January 13, 2016

Para acalmar o mercado em Copacabana


Você vai ao réveillon de Copacabana, vê por lá milhares de turistas, se diverte e no dia seguinte lê no jornal que estamos numa recessão

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Os caras atacaram o jornal “Charlie Hebdo” um ano atrás. Os caras, o tipo de coletivo que não diz se estamos falando de bons ou maus. Posso dizer os caras para os que atacaram e para os que foram atacados. Enfim, Deus criou os caras. Ou, na onda do je suis Charlie, nós somos os caras.
Nesse ataque, que metralhou o ano de 2015 assim que ele começou, morreu um cara chamado Bernard Maris. Na coluna que assinava como Tio Bernard (Oncle Bernard) tratava como merecem ser tratadas as frescuras do mercado, o mercado está nervoso, é preciso acalmar o mercado, esse tipo de coisa. O cara era também professor de Economia na Universidade Paris VIII e, entre muitos livros, escreveu um que se chama “Carta aberta aos gurus da economia que nos tomam por imbecis”.

Uma boa leitura de começo de ano para quem ouve falar de economia a torto e a direito (muito mais a torto). Você vai ao réveillon de Copacabana, vê por lá milhares de turistas, se diverte e no dia seguinte lê no jornal que estamos numa recessão, a maior em não sei quantos anos. Ou seja, recessão é a festa fantástica de que você participou vista pelo olhar dos economistas.

Uns dias depois da festa convido Tio Bernard para um chope... em Copacabana. Nos sentamos em um bar e pergunto: o que é, afinal, a recessão?

Ele me diz: “números, estatísticas, manipulação de experts. Uns caras do mesmo tipo dos que, 15 dias antes da falência da Enron, a maior falência da história americana depois do World Com, encorajavam as pessoas a comprar papéis da Enron, isto é, tomavam por imbecis os pequenos acionários e titulares de planos de aposentadoria. No dia seguinte à falência, eles mudariam o discurso. Eles são assim, têm explicações para cada coisa e seu contrário.” Tio Bernard toma seu chope e se pergunta: “Por que a Ciência Econômica, que veio de tão alto, da Filosofia e da Lógica, de Ricardo, Marshall, Keynes, desceu ao nível do blá-blá-blá de falsos experts?”

Tomo também meu chope recessivo: então, não importa mais o fato, a festa?

E Tio Bernard: “Importa o que eles dizem, eles são os sacerdotes e as virgens da nova religião do Mercado. A eles está permitido errar, como não está aos médicos, engenheiros, maquinistas de trem, cujos erros podem levar à prisão. Os economistas podem sempre dizer uma coisa e seu contrário. São os ideólogos do liberalismo, mais aferrados ao liberalismo do que os mais ferrenhos defensores da ideologia marxista são aferrados ao marxismo, eles são os stalinistas do mercado. Os mesmos que odeiam o Estado, mas não vacilam em pedir a ajuda do Estado quando querem fechar suas contas.”

Digo a Tio Bernard: mas eu conheço pessoas que perderam o emprego, conheço gente que passa por dificuldades.

E Tio Bernard: “Eu também conheço, é a mesma coisa na França, em muitos países. E, aqui como lá, isso é um problema real. Mas os índices, as soluções receitadas pelo Banco Mundial, pelo FMI, pelo neoliberalismo são falsos. O ‘Manifesto dos economistas aterrorizados’, lido por cem mil pessoas, denuncia a manipulação de dados, que dificulta a solução real desses problemas.”


Outro chope. Pergunto: mas o antiliberalismo lá não é chamado populismo de esquerda como aqui? Ele ri. Nem precisa dizer que populismo, enganar o povo com promessas falsas que nunca se cumprem, é coisa da direita.

O mercado está nervoso? Melhor do que acalmar o mercado é você se acalmar. E Tio Bernard, pedindo outro chope: “e confiar em Keynes, esse sim, um gênio da economia, para quem o problema econômico deverá um dia voltar a seu lugar, isto é, a retaguarda.”

Aderbal Freire-Filho é autor e diretor de teatro

O GLOBO, 6 DE JANEIRO DE 2016


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