MARCOS NOBRE
"HARRY POTTER" é uma série que marcou a primeira geração para a qual celular, computador e mundo virtual são naturais. Naturais como Nutella. Ao tratar de magia, fala, no fundo, do admirável mundo novo virtual.
A série reserva o nome de "Muggles" para pessoas que não têm poderes mágicos. Traduzido em novos termos, são pessoas que não conseguem se orientar na magia do mundo digital.
Quem passou por experiências como as do mimeógrafo, da máquina de escrever, dos LPs e do fax é um sério candidato a Muggle. Mas, ao contrário do que apregoa a série, ser Muggle não é destino. É uma construção social.
A discussão sobre a chamada "pirataria" na internet, por exemplo, é assunto de Muggles. Parte da falsa premissa de que é possível estabelecer direitos de propriedade na rede como no mundo não virtual.
Na vida da rede, dinheiro e autoria têm novo significado. As práticas colaborativas não têm autor definido. Seus produtos são obras coletivas que se valem de ferramentas inovadoras como as de tipo "wiki" (cujo produto mais conhecido é a "Wikipédia"). Refletem a realidade como produto cotidiano coletivo e não segundo a imagem romântica de um mundo forjado por uns poucos gênios e líderes incomuns.
Não que o espaço para o desenvolvimento de individualidades e de grupos tenha desaparecido. Pelo contrário. Consumir cultura na rede transforma a relação de consumo clássica. Já não é absurdo que artistas e grupos possam pensar em viver de contribuições diretas, pulverizadas e praticamente anônimas. E que expressam algo como uma adesão voluntária a um projeto, a uma ideia, a uma forma de levar a vida. Uma maneira direta de financiar a produção cultural e artística que mina o oligopólio da indústria e dos mecenas, estatais ou privados.
A eficácia da repressão e das campanhas que estigmatizam o compartilhamento de arquivos como "pirataria" não tem que ver com punições, cada vez menos aplicáveis. Tem que ver com o cultivo e a sobrevida do espírito Muggle, com que os detentores de direitos autorais de expressão procuram adiar o inevitável. Aproveitam esse período de transição para explorar ao máximo o patrimônio de que ainda dispõem, até inventarem novas maneiras de ganhar dinheiro com arte e cultura.
Defender a propriedade no mundo virtual nos mesmos moldes do mundo não virtual só tem sentido enquanto ainda sobreviver o mugglismo. Coisa para uma ou duas décadas talvez. Ou para daqui a pouco, caso um súbito movimento organizado de terabytes resolva engoli-lo de uma hora para outra.
Folha, 26 de maio de 2009
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