January 30, 2017

PÓS-HERÓIS


De Arnaldo Bloch

Na era da pós-verdade, os heróis de hoje podem ser os vilões de amanhã e vice-versa

Estava no supermercado quinta-feira de manhã e uma moça baixinha, com um crachá, usando um walkie-talkie (ou um celular com antena fazendo esta função), comentava, quase aos gritos, enquanto fazia compras, os fatos do dia.

— Não, não! Hoje ele está em Brasília. Acho que está em Brasília. E você viu o Eike? Ah! Agora é que eles vão roubar mais ainda! — festejou a moça com rádio e crachá.

Não deu para saber quem era o sujeito em Brasília, mas a menção só dava sabor ao diálogo, 100% real, em meio aos morangos, às lichias e à goji berry na prateleira do supermercado. Pois, ao mencionar Eike, os olhos dela brilhavam, como se torcesse por Ronald Biggs em fuga para o Brasil após escapar da prisão pelo assalto ao trem pagador: um herói.

Não que Eike já não tivesse vivido esse papel. No caso, portanto, um novo herói, aos olhos de quem, como a mulher no supermercado, vê a suposta perpetuação do roubo como uma virtude glamourosa. Ou, num viés ideológico ultraliberal, uma vitória da rebeldia do indivíduo contra o estado.

O mesmo estado que, não faz muito tempo, alçou Eike Batista a grande herói nacional: tudo passava pelo Eike, espécie de superministro privado das viabilizações mágicas. Um herói por cujo caixa quase tudo transitava e era drenado para o limbo da catástrofe futura
.
No tempo em que era um herói, e que a admiração por ele transcendia as esferas oficiais e se espalhava pelo público, pelas redes, pelos sites de celebridades, era difícil dar-se ao trabalho de o questionar: Eike era uma verdade estabelecida. Eike resolvia. Era aquele fascínio pelo homem de iniciativa, pouco importando os meios, os fins ou as justificativas.

Parecido com a precoce heroicização de Donald Trump, que começa a transpor a barreira de seus partidários fanáticos e criar mosquitos de dúvida em mentes mais moderadas, inclusive de esquerda, com argumentos do tipo “Esse cara pelo menos faz o que promete, não é como o indeciso Obama, herói retórico de pouco pulso”. 

Ou não é que Dow Jones foi às alturas assim que Donald deu sinal verde para oleodutos e virtualizou e viralizou o muro mexicano? Paralelamente, anuncia-se o esquenta para tocar o horror em Guantánamo de novo, com a eventualidade de as técnicas de falso afogamento em interrogatórios voltarem a bombar.

Além de tudo, pelos primeiros movimentos no comércio internacional, a política de Trump vai ser boa para China e Mercosul. “De preferência sem cogumelos”, reflito, ao olhar as prateleiras do supermercado e encarar umas cepas gordas de shitake. 

Enquanto Eike, caçado, vilão para uns, herói para outros, já negocia sua volta (de acordo com as notícias de quinta-feira, quando fecho a crônica), e devidamente encanados Sérgio Cabral e Eduardo Cunha, procuram-se preservar, aqui, heróis que ainda têm maioria na percepção geral.

Rodrigo Janot, denominado xerife, tenta continuar no posto, ao passo que, tendo como pano de fundo o luto pela morte de Teori Zavascki, procura-se um herói que salve a Lava-Jato, e ergue-se o temor de que, a depender de seu substituto na condução da operação no STF, vá tudo por água abaixo.

O que traz uma sombra sobre a noção que temos, hoje, do mais alto tribunal da nação: uma espécie de esquadrão de guardiões das leis e da ética. Pois a sensação, agora, é de que a Lava-Jato depende do resultado de uma roleta-russa, dublê de sorteio. Se cair nas mãos de um herói em potencial, Gotham City está salva. Se cair nas mãos do vilão, instala-se uma distopia, e todas as quadrilhas de todos os partidos, investigadas ou sob suspeita, vão dominar o carnaval de 2017, com ou sem máscara do Moro.

Conclusão: na era da pós-verdade, do retorno aos nacionalismos, do nivelamento por baixo da média do pensamento, da impossibilidade de troca de ideias, da descontextualização, do indivíduo se confundindo com o coletivo, os heróis de hoje podem ser os vilões de amanhã e vice-versa, e mais: o herói pode ser herói e vilão ao mesmo tempo, dependendo de se ele é Fla ou Flu, coxinha ou petralha, delator ou túmulo.

Para ilustrar: outro dia, um amigo judeu veio me dizer que Marine Le Pen pode até ser uma boa opção para a França. “Mas não quero entrar em detalhes”, ele avisou, e eu aceitei prontamente, ou teríamos uma guerra fratricida.

É difícil, para o outro judeu aqui, embora sempre aberto à troca de ideias, ouvir de um patrício o argumento de que a comandante do neofascista Front National deu um tempo no antissemitismo e aposta todas as fichas no ódio ao Islã.

Preferi o silêncio de um Fla-Flu, daqueles modorrentos, que terminam em zero a zero, a encarar o pragmatismo cínico capaz de alçar a herói um negacionista pós-moderno. 

De resto, saudações alvinegras. Tóquio vem aí.

O GLOBO, 28 de janeiro de 2017 

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