Flávia Oliveira
É a política, não a matemática
Em vez de dialogar com os estudantes, o MEC preferiu adiar o Enem
Matematicamente,
 a conta é tão simples que está na grade curricular do ensino 
fundamental. É de 2,2% a proporção de estudantes que farão o Exame 
Nacional do Ensino Médio (Enem) um mês depois do previsto, em razão das 
ocupações nas escolas. São 191.494 num universo de 8,6 milhões de 
inscritos; dois em cada cem. Difícil crer que o aparelho burocrático do 
Ministério da Educação não teve tempo ou habilidade para remanejar os 
locais de prova de dois centésimos dos estudantes. Por trás do adiamento
 está a decisão política de retaliar a reação dos jovens à medida 
provisória da reforma do ensino médio e aos efeitos da PEC 241 
(renumerada no Senado para PEC 55) no orçamento da educação.
Responsável
 pela aplicação do Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas 
Educacionais Anísio Texeira (Inep) anunciou na noite da última 
terça-feira o adiamento da prova para alunos lotados em 304 unidades 
ocupadas no Brasil até 31 de outubro. São três centenas de 
estabelecimentos tomados numa rede que soma 190 mil escolas públicas e 
privadas, segundo o Censo Escolar 2013 do próprio MEC. Paraná, com 74 
colégios, e Minas Gerais, com 59, são os estados mais afetados; cerca de
 84 mil farão a prova mês que vem. No Rio, pouco mais de sete mil alunos
 serão submetidos ao exame nos dias 3 e 4 de dezembro, em vez de no 
próximo fim de semana. 
O movimento de ocupação de
 escolas brasileiras germinou em São Paulo, um ano atrás, contra a 
reorganização dos ciclos de ensino pelo governo de Geraldo Alckmin 
(PSDB). A intenção era transferir 300 mil alunos, distribuindo-os em 
escolas dedicadas aos anos iniciais e finais do ensino fundamental e ao 
nível médio. Com isso, 92 unidades fechariam as portas. Os protestos 
começaram nas ruas e desaguaram nas ocupações. 
Uma
 cartilha elaborada por estudantes chilenos e argentinos inspirou os 
ativistas do Brasil. Em 2011, secundaristas ocuparam mais de 700 escolas
 no Chile para cobrar passe livre nos transportes públicos e melhorias 
na educação. Qualquer semelhança... O documento recomenda realização de 
assembleia para organizar a entrada na escola e divisão dos alunos em 
comissões com tarefas predeterminadas, como limpeza, alimentação, 
segurança, imprensa. Sugere ainda que faixas de protestos sejam postas 
na frente dos colégios para tornar públicas as razões do movimento. 
Salvo radicalizações isoladas, é essa a tônica das ocupações.
O
 movimento se espalhou por São Paulo, alcançou Goiás, Rio de Janeiro, 
Paraná, Minas Gerais. As reivindicações mesclam agendas locais e 
questões nacionais. No Rio, por exemplo, os protestos de alunos 
começaram no início do atual ano letivo, em razão da crise aguda nas 
finanças do governo fluminense. Professores, com décimo terceiro e 
salários parcelados, ficaram em greve por quase cinco meses. Estudantes 
tomaram escolas em apoio aos docentes, mas também por mudanças no 
currículo e na qualidade na educação. Hoje, o movimento está concentrado
 em unidades do tradicional Colégio Pedro II, da rede federal, contra 
medidas do governo de Michel Temer, caso da MP do ensino médio e da PEC 
do teto de gastos. A pauta nacionalizou-se.
As 
autoridades lidaram mal com as ocupações desde o primeiro momento. O 
governo de São Paulo, em vez de dialogar, preferiu usar a polícia contra
 os estudantes, criminalizando o movimento. Errou ao empurrar o debate 
sobre educação para delegacias. No Distrito Federal, uma decisão 
judicial determinou o corte de água, luz e gás e proibiu a entrada de 
alimentos numa escola de Taguatinga tomada por alunos em 27 de outubro. 
Reprime-se muito, dialoga-se pouco com a juventude que engatinha no 
ativismo político. 
Agora, diante do movimento 
robusto de oposição às medidas federais na educação, o MEC preferiu o 
adiamento do Enem para parte dos inscritos. Fração no conjunto de 
estudantes aptos à prova, os 191 mil prejudicados — ou beneficiados, sob
 o ponto de vista de quem enxerga um mês a mais de estudos em relação 
aos demais — estão em quantidade suficiente para lançar a opinião 
pública contra os manifestantes. Fora do Enem deste fim de semana estão 
brasileiros em número equivalente à população de cidades médias como 
Angra dos Reis ou Nova Friburgo (RJ), Araçatuba, Ferraz de Vasconcelos 
ou Santa Bárbara d’Oeste (SP), Guarapuava (PR), Lauro de Freitas (BA), 
Sobral (CE), Luziânia (GO), Parauapebas (PA). 
É 
pouca gente no conjunto da população, mas muita gente a ter a vida 
prejudicada pelos ativistas. Os estudantes com a prova adiada e suas 
famílias têm motivos de sobra para se indignar. O que está mal explicada
 é a ação tão drástica do governo. Uma semana atrás, o Tribunal Regional
 Eleitoral (TRE) mineiro, em acordo com ocupantes de sete escolas, 
demarcou o espaço de mobilização e garantiu a realização do segundo 
turno das eleições municipais, sem transtornos. No Enem, desidratar a 
resistência pesou mais do que se abrir ao diálogo.
O GLOBO, 4 DE NOVEMBRO DE 2016