casos", isto em um país no qual a polícia tortura mais hoje do que na época de seu antigo regime militar, e por usar a força militar e brutalidade de sua polícia para conter todo o tipo de manifestação e mobilização social.

Quando estava a sair do ministério, eis que um dos Estados da federação passa por uma greve da polícia e se transforma em pura e simples zona de anomia, com direito a saques em plena luz do dia, assaltos e afins. O que demonstra a incrível competência do nosso personagem, suas qualificações indiscutíveis para tão alto cargo.

Não, pensando bem, esse enredo não daria um bom romance. Muito óbvio, muito primário. Ninguém iria acreditar ser possível algo assim nos dias de hoje. Certamente, se isto ocorresse atualmente, haveria grandes manifestações nas ruas contra a natureza despudorada de tal esquema. Haveria uma mobilização da opinião pública contra a desagregação das instituições da República. Não, como romance o enredo definitivamente não funcionaria. Bem, talvez como comédia ele desse certo.

É, como comédia isso aí poderia funcionar. Nós poderíamos começar com a descrição de grandes manifestações populares a varrer as cidades da dita república exigindo combate feroz contra a corrupção e mostrando indignação cidadã.

Depois de a presidenta deposta, poderíamos mostrar essas mesmas pessoas tentando defender o vice-presidente envolvido em escândalos, indo para as ruas contra a corrupção, mas indignados não com o chefe do esquema, mas com um tal "presidente do Senado", isto em uma semana na qual o próprio vice-presidente fora pego em um escândalo primário de tráfico de influência envolvendo dois de seus ministros.

Poderíamos mostrar ainda essas mesmas pessoas caladas quando da nomeação do ministro "aos amigos tudo, aos inimigos a lei" convocado para empacotar os processos contra seu partido do coração.

Sim, seria hilário, o mundo todo morreria de rir.

É verdade que seria um pouco difícil acreditar na possibilidade de tudo isso, mas, em comédia, há sempre algo da ordem do vale-tudo, algo da ordem da ampliação caricatural até o absurdo, o que libera a imaginação para ganhar asas e pensar até mesmo o impensável. Ou seja, pensar o Brasil atual.

Vladimir Safatle

FOLHA DE SÃO PAULO, 10 DE FEVEREIRO DE 2017

Acordão avança, povo bestificado


Rodrigo Maia (DEM-RJ) comemora a vitória com parlamentares após ser reeleito em 1º turno presidente da Câmara, em Brasília (DF)



A CÂMARA começou o ano legislativo com o pé direito enfiado bem fundo na lama. Parece que nem saiu de férias da mutreta do fim de 2016. O Senado não quer ficar atrás. Lava Jato e alguns juízes resistem.

No final de 2016, também sob comando de Rodrigo Maia (DEM), deputados procuravam meio de fugir da polícia, como naquelas votações pelas madrugadas. Neste início de ano, tentaram evitar com urgência que o Tribunal Superior Eleitoral pudesse punir partidos.

Flagrados na mumunha, Maia e turma disfarçaram e recuaram. A reação pelas redes sociais por vezes ajuda a fechar os túneis pelos quais os parlamentares querem escapar da cadeia.

Até aqui, pouca novidade. Maia e turma são reincidentes e contumazes. Interessante é que, logo depois de desconversar da bicada no TSE, o presidente da Câmara levou um troco. Vazou outra notícia de envolvimento de Maia com rolos.

Dado o histórico do pessoal de Curitiba, o vazamento não parece coincidência. Dada a ofensiva de verão do governo Temer e aliados contra a Lava Jato, parece ainda menos casual.

O PMDB do Senado e agregados fazem coisas como colocar Edison Lobão na Comissão de Constituição e Justiça, sintoma de descaramento terminal.

A seguir, na noite desta quinta (9), Edson Fachin, ministro do Supremo ora no controle da Lava Jato, autorizou abertura de inquérito para investigar Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney por tentativa de obstruir a Justiça.

Faz uma semana, este jornalista escrevera nestas colunas que Temer fizera bom proveito do recesso. Reforçara seu poder, sua coalizão, suas alianças no Judiciário e na elite econômica, o que parece fato. Que Temer evitava avançar diretamente na Lava Jato -o que era bobagem, lamento.

Em menos de uma semana, governo e PMDB botaram as asinhas de rapina para fora. Bicaram uma cadeira no Supremo, agarram os postos-chave do Senado, talvez agarrem o Ministério da Justiça. Renan está tão desenvolto quanto nos tempos de Supremo Senador Federal, quando peitava decisão do STF.

Em suma, como bom estrategista ou manobrista da política politiqueira, Temer parecia recuar quando, na verdade, dava a volta para atacar pelos flancos.

Pode causar repulsa, mas as manobras talvez sejam bem-sucedidas, apesar dos trocos da Lava Jato. Temer e companhia estão decididos a se defender da frente fria que virá de Curitiba, entre outras frias, como se escrevia aqui na semana passada.

"Supremo, elite do Senado, PSDB e a coalizão informal de empresariado e elite 'reformista' parecem ter feito um acordo tácito de estabilidade, de conter a degradação séria que se via antes do recesso. Isto é, conflitos entre Judiciário e Congresso e repique agudo de crise de confiança na economia e no compromisso de Temer com a 'Ponte para o Futuro'."

Parte do Supremo é aliada ou conselheira de Temer, que conseguiu um armistício com outros ministros. A "oposição" no STF é minoritária.

A maioria do Supremo, em consultas com outras facções do bloco do poder, age de modo a limitar o tumulto no governo e no país. Enquanto houver "reformas", os donos do dinheiro grosso e seus porta-vozes aprovam tácita ou explicitamente o acordão.

FOLHA DE SÃO PAULO, 10 de fevereiro de 2017