Mostra na Caixa Cultural apresenta 167 xilogravuras e 13 matrizes criadas pelo artista nos últimos 25 anos
Suzana Velasco
O gravador Rubem Grilo levou um susto quando se deu conta de que havia talhado formas geométricas na madeira.
— Achei que estava entrando em choque com todo o meu trabalho anterior. Linha todo mundo faz, é muito simples. E, para mim, o fato motivador do trabalho é a expressão da particularidade — diz ele. — Foi muito difícil fazer uma linha que fosse minha. Entrei em desespero.
Desenhei umas 200 até que uma me tocou.
Eram meados dos anos 1980, e Grilo acabara de deixar o emprego de ilustrador na imprensa para se dedicar somente à xilogravura. Nesse período, paralelamente às formas geométricas, o artista manteve seu viés expressionista, aquele que temia trair. Essas duas facetas de sua obra poderão ser vistas pelo público a partir de terçafeira, na exposição “Rubem Grilo xilográfico (1985 a 2009)”, que reúne 167 gravuras em madeira, na Caixa Cultural.
— Na imprensa, sempre havia um tema proposto, um desafio que vinha de fora. Eu quis desenvolver um trabalho de dentro — afirma o artista.
— O jornal foi meu tempo de formação. Queria firmar uma certeza, ganhar convicção. O trabalho era raivoso, e eu era raivoso comigo também. O período posterior foi de transformação.
Saí das gravuras grandes, que tinham uma temática mais dramática, e caí em algo mais poético. É uma exposição de um ciclo de trabalho, de um processo mais autônomo de linguagem.
Fora do epicentro artístico da década de 1970 Grilo passou a criar xilogravuras em miniaturas, com referências à ironia e ao humor desenvolvidos na imprensa.
Em outras obras, também em pequeno formato, o artista desenvolveu uma linguagem que parece construtiva, mas que, segundo ele, carrega no fundo as questões existenciais do expressionismo, que o formou como gravador. Ele conta que a tal linha que o tocou foi uma linha incompleta, que lhe permitiu desenvolver um trabalho coerente com sua trajetória — ainda que visualmente contrastante com as figuras densas criadas em jornais como “Opinião” e “Movimento” — publicações independentes que combatiam o regime militar.
— Aceitar fazer figuras geométricas parece quase uma implosão de uma linha de trabalho.
Dentro de uma visão estratificada de arte, a impressão é de que houve uma ruptura do ponto de vista formal — afirma Grilo. — Quando alguém que vem de um berço expressionista entra numa área assim, só de linhas, parece que existe uma esperança, uma racionalidade.
Mas eu criei formas geométricas incompletas, insuficientes, num esforço de encontrar alguma irregularidade dentro da regularidade.
Ao se olhar de perto, as formas geométricas incompletas aparecem também em outras séries de xilogravuras, que mantêm algo da dramaticidade das ilustrações dos anos 1970 e 80, então propulsionada pela ditadura militar. Desde então, figuras com um tom misterioso dão o tom de obras com um cunho mais denso, barroco, segundo palavras do próprio Grilo.
Formado em agronomia, o artista começou na gravura justamente num momento em que os suportes tradicionais eram implodidos no meio artístico, que procurava outros caminhos, através da arte conceitual, em instalações, vídeos e objetos. Apesar de político nas ilustrações irônicas dos jornais, Grilo foi apolítico em relação às discussões sobre os rumos da arte na época.
— Cheguei à festa quando todos já estavam de ressaca — resume. — Estava entusiasmado, mas não queria resolver o problema da arte. Queria resolver o meu problema.
Por vias avessas, o artista acabou adotando uma postura política, pela resistência em trabalhar com a xilogravura, alheio às últimas novidades, trabalhando o dia todo em seu ateliê, nos fundos de casa, em Copacabana, e só parando à noite, para ver um filme.
— Estar aqui já é deixar o mundo lá para fora. Deixo a briga para quem tem musculatura — diz ele. — O sistema de arte hoje é um sistema de mercado, e o problema da gravura começa e termina aí. A utilidade da obra de arte atualmente é absorver valor financeiro, e a gravura não tem valor de mercado. Nessa incompatibilidade, ela fica meio à margem, e pode ser loucura eu dizer isto, mas eu gosto.
Grilo gosta do ofício de se concentrar na madeira e fazer entalhe por entalhe, linha por linha, sem que um produto externo faça o trabalho por ele — como o ácido que corrói o metal. Grilo gosta da precariedade do material, e do fato de que não há erro, cada traço é definitivo. Esse tempo de registro na madeira, apesar de ser o que mais exige do artista, não pode ser visto no resultado final, a própria gravura. E é por isso que, na exposição, Grilo vai mostrar 13 matrizes que ainda não receberam tinta, ou seja, que ainda não foram transferidas para o papel e transformadas em gravuras.
“O trabalho não é progressivo, ele é circular” O artista diz que não quer ser didático ao expor as matrizes, mas mostrar uma etapa do trabalho que se perde para o espectador, e que pode ser considerada uma obra em si.
Essas matrizes também são de diferentes épocas e, como as gravuras, expostas sem cronologia — já que sua produção não tem um desenvolvimento em fases. Nesses 25 anos, Grilo criou um universo recorrente, sem uma evolução com um sentido de progresso.
— Há reincidências, e ao mesmo tempo há transformações.
A obra aprende quando retrocede e quando recupera terreno, não só quando ganha terreno — sustenta. — O trabalho não é progressivo, no sentido linear, ele é circular. Ao refazer algo que fazia nos anos 1980, estou revisitando permanentemente minha experiência, aprofundando-a cada vez mais. Ruptura para mim é uma mudança de estado. Mas eu sou telúrico, e o que você pode fazer na terra é cavar.
O Globo, 28 de fevereiro de 2009
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