November 4, 2016

No enem, desidratar a resistência pesou mais do que se abrir ao diálogo

Flávia Oliveira

 

É a política, não a matemática

Em vez de dialogar com os estudantes, o MEC preferiu adiar o Enem

Matematicamente, a conta é tão simples que está na grade curricular do ensino fundamental. É de 2,2% a proporção de estudantes que farão o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) um mês depois do previsto, em razão das ocupações nas escolas. São 191.494 num universo de 8,6 milhões de inscritos; dois em cada cem. Difícil crer que o aparelho burocrático do Ministério da Educação não teve tempo ou habilidade para remanejar os locais de prova de dois centésimos dos estudantes. Por trás do adiamento está a decisão política de retaliar a reação dos jovens à medida provisória da reforma do ensino médio e aos efeitos da PEC 241 (renumerada no Senado para PEC 55) no orçamento da educação.

Responsável pela aplicação do Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Texeira (Inep) anunciou na noite da última terça-feira o adiamento da prova para alunos lotados em 304 unidades ocupadas no Brasil até 31 de outubro. São três centenas de estabelecimentos tomados numa rede que soma 190 mil escolas públicas e privadas, segundo o Censo Escolar 2013 do próprio MEC. Paraná, com 74 colégios, e Minas Gerais, com 59, são os estados mais afetados; cerca de 84 mil farão a prova mês que vem. No Rio, pouco mais de sete mil alunos serão submetidos ao exame nos dias 3 e 4 de dezembro, em vez de no próximo fim de semana. 

O movimento de ocupação de escolas brasileiras germinou em São Paulo, um ano atrás, contra a reorganização dos ciclos de ensino pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A intenção era transferir 300 mil alunos, distribuindo-os em escolas dedicadas aos anos iniciais e finais do ensino fundamental e ao nível médio. Com isso, 92 unidades fechariam as portas. Os protestos começaram nas ruas e desaguaram nas ocupações. 

Uma cartilha elaborada por estudantes chilenos e argentinos inspirou os ativistas do Brasil. Em 2011, secundaristas ocuparam mais de 700 escolas no Chile para cobrar passe livre nos transportes públicos e melhorias na educação. Qualquer semelhança... O documento recomenda realização de assembleia para organizar a entrada na escola e divisão dos alunos em comissões com tarefas predeterminadas, como limpeza, alimentação, segurança, imprensa. Sugere ainda que faixas de protestos sejam postas na frente dos colégios para tornar públicas as razões do movimento. Salvo radicalizações isoladas, é essa a tônica das ocupações.

O movimento se espalhou por São Paulo, alcançou Goiás, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais. As reivindicações mesclam agendas locais e questões nacionais. No Rio, por exemplo, os protestos de alunos começaram no início do atual ano letivo, em razão da crise aguda nas finanças do governo fluminense. Professores, com décimo terceiro e salários parcelados, ficaram em greve por quase cinco meses. Estudantes tomaram escolas em apoio aos docentes, mas também por mudanças no currículo e na qualidade na educação. Hoje, o movimento está concentrado em unidades do tradicional Colégio Pedro II, da rede federal, contra medidas do governo de Michel Temer, caso da MP do ensino médio e da PEC do teto de gastos. A pauta nacionalizou-se.

As autoridades lidaram mal com as ocupações desde o primeiro momento. O governo de São Paulo, em vez de dialogar, preferiu usar a polícia contra os estudantes, criminalizando o movimento. Errou ao empurrar o debate sobre educação para delegacias. No Distrito Federal, uma decisão judicial determinou o corte de água, luz e gás e proibiu a entrada de alimentos numa escola de Taguatinga tomada por alunos em 27 de outubro. Reprime-se muito, dialoga-se pouco com a juventude que engatinha no ativismo político. 

Agora, diante do movimento robusto de oposição às medidas federais na educação, o MEC preferiu o adiamento do Enem para parte dos inscritos. Fração no conjunto de estudantes aptos à prova, os 191 mil prejudicados — ou beneficiados, sob o ponto de vista de quem enxerga um mês a mais de estudos em relação aos demais — estão em quantidade suficiente para lançar a opinião pública contra os manifestantes. Fora do Enem deste fim de semana estão brasileiros em número equivalente à população de cidades médias como Angra dos Reis ou Nova Friburgo (RJ), Araçatuba, Ferraz de Vasconcelos ou Santa Bárbara d’Oeste (SP), Guarapuava (PR), Lauro de Freitas (BA), Sobral (CE), Luziânia (GO), Parauapebas (PA). 

É pouca gente no conjunto da população, mas muita gente a ter a vida prejudicada pelos ativistas. Os estudantes com a prova adiada e suas famílias têm motivos de sobra para se indignar. O que está mal explicada é a ação tão drástica do governo. Uma semana atrás, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) mineiro, em acordo com ocupantes de sete escolas, demarcou o espaço de mobilização e garantiu a realização do segundo turno das eleições municipais, sem transtornos. No Enem, desidratar a resistência pesou mais do que se abrir ao diálogo.

O GLOBO, 4 DE NOVEMBRO DE 2016 

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