March 22, 2016

Ainda desigual


Marcus Faustini

O discurso da moralidade — bem e mal, puros e impuros — não será suficiente para criar o pacto de que a sociedade brasileira precisa na superação da crise política. Mostrar claramente quais são as propostas de continuidade da diminuição das desigualdades é um pressuposto básico.

A crise política é também uma dimensão da cultura. Sempre é? Por definição é possível dizer que sim, pois a política expressa, além das dimensões de disputa de poder, modos culturais em encontros e desencontros. O que queremos ressaltar aqui, entretanto, é que a atual crise política expõe a fragilidade de um modelo de representação que não dá mais conta dos sujeitos do novo tecido social brasileiro. Eles trazem uma demanda por uma nova forma de se fazer política? Sim! Mas, sobretudo, exigem um lugar claro para a diminuição das desigualdades.

Muitas foram as reações à ida, pela condução coercitiva, do ex-presidente Lula para prestar depoimento nas investigações da Lava-Jato. Daquelas que apontavam nesse ato mais uma investida contra o estado democrático de direito até as que viam, nessa ação, a comprovação de culpa do líder popular. Entre as reações contrárias, uma delas não pode ser taxada de reação orquestrada de militantes “pagos”: a fala de diversos jovens que não são petistas, bastante críticos cotidianamente ao partido, defendendo as conquistas sociais e vendo Lula como um espelho desses avanços. O ato de conduzi-lo dessa forma soou como um espetáculo para atingir o imaginário dessas conquistas.

Esses jovens são formadores de opinião dessa geração de origem popular que, mesmo com a diminuição de seu poder econômico com a crise, mantém códigos médios urbanos alcançados pelas políticas de mobilidade social acentuadas no governo de Lula. Não à toa, os engajamentos dessa juventude estão focados nas questões do direito à cidade e respeito às minorias. Precisam que a cidade seja barata e democrática por serem uma classe média emergente com desejo de experiências culturais e de protagonismo nas representações. Para aqueles que se colocam em oposição ao PT, o medo de assumir compromissos com projetos claros de melhoria de vida das pessoas revela uma tentativa de flerte com uma elite conservadora, que se sentiu ameaçada em dividir os espaços político e público e nas representações sociais do país com esses que ganharam força na última década. Enquanto a economia dava sinais positivos, isso era até tolerável, desde que existisse a manutenção da hierarquia em quem determinava o que poderia ser absorvido ou não.

Não estamos dizendo aqui que existiu ou não corrupção envolvendo Lula. Isso deve ser investigado com a sobriedade de que a Justiça precisa. Mas a espetacularização presente torna-se um instrumento para desgaste político daqueles que ocupam o governo central muito mais do que o combate aos processos de corrupção, gerando dúvidas de seus objetivos e reações desses que emergiram no novo tecido social proporcionado pelas mudanças no país.

O maior desafio do país é a desigualdade social, é preciso lembrar sempre! Políticas para sua superação não podem ser apenas um plus, uma benevolência, de quando estamos em momentos de “bonança” na economia. Suas causas são as já exaustivamente debatidas falta de acesso a oportunidades iguais para todos, mas, sobretudo, a concentração de renda. O racismo estruturado dentro do Estado e nas representações na vida pública é instrumento da manutenção dessas desigualdades. A corrupção é uma das práticas de relação com o Estado que também mantêm círculos de poder para poucos. É comum escutarmos que só o acesso à educação de qualidade pode diminuir a longo prazo essas desigualdades e suas formas de manutenção. Mas a diminuição da desigualdade não pode ser um projeto apenas de futuro. Ela é uma dimensão de nosso tempo presente. As políticas sociais, reparadoras e emancipatórias, comprovaram-se eficazes caminhos nos últimos anos. Formaram esse novo tecido social de indivíduos que possuem a clareza da necessidade dessas políticas. Fico me perguntando por que políticos de oposição não assumem com clareza a defesa das políticas sociais e se debruçam em propostas de seu desenvolvimento, corrigindo distorções e racionalizando o meio de campo para que essas consigam chegar a mais pessoas. Ao apenas dizer, laconicamente, que são a favor da continuidade sem que isso se traduza em gestos de compromisso fazem parecer que os discursos contra Lula e o PT estão ligados mais ao sucesso de suas políticas de ascensão dos mais pobres do que exatamente por possíveis envolvimentos em esquemas de corrupção.

As políticas sociais não podem ser apenas assistencialistas, para cuidar, mas manter uma determinada condição. Devem, sim, produzir mobilidade social, onde esses atendidos sejam protagonistas da vida social. Essa é a expectativa de grande parte dos cidadãos do Brasil do século XXI. Uma tarefa de qualquer partido que deseja fazer parte de nossas vidas.

O GLOBO, 8 DE MARÇO DE 2016


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