October 31, 2018

Parente é serpente: Disputa Bolsonaro x Haddad acirrou ânimos em grupos de família no WhatsApp

 


Eliane Trindade

Ambiente conflagrado é traduzido em mensagens também entre amigos e até em comunidades de ioga 

O produtor Ricardo Souza, 27, resiste bravamente no grupo de WhatsApp da família, enquanto o professor universitário Ademar Bueno, 48, já saiu das duas comunidades formadas por parentes via aplicativo de mensagens instantâneas no celular.

 

Reprodução
A razão do desconforto de ambos é a mesma: o mar de memes e de “fake news” disseminados pela internet e que dão combustível para tretas e mais tretas entre familiares próximos, parentes distantes e amigos em tempos de polarização política.
As eleições passaram a nortear todos os temas dos grupos no WhatsApp em intermináveis trocas de farpas entre “coxinhas e petralhas”, “bolsominions e esquerdopatas”, as turmas mais barulhentas das redes sociais.
O tom das conversas tende a ficar mais pesado diante do segundo turno entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT).

“A primeira vez que saí do grupo de WhatsApp da família foi por causa de memes sobre a morte da Marielle. Meu pai mandou várias mensagens falsas, montagem de fotos”, relata Bueno, que foi candidato a deputado estadual pela Rede em São Paulo, mas não se elegeu.
Militante de grupos que pregam a renovação na política, como o Agora, o professor ainda tentou convencer o pai de que era tudo mentira. “Mandava o contraponto, mas não adiantava. Era uma conversa unidirecional, não um diálogo.”
Ele saiu do grupo oficial, mas foi incluído em um novo há três semanas. O clima continuava tenso, agressivo. Não adiantou apelar para o bom senso, nem pedir para que os parentes lessem e refletissem antes de apertar o encaminhar. “A coisa só foi piorando.” O professor saiu de vez do grupo nesta segunda (8). “Cansei de ler coisas absurdas, que machucam.”


O jovem eleitor de Bolsonaro rebate um tom acima o tio petista: “Você vive em Brasília, a roubalheira está na sua frente e só você não enxerga. Não consigo acreditar que um cara tão inteligente acha que realmente o PT seja bom para nosso país.”
O papo áspero se prolonga sem consenso até o desfecho dado pelo tio em defesa da democracia. “Meu caro, só se é democrata até o limite da democracia. É este o paradoxo da democracia: jamais defender algo que a ponha em risco.”
O produtor audiovisual enfrenta o mesmo dilema diante da troca intensa de mensagens entre os 25 parentes do Amazonas. Após a definição do primeiro turno, Souza se vê o tempo todo trafegando em um campo minado ao alcance da mão.
“Dois primos já saíram do grupo. Ninguém confirma de onde vêm as informações. É muito meme com notícias falsas e preconceitos. Horrível. Dá um desespero, peço que pesquisem e façam o básico, consultar o Google antes de mandar.”
Politicamente de centro-esquerda e homossexual assumido, sente-se pessoalmente atingido pelas mensagens homofóbicas disseminados pelos parentes que votam em Bolsonaro.
Ele conta que um tio postou uma série de notícias sobre o “kit gay”, que levou Souza a ter uma discussão com o próprio pai. “Disse que era uma decepção justamente ele, que me ensinou a pesquisar, a ler, agora compartilhar memes preconceituosos e mentirosos.”
As respostas dos familiares a argumentos e dados deixam o produtor ainda mais desolado: “Eles negam qualquer informação que venha da mídia e criam a própria verdade. Vivem em um mundo paralelo”.
Mal-estar que se desdobra na vida real: o jornalista Maurício* desistiu de férias na praia com 20 familiares. Ele escreveu um longo texto para explicar que, como homossexual assumido, não se sentia confortável entre parentes eleitores de Bolsonaro.
“Saber que alguns de vocês contribuem para esta situação dobra o meu sofrimento e torna impossível que dividamos os próximos dias neste lugar paradisíaco de que tanto gosto”, escreveu. “Simplesmente não seria capaz de cumprimentá-los, abraçá-los ou sentar à mesa sem me lembrar que alguns de vocês tomaram uma decisão que me coloca em grave risco.”
A paisagista Helena*, que votou em Ciro Gomes (PDT) em busca de uma terceira via que não se concretizou, rompeu com a mãe, professora e eleitora de Haddad.
“Ela achou absurdo o meu voto e passou a agir de maneira hostil. Chegou a um ponto em que se recusa a ter um diálogo com quem pensa diferente. A extrema esquerda é também bem pouco democrática”, critica.
 
A tendência é piorar diante de um pleito entre dois extremos do espectro ideológico.
O único remanescente petista no grupo de médicos de São Paulo precisa conviver com uma enxurrada de memes pró-Bolsonaro. O ortopedista foi acordado nesta segunda (8) com um libelo contra o Nordeste, única região do país em que Haddad liderou o pleito.
“Fico triste de ver tantos colegas falando mal de nordestinos e médicos votando em um candidato que defende a tortura”, diz ele, que tem optado pelo silêncio para preservar amigos de longa data, tão solidários em momentos delicados de sua vida.
Causa estupor em um grupo de familiares baianos as mensagens iradas de um primo padre, uma das figuras mais carismáticas e queridas da numerosa família, com parentes espalhados pela Bahia, por Brasília e São Paulo.
Nem um grupo de WhatsApp formado por professoras de ioga de Goiás escapou da pregação de ódio.
Tudo começou quando uma professora resolveu perguntar em quem os colegas iriam votar. Foi o suficiente para o comportamento zen ficar em modo avião.
Um logo declarou voto em Bolsonaro. Imediatamente vieram as reações. “Sério mesmo? Você é a favor do estupro? Do machismo? Do racismo? Da homofobia? Porque é isso que representa o 17”, respondeu uma professora.
“Cantamos Shanti, Shanti, Shanti, no final das aulas, pedindo paz. O Bolsonaro significa violência. O contrário do ioga, que prega união e não violência”, acrescentou outro, sobre um dos princípios básicos da prática milenar.
“Sou capitalista. Quero ganhar muito dinheiro para ajudar as pessoas”, rebateu outro. “Quero um país honesto, com pessoas honestas. Quero alguém que defenda a preservação da moral da família. Quero ver o Brasil no auge.”
A discussão não cessava. “Deus nos salve do fascismo e também do comunismo.” A troca de mensagens continuou, de forma cada vez mais acirrada, até que a turma do “deixa disso” resolveu entrar em campo para apaziguar os ânimos.
“Esse grupo é de ioga, vamos honrar essa ciência sagrada, não vamos nos dividir, vamos respeitar uns aos outros. Queremos o melhor para o Brasil, mas cada um tem suas convicções. O momento pede paz e tranquilidade”, finalizou um professor, tentando reinstalar o comportamento zen no grupo.
Haja ioga e paciência. O jeito é buscar estratégias para sobreviver no WhatsApp, nos almoços de domingo. “Não uso mais o argumento LGBT, não tem empatia”, conforma-se Souza. Bueno também se deu conta de que não adianta gritar mais alto do que o pessoal que não quer consenso. “A gente busca o diálogo, o meio termo. Intolerância causa cegueira e surdez”, é o novo mantra do professor que ainda acredita na política, mas deu um tempo do WhatsApp.
E para aqueles que não enxergam reconciliação com a família no curto prazo, o grupo "Órfãos do WhatsApp" no Facebook oferece consolo e alternativas para a noite de Natal.
 
Eliane Trindade
Editora do prêmio Empreendedor Social, editou a Revista da Folha. É autora de “As Meninas da Esquina”.

 

Quem discorda da eleição de Bolsonaro deve escutar e resistir


Pablo Ortellado

 

O pior aconteceu. Um candidato com posições muito extremas, que fez seguidas declarações desprezando os direitos humanos, defendendo as execuções extrajudiciais, desprezando o Congresso, combatendo a independência dos poderes, atacando a liberdade de imprensa e que, além de tudo, ofendeu mulheres, negros e homossexuais —esse candidato, com a plataforma mais abominável, foi eleito presidente, pelo voto.
Há duas tarefas para aqueles que discordaram da eleição de Bolsonaro: escutar e resistir. Parece contraditório propor simultaneamente escutar e resistir, mas os objetos são diferentes —é preciso escutar os eleitores e é preciso fazer oposição ao governo.
Sem dúvida, a tarefa mais desafiadora é escutar. Aqueles que estão perplexos com essa eleição já se deram conta, a esta altura, de que perderam contato com a base da sociedade.
Muitas vezes, porém, queremos refazer esse vínculo, mas com o intuito exclusivo de que seja a sociedade a nos escutar. Queremos influenciar, mas não queremos ser influenciados de volta.
Para estabelecer esse contato, será preciso começar a falar para um público que não dá atenção aos professores, aos jornalistas, aos artistas e aos ativistas e que nos trata, com alguma razão, como uma elite progressista arrogante.

Se quisermos, com humildade, estabelecer essa interlocução, vai ser preciso, na mesma medida em que buscamos transformá-la, nos deixarmos transformar por ela.
Vamos ter que gastar menos energia nos tornando mais puros e, assim, cada vez mais diferentes e mais destacados da sociedade e atacar os problemas de desigualdade e opressão que nos afligem segundo os modos, as ênfases e as prioridades da maioria das pessoas que os vivem.
Simultaneamente a essa tarefa, é preciso fazer oposição democrática ao governo Bolsonaro a partir do primeiro dia.
Sem dúvida, as declarações de Bolsonaro e de seus colaboradores mais próximos puseram no horizonte que os limites constitucionais podem não ser respeitados. Mas entre colocar no horizonte e fazer há ainda certa distância. E é dever da oposição não colaborar para consolidar o imaginário autoritário.
Neste momento, é preciso como nunca fortalecer a imprensa, o Judiciário, o Ministério Público, as ONGs e a sociedade civil, garantindo sua independência e seu caráter permanentemente vigilante.
Apenas essa combinação de força das instituições e vigor da sociedade podem garantir que Bolsonaro não governe atropelando as regras, como fizeram Duterte, Maduro ou Erdogan, mas seja constrangido e limitado como, de alguma maneira, têm sido Trump e os populistas de direita na Europa.

October 28, 2018

Caetano Veloso: Dark Times Are Coming for My Country





“Brazil is not for beginners,” Antonio Carlos Jobim used to say. Mr. Jobim, who wrote “The Girl From Ipanema,” was one of Brazil’s most important musicians, one whom we can thank for the fact that music lovers everywhere have to think twice before pigeonholing Brazilian pop as “world music.”
When I told an American friend about the maestro’s line, he retorted, “No country is.” My American friend had a point. In some ways, perhaps Brazil isn’t so special.
Right now, my country is proving it’s a nation among others. Like other countries around the world, Brazil is facing a threat from the far right, a storm of populist conservatism. Our new political phenomenon, Jair Bolsonaro, who is expected to win the presidential election on Sunday, is a former army captain who admires Donald Trump but seems more like Rodrigo Duterte, the Philippines’ strongman. Mr. Bolsonaro champions the unrestricted sale of firearms, proposes a presumption of self-defense if a policeman kills a “suspect” and declares that a dead son is preferable to a gay one.
If Mr. Bolsonaro wins the election, Brazilians can expect a wave of fear and hatred. Indeed, we’ve already seen blood. On Oct. 7, a Bolsonaro supporter stabbed my friend Moa do Katendê, a musician and capoeira master, over a political disagreement in the state of Bahia. His death left the city of Salvador in mourning and indignation.


Recently, I’ve found myself thinking about the 1980s. I was making records and playing to sold-out crowds, but I knew what needed to change in my country. Back then, we Brazilians were fighting for free elections after some 20 years of military dictatorship. If someone had told me then that some day we would elect to the presidency people like Fernando Henrique Cardoso and then Luiz Inácio Lula da Silva, it would have sounded like wishful thinking. Then it happened. Mr. Cardoso’s election in 1994 and then Mr. da Silva’s in 2002 carried huge symbolic weight. They showed that we were a democracy, and they changed the shape of our society by helping millions escape poverty. Brazilian society gained more self-respect.
But despite all the progress and the country’s apparent maturity, Brazil, the fourth-largest democracy in the world, is far from solid. Dark forces, from within and from without, now seem to be forcing us backward and down.


Caetano Veloso in 1993.Foto de: Laif/Redux

Political life here has been in decline for a while — starting with an economic slump, then a series of protests in 2013, the impeachment of president Dilma Rousseff in 2016 and a huge corruption scandal that put many politicians, including Mr. da Silva, in jail. Mr. Cardoso’s and Mr. da Silva’s parties were seriously wounded, and the far right found an opportunity.
Many artists, musicians, filmmakers and thinkers saw themselves in an environment where reactionary ideologues, who — through books, websites and news articles — have been denigrating any attempt to overcome inequality by linking socially progressive policies to a Venezuelan-type of nightmare, generating fear that minorities’ rights will erode religious and moral principles, or simply by indoctrinating people in brutality through the systematic use of derogatory language. The rise of Mr. Bolsonaro as a mythical figure fulfills the expectations created by that kind of intellectual attack. It’s not an exchange of arguments: Those who don’t believe in democracy work in insidious ways.

The major news outlets have tended to minimize the dangers, working in fact for Mr. Bolsonaro by describing the situation as a confrontation between two extremes: the Workers’ Party potentially leading us to a Communist authoritarian regime, while Mr. Bolsonaro would fight corruption and make the economy market friendly. Many in the mainstream press willfully ignore the fact that Mr. da Silva respected the democratic rules and that Mr. Bolsonaro has repeatedly defended the military dictatorship of the 1960s and ’70s. In fact, in August 2016, while casting his vote to impeach Ms. Rousseff, Mr. Bolsonaro made a public show of dedicating his action to Carlos Alberto Brilhante Ustra, who ran a torture center in the 1970s.
As a public figure in Brazil, I have a duty to try to clarify these facts. I am an old man now, but I was young in the ’60s and ’70s, and I remember. So I have to speak out.
In the late ’60s, the military junta imprisoned and arrested many artists and intellectuals for their political beliefs. I was one of them, along with my friend and colleague Gilberto Gil.

 
Brazilian Army chiefs meeting in Rio de Janeiro in 1969.Foto de: Associated Press Photo
Gilberto and I spent a week each in a dirty cell. Then, with no explanation, we were transferred to another military prison for two months. After that, four months of house arrest until, finally, exile, where we stayed for two and a half years. Other students, writers and journalists were imprisoned in the cells where we were, but none was tortured. During the night, though, we could hear people’s screams. They were either political prisoners who the military thought were linked to armed resistance groups or poor youngsters who were caught in thefts or drug selling. Those sounds have never left my mind.
Some say that Mr. Bolsonaro’s most brutal statements are just posturing. Indeed, he sounds very much like many ordinary Brazilians; he is openly demonstrating the superficial brutality many men think they have to hide. The number of women who vote for him is, in every poll, far smaller than the number of men. To govern Brazil, he will have to face the Congress, the Supreme Court and the fact that polls show that a greater majority than ever of Brazilians say democracy is the best political system of all.
I quoted Mr. Jobim’s line — “Brazil is not for beginners” — to bring a touch of funny color to my view of our hard times. The great composer was being ironic, but he spoke to a truth and underlined the peculiarities of our country, a gigantic country in the Southern Hemisphere, racially mixed, the only country with Portuguese as its official language in the Americas. I love Brazil and believe it can bring new colors to civilization; I believe most Brazilians love it, too.
Many people here say they are planning to live abroad if the captain wins. I never wanted to live in any country other than Brazil. And I don’t want to now. I was forced into exile once. It won’t happen again. I want my music, my presence, to be a permanent resistance to whatever anti-democratic feature may come out of a probable Bolsonaro government.
Caetano Veloso is a Brazilian composer, singer, writer and political activist.

A Genuine Fascist Is on the Verge of Power in Brazil




  • By Andy Robinson, www.thenation.com
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  • These were true believers, camped outside Jair Bolsonaro’s plush beachside home in the nouveau riche resort of Barra da Tijuca, 25 miles from the center of Rio and a stone’s throw from the Olympic village and the Atlantic surf. “He is the messiah! He was knifed, but rather than stay at home or lie on the beach, he is staying on to fight for his country,” said a woman wearing the jersey of Brazil’s national soccer team with Bolsonaro’s name printed on the back where usually you might see that of Neymar or Marcelo. The far-right candidate, now the clear favorite in Sunday’s presidential runoff election, who was stabbed before the first round of voting, now runs his campaign from his Barra da Tijuca condominium with the help of his three sons, two of whom are members of Congress.
    The Bolsonaristas were ebullient as their hero’s lead over left-wing Workers’ Party (PT) candidate Fernando Haddad widened to 20 points. “I’m seeing the light at the end of the tunnel,” said José Ruiz Barcellos, who wore an Incredible Hulk T-shirt, his Armani shades reflecting the green and yellow Brazilian flags waved frantically by the assembled Bolsonaristas. The flag says “Ordem e Progresso,” but the Bolsonaristas put special emphasis on order.
    “He will fund the police—we can’t go out here for fear of being mugged,” said another woman, who dismissed claims that Bolsonaro is violently misogynistic as fake news, despite abundant evidence to the contrary. A jeep with a “genuinely militarized” sticker was loaded with inflatable dolls of longtime Workers’ Party leader and former Brazilian president Luiz Inácio Lula da Silva in a striped prison uniform.
    The usual rage was vented against the Workers’ Party and its nonexistent plan to turn Brazil into another Venezuela, though a new enemy had entered the rhetoric: The establishment daily Folha de S.Paulo has now been earmarked for attacks after it exposed an avalanche of disinformation by Bolsonaro supporters on Facebook and WhatsApp. “I know you’re from Folha de S.Paulo; you are powerful, but soon you will lose,” said another woman, bizarrely convinced, despite my faltering Portuguese, that I worked for the Brazilian paper. When Bolsonaro drove by in a black SUV with tinted windows, the crowd went wild and a cacophony of car horns filled the avenue. “Mito, Bolsonaro chegou!” they shouted (“The legend, Bolsonaro, has arrived!”)
    Once inside, the candidate made a video for transmission at the Bolsonarista rally that same day in São Paulo, in which he pledged that, once in power, he would “banish the marginal reds [delinquents of the left] from the fatherland; they will leave or be imprisoned,” he threatened, in a “cleansing never seen before in this country.” With a blank expression, his gaze barely connecting with the camera, he then added that former PT president Lula, controversially imprisoned for money laundering, “will rot in jail” and soon be accompanied by Haddad. This is the sort of talk that the Bolsonarista base loves to hear and that has already cost the life of Reginaldo Rosário da Costa, a 63-year-old black capoeira master in Salvador de Bahia, murdered by a Bolsonaro supporter on October 8. That was one of a series of attacks on Afro-Brazilians and members of the LGBT community in recent weeks.
    But the hard-core Bolsonaristas are just the beginning of Brazil’s dangerous flirtation with the ex-captain of the parachute regiment. After more than two decades of insignificance, spouting almost comical rhetoric from his solitary seat in a corrupt Congress, Bolsonaro has moved irresistibly, like Brecht’s Arturo Ui, into the hearts if not the minds of millions of disenchanted Brazilians. His supporters are everywhere in Rio, and not just among those well-paid white males enamored of guns or the evangelicals espousing “family vales,” the traditional base of Bolsonaro, himself a gun-loving Christian fundamentalist, baptized in Israel in 2016.
    In the past month, Bolsonaro has become mainstream. “I’m voting Bolsonaro,” said a young black woman who served pão de queijo in the bakery across the road from Rio’s breathtaking lagoon, though she could not explain why. “We need jobs and investment and the markets like Bolsonaro,” said a parking attendant in Copacabana who supported tough police action against drug traffickers in the favelas above (a gunfight between police and traffickers broke out nearby just hours afterward). There were even Bolsonaro voters in the Afro-Brazilian Umbanda spiritual center in the peripheral Rio district of Oswaldo Cruz, considered a school of Satanism by Bolsonaro evangelicals. “I’ll vote Bolsonaro; the system is corrupt and I want someone different,” said Rodrigo, one of the counselors who induce spiritual possession with the help of Afro-Brazilian Vodum techniques.
    These were not the fanatics of Barra da Tijuca, just ordinary cariocas who have come to believe that the candidate is the last chance to fight a dysfunctional political system and a crime-ridden society. Support for the far-right icon has snowballed in the past three weeks, with millions of Brazilians seduced by what they see as an anti-establishment maverick who offers fast solutions to violent crime, mass unemployment, and endemic political corruption. Most do not approve of Bolsonaro’s violent rhetoric, expressing prejudices so openly that even Donald Trump would blink. But such is the disenchantment with the status quo in Brazil that his outrageous statements appear to make him credible as a politician who will break the system.
    Given that Lula’s position in the polls was dominant until he was forced by the electoral authority to withdraw his candidacy in September, it is clear that a significant number of the ex-president’s supporters will now vote for Bolsonaro, an absurd feature of this election, in which confusion and disinformation have undermined logic. The pro-Bolsonaro wave is strongest in the south and center, which are whiter and wealthier, and in the megalopolis of São Paulo and Rio, while the PT hangs on in the northeast, Lula’s homeland, where Haddad is campaigning in an attempt to stem the Bolsonaro tide in the party’s traditional base.
    How did this happen so quickly? After all, only weeks before the first-round election on October 7, most analysts expected Bolsonaro to be rejected in a second round, with a pro-democratic vote choosing Haddad as the least of the evils. A powerful last-minute surge before the first round, though, which took Bolsonaro’s vote to 46 percent, changed perceptions in the last week of the campaign. The pro-Bolsonaro wave has only strengthened since then, cresting at around 57 percent of the electorate in the latest polling.
    Few expected this level of support for a candidate of such extreme right-wing views—as close to fascism as you will get in the world today, despite a growing number of contenders. To cite a few examples: Bolsonaro’s role model is the Brazilian general Brilhante Ustra, whose army unit tortured dissidents—former president Dilma Rousseff was one victim among hundreds—during the military dictatorship of 1964–85. Bolsonaro’s son Eduardo announced at a meeting in July that was filmed and circulated widely this week that “all you need is a soldier and a corporal to close the Supreme Court.” Bolsonaro’s candidate for vice president, retired general Hamilton Mourão, has also defended military intervention to end corruption in the judicial system. Bolsonaro has stated in the past that 30,000 people would need to be killed in a civil war against communists before democracy is possible in Brazil. His misogyny, homophobia, and racism are so openly expressed that even Marine Le Pen called his rhetoric unpleasant.
    Since 80 percent of the Brazilian public support democracy, according to a recent Folha poll, Haddad was hoping that a broad alliance of political, civic, and business leaders would help to educate a poorly informed electorate—many of them denied basic education by centuries of subjugation to a privileged elite—about Bolsonaro’s true colors. But as the October 28 election approaches, no such alliance has emerged.
    Rather than point out the dangers inherent in a Bolsonaro victory, investors in financial markets have euphorically celebrated Bolsonaro’s meteoric ascent, with bank analysts publicly cheering his commitment to radical privatization, pension “reform,” tax cuts, and the downsizing of the Brazilian state. Bolsonaro’s University of Chicago–trained economic adviser, Paulo Guedes, was eulogized by brokers on Avenida Paulista. The real has strengthened and the stock markets have posted double-digit increases. Instead of rejecting Bolsonaro’s tirades against diversity and freedom of expression, corporate chiefs such as the head of beer-maker Ambev have readily met with Bolsonaro and chosen to warn against the PT’s defense of state-owned companies and plans to rein in the power of private banks.
    According to Folha de S.Paulo, leading bank executives from Bank of America, Goldman Sachs, and Santander are being considered for posts in the Bolsonaro government. This has all helped to give him a more acceptable veneer, even to those who do not sympathize with his extreme views. Markets are watched closely here by an electorate that is punished by every inflationary depreciation of the real and every consequent hike in interest rates.
    The intrepid Harvard-trained attorneys of the Lava Jato (car wash) anti-corruption probe lent a hand to Bolsonaro by re-releasing—months after its initial publication, and just as Haddad was gaining momentum before the first round—old plea-bargain testimony from former Lula finance minister Antonio Palocci that was damaging to the PT. Even leading judges appear more concerned about the PT than about the Bolsonaro family, despite the extremist candidate’s scant respect for Brazil’s Supreme Court. Three examples: The electoral authority banned a PT election ad that showed images of victims of torture ordered by Bolsonaro’s hero, Brilhante Ustra (PT polling showed that this campaign had been effective in countering Bolsonaro’s image as the new messiah). Second, Bolsonaro’s fake-news campaign on WhatsApp has been only mildly criticized by judges. Third, the Supreme Court has turned down a request by Folha de S.Paulo to interview Lula da Silva about the questionable charges of corruption against him.
    Of the candidates defeated in the first round, only Marina Silva—the environmental champion who is understandably appalled by Bolsonaro’s plans to give carte blanche to Amazon deforestation and to withdraw from the Paris climate accord—has declared support for Haddad, although even that came late. Geraldo Alckmin, the establishment candidate for the center-right Brazilian Social Democracy Party (PSDB), who took only 5 percent of the vote in the first round, has refused to take sides. Fernando Henrique Cardoso, the former president and PSDB member who supported Alckmin, has criticized Bolsonaro but has not taken the crucial step of endorsing Haddad. Not even Ciro Gomes, former minister in the first PT government along with Haddad, has actively supported him. After taking 12 percent of the vote on a center-left platform in the first round, he went on vacation to Europe, calling Brazil “a sick country.”
    After Bolsonaro’s incendiary speeches from his Barra da Tijuca home on Sunday and the support of his son for a corporal-led putsch against the Supreme Court, some in the establishment appear to have finally awoken to the dangers. Two Supreme Court judges condemned Bolsonaro Jr.’s remark as a violation of the rule of law (though so far, none have filed suit against Bolsonaro or questioned the legality of his candidacy). Cardoso said the comment “stinks of fascism.” Cardoso and other PSDB leaders have reportedly agreed to draw up a manifesto in defense of democracy, although without explicitly supporting Haddad.
    This is almost certainly too late. And support for Haddad from the discredited political leaders may even strengthen Bolsonaro’s rising wave of support, driven by an effective operation of false news in a country rivaled only by the United States for its addiction to social networks. Anti-PT sentiment is intense among half the electorate, fed constantly over the past five years by politically motivated attorneys who have targeted the PT for corruption, which is endemic across all parties in Brazil.
    The news that Bolsonaro is considering appointing Lava Jato judge Sergio Moro—responsible for Lula’s imprisonment—to the Supreme Court will help the far-right candidate, though Moro’s reputation as superhero (he is a fan of Batman and Superman) has faded in the past year, as more evidence has emerged of his political bias. The PT’s disastrous economic mismanagement in the Dilma Rousseff years—before her impeachment in 2016—combined with the failure of her successor Michel Temer’s subsequent policies, is another factor in Bolsonaro’s rise. The austerity program implemented by Rousseff worsened the recession, while opposition in Congress and the media accused her of fiscal profligacy, a disastrous combination for the PT’s credibility, though Temer continued on the same path. At the same time, the steady growth of conservative evangelicalism among the Brazilian poor has fueled a culture war that has detached working-class voters from the left.
    The Brazilian elite’s failure to support Haddad is another reminder that keeping the PT out of government is now considered by many of them to be a greater priority than democracy itself. After the collapse of the center-right, Bolsonaro seems to be the only option for those in São Paulo—and Wall Street—who support radical liberalization of the Brazilian economy.
    “They will pay the price for this. The PT is the only party fighting fascism. This will give the left the moral advantage in the future, and Lula will be seen increasingly as a Mandela,” said an economist in Rio. Indeed, if Bolsonaro’s pledge to banish “marginal reds” from the country becomes more than empty rhetoric, the coming administration may take the so-far failed strategy to destroy the PT into new, more violent terrain.
     

Um diálogo com Stefan Zweig sobre Jair Bolsonaro


 



 

André Singer


 O escritor Stefan Zweig (1881-1942) me ligou ontem de manhã (ele não usa WhatsApp).

— Bom dia, Stefan, como vai?
— Estou preocupado com a eleição de domingo aí no Brasil.
— Eu também.
— Mas acho que você ainda não percebeu direito o que está acontecendo. Leia “Autobiografia: O Mundo de Ontem”, que escrevi antes de me suicidar em Petrópolis (RJ).
— Deixa passar o pleito.
— O método da extrema direita brasileira é o mesmo do nacional-socialismo: uma dose de cada vez, e, depois de cada dose, uma pequena pausa. Sempre só um comprimido e depois esperar um pouco para verificar se não era forte demais, se a consciência do mundo tolerava essa dose.
— Do que está falando?
— Veja, por exemplo, a reação de Jair Bolsonaro (PSL), esta semana, diante da má repercussão do vídeo em que o seu filho, Eduardo, ameaçava fechar o Supremo Tribunal Federal com “um soldado e um cabo”.
— Sim, o que há com essa reação?
— O candidato, com ar compungido na TV, pediu “desculpas ao Poder Judiciário”, dizendo não ter sido a intenção de Eduardo atacar “quem quer que seja”. A técnica é ir experimentando devagar, para descobrir até onde se pode ir a cada momento.
 — Não serão apenas bravatas?
— Nós na Alemanha e na Áustria não acreditávamos nem um centésimo ou milésimo ser possível o que poucas semanas mais tarde haveria de eclodir. Monstruosidades como queimas de livros, que poucos meses depois seriam um fato, ainda estavam longe de qualquer compreensibilidade mesmo para pessoas de larga visão.
— O pessoal aqui pensa que as instituições estão funcionando e que elas impedirão o arbítrio.
— Engano. O clima de ameaça à liberdade de expressão tomou conta de parte das instituições. Repare nas ações policiais que ocorreram em 12 universidades nos últimos dias. Durante três décadas de democracia o território universitário foi inviolável e, de repente, aulas sobre fascismo são interrompidas à força. Isso se chama Estado policial.
— Você exagera, Stefan, eles possuíam mandados judiciais.
— Você fica lendo em casa e não ouviu o que Bolsonaro disse para os seus apoiadores na Paulista domingo passado. Ele afirmou que os “marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”. A sociedade já foi intimidada. Temendo as “brigadas conservadoras”, Fernanda Torres suspendeu a encenação de uma peça prevista para novembro.
Desliguei apreensivo. Talvez Zweig estivesse apavorado. Por via das dúvidas, saí para virar mais uns votos. Não vale a pena pagar para ver se ele tem razão.

PS - Grato a Elio Gaspari pela inspiração. O texto utiliza trechos, em adaptação livre, do livro citado.

ilustração Loredano

October 23, 2018

Rompendo a violencia enrustida




BRUNO MARON

Há alguns anos, o jurista Fábio Konder Comparato deu uma entrevista brilhante para a revista Caros Amigos onde falava sobre a democracia no Brasil. Ou melhor, a ausência dela.

Como consequência do regime escravista que marcou profundamente a nossa mentalidade coletiva, havia um modelo clássico na distribuição de papéis no organismo social: O senhor de escravos, por exemplo, quando vinha à cidade, estava sempre elegantemente trajado, era afável, sorridente e polido com todo mundo. Bastava, no entanto, voltar ao seu domicílio rural, para que ele logo revelasse a sua natureza grosseira e egoísta. Nós mantivemos essa duplicidade de caráter em toda a nossa vida política até agora. Konder também enfatiza a dissimulação do brasileiro em relação a própria violência.

Pois bem, estamos vivenciando um rompimento com essa violência enrustida. Floresce uma franqueza inédita em relação à faceta mais brutal da população. Identifico sobretudo um triunfo da violência - que desemboca em outros territórios - no campo da linguagem, tão maltratada e surrada desde sempre, sem cerimônia. Considerando o fato de que a linguagem mobiliza uma espécie de corpo social encadeando transformações de ordem política, vejo que a campanha do Bolsonaro não tem nenhum pudor em promover uma orquestração semiótica dos afetos através das táticas mais rasteiras possíveis: entupir as pessoas de palavras, regras e representações genéricas de ordem, manipulação do pânico moral e fustigação de uma reatividade automática, consolidação de uma dualidade pueril amparada pelo mito da corrupção isolada. Tudo isso sendo papagaiado em proporções geométricas por pessoas estourando as varizes num frisson constrangedor de antipetismo. É a commodity do medo.

A prosperidade dessa gestão do afeto triste só mostrou o quanto estamos miseráveis. Na minha perspectiva, violência e miséria estão intimamente conectadas. Entretanto, é necessário assinalar o fenômeno da miséria menos evidente do que a sócioeconômica, sendo esta um problema mais objetivo e passível de procedimentos de cunho político e administrativo. São as misérias cultural, ética e espiritual que estão dando o ar da sua graça. Se existe algo de democrático no Brasil, é a miséria; ela se espalha sem preconceitos de qualquer espécie por todos os setores da sociedade.

Não me surpreende que a menina dos olhos da iconografia Bolsonarista seja o revólver. A arma de fogo me soa como a expressão máxima do reducionismo e portanto, de um pensamento miserável que grassa no Brasil contemporâneo sem fronteiras ou limites de ação. A arma resolve tudo, é imediatista e sacia a ansiedade dos espumantes por 'justiça'. Pra muitos significa a limpeza, uma espécie de corte de pessoal, a intimidação necessária e a extensão falocêntrica de um corpo despótico. Óbvio dizer aqui o quanto a arma de fogo amplifica o nível de covardia de um ser humano. A ideia de que uma pessoa de bem (existe algo mais CRETINO do que esse termo?) não se modifica ao adquirir uma arma de fogo é absolutamente ingênua. Pra mim, esse tesão que as pessoas sentem por arma é a velha sanha pelo pequeno poder, uma das nossas maiores tradições. Mente pequena, pequeno poder.

E por falar em tradição, eu adoraria entender o que Bolsonaro defende quando fala da FAMÍLIA TRADICIONAL BRASILEIRA. Tradição compreende uma série de doutrinas, saberes, ritos e costumes que interagem continuamente com o presente, fecundando o futuro. O que esse cara defende é muito mais um tradicionalismo barato, colocando as tradições numa esfera de impermeabilidade e coagulação histórica. É um passadista dos mais toscos, basta ver quem são os grandes ‘líderes’ que ele admira.

É bizarro imaginar a possibilidade de ver in loco esse Handmaid’s Tale de baixo orçamento no Brasil. E a julgar pelo gosto nostálgico do Bolso, veremos dentro da cela, numa tv de tubo com bombril na antena. Tô fora.

Bolsonarista chega ao poder na Ilha de Paquetá


DA COLUNA DO NOBLAT

Estimada em 4.500 almas, a população fixa da pacata Ilha de Paquetá, a 15 quilômetros do centro do Rio, começa a respirar novos ares. Nem bem ali o deputado Jair Bolsonaro (PSL) havia colhido a maior votação de um candidato a presidente da República, o prefeito Marcelo Crivella apressou-se a agradá-lo com a nomeação de um novo administrador para ilha.

Sai Edson Santos, indicado há dois anos pelo próprio Crivella. Entra Edson Moreira Brígido, militar da reserva da Força Aérea Brasileira, apoiado pelo movimento “Endireita Paquetá” que reúne os mais aplicados ativistas políticos da ilha que suaram as camisas para conferir a Bolsonaro todos os votos possíveis. Moreira Brígido não mora em Paquetá, mas isso é o de menos.

Ele é mais antigo no PSL do que o próprio Bolsonaro, que só este ano entrou no partido, o sétimo de sua carreira política. Moreira Brígido – ou “Barão de Pontinha” como se assina também – foi candidato a deputado estadual pelo PSL em 2002 e perdeu. Em 2010, foi candidato a deputado federal e só conseguiu 510 votos, 0,01% do total de votos em disputa.

Este ano não concorreu. Mas valeu-se de sua página no Facebook para fazer campanha por Bolsonaro. Em vídeo postado no Youtube há dois anos, ele critica a candidatura de Marcelo Freixo (PSOL) à prefeitura do Rio, manda um alô para o ator Alexandre Frota e antecipa seu voto em Bolsonaro para presidente. Não sem antes anunciar que estava no melhor de sua forma física.

No Facebook, além de bater continência para o capitão e lembrar que faltam poucos dias para que o país se livre “da maior facção criminosa” de sua história, Moreira Brígido posta uma foto sua ao lado do general da reserva Augusto Heleno, um dos mentores de Bolsonaro, e outras que sugerem o seu empenho em curtir o melhor que a vida possa lhe oferecer. Mulheres, por exemplo.

Abaixo de uma das fotos, onde posa de calção e com os braços levantados para destacar o pouco volume da barriga, Moreira Brígido anotou a título de comentário: “Vão malhar gente. Pelo menos arranjem alguma coisa para fazer. Transem com suas mulheres. Isso também exercita o corpo e a mente. Sabiam?”. Moreira Brígido ficou mais desinibido desde que se divorciou.

O novo administrador da Ilha de Paquetá já começou a limpeza política que se esperava dele. Funcionários com viés de esquerda estão sendo trocados por bolsonaristas de raiz. Os dispensados e os que negaram o voto a Bolsonaro se articulam para fazer oposição a Moreira Brígido. A paz na ilha está por um fio.

October 22, 2018

1968 não terminou bem para minha tia Zenir



MAURO VENTURA



1968 não terminou bem para minha tia Zenir. Aos 38 anos, ela ficara viúva em abril, quando meu tio Jair morreu de câncer no pulmão, após meses hospitalizado. Mais tarde, em dezembro, logo após o AI-5, foi a vez de seu irmão Zuenir ser preso. Três agentes haviam chegado lá em casa pela manhã. Eram simpáticos, conversaram comigo, mas estranhei quando meu pai foi para o quarto se arrumar e voltou com uma sacola. Eu tinha 5 anos e perguntei: “Ué, pai, você vai viajar com eles?” Ele me tranquilizou: “Vou, mas papai volta logo.” Foi levado para "prestar esclarecimentos" e só retornaria para casa três meses mais tarde.
Um ou dois dias depois que ele foi conduzido pelos agentes para o Sops (Seção de Ordem Política e Social), uma delegacia da PF instalada na Praça XV, minha mãe e meu tio foram levar roupas, escova e pasta de dente. Sem qualquer explicação, também acabaram detidos.
Assim que viu a mulher e o irmão serem presos, meu pai explicou para o delegado Antônio da Costa Sena que sua filha – minha irmã Elisa, à época com 4 anos – estava com coqueluche, tendo acessos de tosse. “Isso é problema seu”, foi a resposta seca.
- Fiquei apavorada, estava sem notícias dos três – lembra minha tia hoje, quando se completam 50 anos daquele período.
Ela, que já cuidava sozinha das duas filhas, teve que passar a tomar conta também de mim e de minha irmã. Um dia, uma amiga nossa da Urca, Claudia, disse a ela, a respeito de outro vizinho, um militar do Exército: “Esse coronel está paquerando você.” Minha tia desconversou: “Para com isso, Claudia!” Mas ela insistiu: “É sim. Quando você passa, ele fica olhando.”
Minha tia não deu bola. Até que, desesperada pela falta de informações, bateu à porta da casa dele e explicou a situação: “Meus irmãos e minha cunhada foram presos, não sei onde estão. Minha sobrinha está doente, estou sem notícias.” Ele prometeu apurar: “Fique tranquila, vou ver o que posso fazer.” À noite, o militar foi lá em casa e contou que os três estavam no Sops.
Minha mãe passava o dia sentada num banco na delegacia e, à noite, dormia numa cama que era armada na sala do delegado. Já meu tio Zé Antônio ficou na carceragem, no porão, dormindo no chão. Após poucos dias, os dois seguiram para o Dops, enquanto meu pai foi transferido para o Regimento Marechal Caetano de Farias.
Minha mãe ficou no presídio São Judas Tadeu, localizado no andar térreo do Dops, num pavilhão com outras 30 mulheres. Assim que chegou, uma das presas ofereceu a ela a opção de ficar na cama de cima ou na de baixo do beliche. “Qual a diferença?”, ela perguntou. “Na de cima tem baratas, na debaixo tem ratos.”
Apesar do pavor de baratas, ela optou pela de cima. Minha mãe dividia espaço com presas comuns. A maioria traficantes, que alegavam: “Eu tava tomando café no botequim, alguém chegou, botou um pacote ali, a polícia veio e achou que era meu.” Mas uma detenta contava, com naturalidade: “Eu pedi dinheiro emprestado pra patroa. Minha filha pequena tava doente e eu precisava comprar remédio. Ela negou. Peguei o fio do aspirador de pó e enforquei.” O crime ficou célebre à época. Entre as presas, havia mães recentes, e tinha bebê que ficava em caixa de papelão
Minha mãe tinha como tarefa limpar a privada. “Tem lacraias, cuidado”, avisaram. Por sorte, ela tinha uma rede de solidariedade que a ajudou. Amigas como Ceres e Maria Clara levavam biscoitos, doces e outros alimentos. Não podiam vê-la, já que estava incomunicável, mas ela recebia os produtos e distribuía entre as colegas de cárcere. Assim, ficou liberada de lavar a privada.
- Eu também comecei a ensinar as presas a fazer tapete - conta hoje.
Quem dirigia o São Judas Tadeu era um casal espírita. Às 5h da manhã, eles batiam palmas e gritavam: “Acordem senhoras!”. Na época, a moda era minissaia e, quando as amigas de minha mãe iam até lá, os dois as repreendiam: “Ponham essa toalhinha, por favor.”
Ceres morava no Leblon, no mesmo prédio do general Costa Cavalcanti. Um dia, foi ao apartamento dele e suplicou: “General, eu tenho uma amiga que está presa. Ela não fez nada. Tem dois filhos pequenos, e a menina está doente.” O militar respondeu: “A senhora garante que ela não fez nada?” Ceres disse: “Garanto. Ela é minha amiga. Não tem inquérito nenhum contra ela.”
Ele confirmou a informação e assim, após cerca de um mês, ela foi liberada e posta em prisão domiciliar:
- Depois de um certo tempo, percebi que não havia ninguém tomando conta e fui à padaria. Não aconteceu nada. E comecei a sair.
Até porque não havia nenhuma acusação contra ela.
Meu tio tinha sido solto dias antes. No Dops, havia um pouco de tudo: presos políticos, bicheiros, travestis.
- O barulho de tranca da cela me marcou muito - relembra.
Após umas três semanas, ele foi chamado e levou um sermão de um militar: “Você é comunista, estamos de olho.” Meu tio ainda hoje se espanta:
- Eu era diretor de fotografia, trabalhava com cinema, não tinha qualquer ligação com política.
E assim pôde ir para casa. Mas ao viajar precisava pedir autorização às autoridades. Pouco depois, seguiu para a Itália a trabalho e ficou cerca de um ano.
Eram tempos difíceis. Eu perguntava muito: "Tia, meus pais não vão voltar?" Não pudemos ver minha mãe na cadeia, mas depois tivemos autorização para visitar meu pai uma vez por semana.
- Eu saía da prisão arrasada – diz minha tia atualmente.
Uma prisão a que meu pai foi submetido, sem culpa e sem provas, por simples e infundadas suspeitas. O ambiente naquele período era de tanto terror e paranoia que, anos depois, ele consultou sua ficha no Dops e viu o tamanho do equívoco. Achavam que era a pessoa encarregada pelo Partido Comunista de controlar a imprensa, decidindo quem seria admitido ou demitido dos jornais. Logo ele, que não tinha militância política, nem era filiado a qualquer partido e muito menos combateu o governo pelas armas. Era professor universitário e jornalista, e participou de assembleias e passeatas contra o regime militar, como tanta gente que queria a volta da democracia. Mas, em tempos de ditadura – qualquer ditadura, de direita ou de esquerda -, pensar diferente dá cadeia.
Meu pai só foi solto em março de 1969, graças a Nelson Rodrigues. O dramaturgo visitava o poeta e psicanalista Helio Pellegrino, colega de cela de meu pai, todo dia, até no carnaval. Os dois eram grandes amigos, apesar das divergências ideológicas. Nelson apoiava o regime militar, enquanto Helio era de esquerda – foi, por exemplo, orador na Passeata dos Cem Mil. Só que Nelson fez parecer maior o papel de Helio na vida pública do país. O escritor, com o exagero caricatural que lhe era comum, costumava ironizar em suas crônicas o engajamento político do amigo. Dizia que “o verbo de Helio movia montanhas”. O resultado foi a prisão do mineiro.
O dramaturgo sentiu-se tão culpado que fez de tudo para libertá-lo. Chegou a interceder junto ao general Henrique de Assunção Cardoso, chefe do Estado Maior do I Exército, alegando que Helio era uma “cotovia, um homem com alma de passarinho, meu amigo de infância!”. Insistia: “Como um homem desses pode ser um perigoso condutor das massas?"
Por fim, o general decidiu soltá-lo. Mas o psicanalista bateu o pé e disse que só saía com meu pai. Nelson respondeu: “Mas Helio, o Zuenir, essa doce figura, será que ele não vai colocar uma bomba aí no quartel?” Helio negou, o dramaturgo se convenceu de que meu pai não era um perigo e assinou um documento se responsabilizando pelos dois.
E assim o psicanalista e o jornalista que anos depois escreveria o clássico “1968 – O ano que não terminou” acabaram enfim libertados.

October 19, 2018

Resignação ou resistencia




O tempo está correndo e daqui a 14 dias será o segundo turno. Bolsonaro manteve, segundo a primeira pesquisa Datafolha, a vantagem de 16 pontos percentuais sobre Fernando Haddad (58% a 42% dos votos válidos) obtidos no primeiro. Os Pilatos da direita lavaram as mãos, alegando tratar-se de disputa entre dois extremos; Ciro Gomes e Marina Silva sairam de cena lambendo as mágoas com o PT. Apontar Haddad como o outro extremo é desonesto e o dilema é falso. A escolha a ser feita é entre a continuidade da experiência democrática, que já fez do Brasil um país bem melhor, e o início de uma nova aventura autoritária. 

Impedir que o autoritarismo se imponha pelo voto, abrindo as comportas para perseguições lastreadas em preconceitos, é algo que vai muito além de apoiar um candidato do PT. Devia ser um imperativo democrático. Todos sabem que Haddad, com seus poucos aliados (PC do B, PSB, PPL e PSOL), dificilmente conseguirá virar o jogo. Isso só será possível se houver uma unidade vigorosa na sociedade civil e na esfera partidária mas o que tem prevalecido, além da omissão, é uma resignação melancólica.Com tanto mi-mi-mi, devemos ir nos preparando para o governo Bolsonaro.

Para virar o jogo, Haddad teria que conquistar a maioria dos votos de Ciro, Marina e Boulos e parte dos votos de candidatos do outro lado, como Alckmin, João Amoedo, Dias e Daciolo. E ainda boa parte dos dez milhões de eleitores que, juntos, ocuparam o quarto lugar no primeiro turno, depois de Alckmin: os sete milhões que anularam o voto e os 3 milhões que votaram em branco. Existem ainda os 20 milhões que não foram às urnas no dia 7. Existe, pois, alguma disponibilidade de votos para uma virada, se tomarmos como impossível a conquista de eleitores que votaram em Bolsonaro no primeiro turno. Quem votou nulo ou em branco já disse que está por aqui com a política e com o sistema, e este também não é um voto fácil de ser conquistado. Uma parte dos que se ausentaram pode ter tido a mesma motivação mas muitos faltaram por impedimentos diversos. 

Mas para conquistar parte destes votos disponíveis, o alinhamento das forças democráticas com Haddad devia ser vigoroso e já estar avançado, fazendo ecoar a mensagem de que o mais importante agora é preservar a democracia e barrar o avanço do projeto que, além de autoritário, será indutor da violência e de preconceitos como o racismo, a homofobia e o machismo. Entre os partidos isso não aconteceu. Na sociedade civil a movimentação é tímida, apenas intelectuais e artistas começam a se posicionar, como fez ontem Caetano Velloso, apesar da Regina Duarte, que tinha medo de Lula mas não tem de Bolsonaro, que recebeu a visita dela.

O que se tem visto é o festival do mi-mi-mi: não apenas políticos e partidos sobem no muro. As pessoas também vão às redes sociais dizer que abominam o candidato autoritário mas não votam em Haddad por isso e aquilo: que o PT se corrompeu, que foi Lula que inventou o “nós contra eles”, que o PT só buscou vingança ao lançar candidato próprio, ao invés de apoiar Ciro, e coisas assim. E se Ciro tivesse sido o candidato, não teria ele se tornado o alvo das iras bolsonarianas, sendo acusado de se alugar para o PT?
O que não se tem visto é alguém, cuja voz tenha ressonância, dizer sensatamente: os governos do PT trouxeram avanços mas também muitos danos ao país. Os pecados cometidos, entretanto, são veniais diante do pecado mortal que será perpetrado contra a democracia se Bolsonaro for eleito. Essa é a questão: para castigar o PT, estão dispostos a imolar a democracia? 

O horário eleitoral começou e o programa de Bolsonaro, com seu aparente descuido técnico, mostrou que existem estrategistas de marketing na campanha, eficazes até na dissimulação do próprio marketing. Ele vai usar armas pesadas, combinando rajadas de antipetismo com sua própria humanização. O de Haddad foi correto, apresentou propostas mas transmitiu a sensação de isolamento. Faltaram os apoiadores, dizendo que estão com ele por uma razão maior.
Por ora, estão dedicados ao mi-mi-mi.

October 18, 2018

Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp


Com contratos de R$ 12 milhões, prática viola a lei por ser doação não declarada 

Patrícia Campos Mello

Empresas estão comprando pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no WhatsApp e preparam uma grande operação na semana anterior ao segundo turno.
A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha por empresas, vedada pela legislação eleitoral, e não declarada.
A Folha apurou que cada contrato chega a R$ 12 milhões e, entre as empresas compradoras, está a Havan. Os contratos são para disparos de centenas de milhões de mensagens.

As empresas apoiando o candidato Jair Bolsonaro (PSL) compram um serviço chamado "disparo em massa", usando a base de usuários do próprio candidato ou bases vendidas por agências de estratégia digital. Isso também é ilegal, pois a legislação eleitoral proíbe compra de base de terceiros, só permitindo o uso das listas de apoiadores do próprio candidato (números cedidos de forma voluntária).
Quando usam bases de terceiros, essas agências oferecem segmentação por região geográfica e, às vezes, por renda. Enviam ao cliente relatórios de entrega contendo data, hora e conteúdo disparado.
Entre as agências prestando esse tipo de serviços estão a Quickmobile, a Yacows, Croc Services e SMS Market.
Os preços variam de R$ 0,08 a R$ 0,12 por disparo de mensagem para a base própria do candidato e de R$ 0,30 a R$ 0,40 quando a base é fornecida pela agência.
As bases de usuários muitas vezes são fornecidas ilegalmente por empresas de cobrança ou por funcionários de empresas telefônicas.
Empresas investigadas pela reportagem afirmaram não poder aceitar pedidos antes do dia 28 de outubro, data da eleição, afirmando ter serviços enormes de disparos de WhatsApp na semana anterior ao segundo turno comprados por empresas privadas.
Questionado se fez disparo em massa, Luciano Hang, dono da Havan, disse que não sabe "o que é isso". "Não temos essa necessidade. Fiz uma 'live' aqui agora. Não está impulsionada e já deu 1,3 milhão de pessoas. Qual é a necessidade de impulsionar? Digamos que eu tenha 2.000 amigos. Mando para meus amigos e viraliza."

Procurado, o sócio da QuickMobile, Peterson Rosa, afirma que a empresa não está atuando na política neste ano e que seu foco é apenas a mídia corporativa. Ele nega ter fechado contrato com empresas para disparo de conteúdo político.
Richard Papadimitriou, da Yacows, afirmou que não iria se manifestar. A SMS Market não respondeu aos pedidos de entrevista.
Na prestação de contas do candidato Jair Bolsonaro (PSL), consta apenas a empresa AM4 Brasil Inteligência Digital, como tendo recebido R$ 115 mil para mídias digitais. 

Segundo Marcos Aurélio Carvalho, um dos donos da empresa, a AM4 tem apenas 20 pessoas trabalhando na campanha. "Quem faz a campanha são os milhares de apoiadores voluntários espalhados em todo o Brasil. Os grupos são criados e nutridos organicamente", diz.
Ele afirma que a AM4 mantém apenas grupos de WhatsApp para denúncias de fake news, listas de transmissão e grupos estaduais chamados comitês de conteúdo.
No entanto, a Folha apurou com ex-funcionários e clientes que o serviço da AM4 não se restringe a isso.
Uma das ferramentas usadas pela campanha de Bolsonaro é a geração de números estrangeiros automaticamente por sites como o TextNow.
Funcionários e voluntários dispõem de dezenas de números assim, que usam para administrar grupos ou participar deles. Com códigos de área de outros países, esses administradores escapam dos filtros de spam e das limitações impostas pelo WhatsApp —o máximo de 256 participantes em cada grupo e o repasse automático de uma mesma mensagem para até 20 pessoas ou grupos.
Os mesmos administradores também usam algoritmos que segmentam os membros dos grupos entre apoiadores, detratores e neutros, e, desta maneira, conseguem customizar de forma mais eficiente o tipo de conteúdo que enviam.
Grande parte do conteúdo não é produzida pela campanha —vem de apoiadores.
Os administradores de grupos bolsonaristas também identificam "influenciadores": apoiadores muito ativos, os quais contatam para que criem mais grupos e façam mais ações a favor do candidato. A prática não é ilegal.
Não há indício de que a AM4 tenha fechado contratos para disparo em massa; Carvalho nega que sua empresa faça segmentação de usuários ou ajuste de conteúdo.
As estimativas de pessoas que trabalham no setor sobre o número de grupos de WhatsApp anti-PT são muito vagas —vão de 20 mil a 300 mil— pois é impossível calcular os grupos fechados.
Diogo Rais, professor de direito eleitoral da Universidade Mackenzie, diz que a compra de serviços de disparo de WhatsApp por empresas para favorecer um candidato configura doação não declarada de campanha, o que é vedado.
Ele não comenta casos específicos, mas lembra que dessa forma pode-se incorrer no crime de abuso de poder econômico e, se julgado que a ação influenciou a eleição, levar à cassação da chapa.
Em MG, Romeu Zema contratou empresa de impulsionamento
O candidato ao governo de Minas do partido Novo, Romeu Zema, declarou ao Tribunal Superior Eleitoral pagamento de R$ 200 mil à Croc Services por impulsionamento de conteúdos. O diretório estadual do partido em Minas gastou R$ 165 mil com a empresa.
A Folha teve acesso a propostas e trocas de email da empresa com algumas campanhas oferecendo disparos em massa usando base de dados de terceiros, o que é ilegal.
Indagado pela Folha, Pedro Freitas, sócio-diretor da Croc Services, afirmou: "Quem tem de saber da legislação eleitoral é o candidato, não sou eu."
Depois, recuou e disse que não sabia se sua empresa prestara serviço para Zema. Posteriormente, enviou mensagem afirmando que conferiu seus registros e que vendera pacotes de disparo em massa de WhatsApp, mas só a bases do próprio candidato, filiados ao partido e apoiadores de Zema —o que é legal.
Procurada, a campanha afirmou que "contratou serviço de envio de mensagem somente por WhatsApp para envio aos filiados do partido, pessoas cadastradas pelo website e ações de mobilização de apoiadores".
A Folha apurou que eleitores em Minas receberam mensagens em WhatsApp vinculando o voto em Zema ao voto em Jair Bolsonaro dias antes do primeiro turno. Zema, que estava em terceiro nas pesquisas, terminou em primeiro.

Colaboraram Joana Cunha e Wálter Nunes


Nós e a normalopatia


 Para psicanalistas e psicólogos, a obsessão pela normalidade resulta numa doença, a normalopatia. Já os cientistas sociais usam a palavra para descrever uma patologia social nova, a normalização de situações que são extraordinárias, anormais, fora do padrão, para o bem ou para o mal. Trump, por exemplo, para os americanos. Aqui, o segundo turno começa bem anormal. Em condições normais, alguém vê sentido em estarmos discutindo comunismo 30 anos depois da queda do Muro de Berlim? Mas Jair Bolsonaro gastou parte de seu primeiro programa, ontem, tratando disso.

O segundo turno existe para que os eleitores possam conhecer melhor as propostas dos dois candidatos mais votos no primeiro turno. Novas alianças são formadas e os programas são ajustados à nova composição partidária da coligação. É também a oportunidade para que sejam mais debatidos pois, afinal, é com este programa que o vencedor vai governar. Nada disso promete acontecer neste segundo turno

. Os realinhamentos ocorrem para que o vencedor disponha da maioria ou da mais ampla base possível para governar. Isso não está fluindo normalmente. Os mais de 15 partidos que declararam neutralidade no fundo são aliados que Bolsonaro não quer exibir. O PTB formalizou o apoio mas, de público, ele fingiu que não viu. Afinal, foi fingindo ser outsider, e não participar “disso que está aí’, que ele arrastou 49 milhões de votos e promoveu a renovação conservadora, trocando velhos políticos por seus aliados, alguns completamente desconhecidos.

Pela esquerda, a frente democrática em torno de Fernando Haddad não saiu. Ficou restrita aos partidos da velha Frente Brasil Popular, composta por PT, PC do B, PSB e agora PSOL. O PDT e Ciro Gomes lavaram as mãos com o apoio crítico. Fernando Henrique, cujo apoio teria peso e ressonância, também vai para o exterior. Bem feito para o PT, dizem nas redes sociais, criticando a autossuficiência do partido.

 A comparação programática não haverá. Bolsonaro gastou boa parte do seu primeiro programa com propaganda anticomunista. Mostrou imagens da criação do Foro de São Paulo, associação de partidos de esquerda latino-americanos, que ele apresenta como uma internacional comunista latino-americana. Este PT comunista de que Bolsonaro fala governou o país por 13 anos e não implantou o tal regime. Mas pode implantar agora, se Haddad ganhar. Os eleitores de Bolsonaro acreditam nisso, como se vê pelo que dizem nos grupos de whatsapp. Os evangélicos oram repreendendo o perigo. Os petistas, na ideologia bolsonarista ou neofascista, ocupam o lugar dos comunistas na ditadura militar. Se ele ganhar, haverá perseguição e caça às bruxas, não tenham dúvida

. Propostas de governo ele não apresentou nenhuma. A segunda parte foi a exibição do pai de família, que chorou ao falar da filha mais nova, pela qual desfez uma vasectomia. A mesma que, já disse ele, nasceu mulher porque ele deu “uma fraquejada”. Houve apenas a promessa vaga de um país melhor, com um governo “que saia do cangote da classe produtora”. Palavras como emprego, direitos sociais ou trabalhistas, educação e saúde, não apareceram no programa.

O programa de Haddad traduziu seu esforço para agregar apoios, depois de abrir com denúncia forte sobre violências cometidas por bolsonaristas de domingo para cá. O verde e o amarelo somaram-se ao vermelho, e embora os bolsominions festejem nas redes que “o PT amarelou”, as campanhas de Dilma e de Lula também fizeram uso das cores da bandeira. Em sua enorme desvantagem nas pesquisas, Haddad fez sua maior oferta, a de ser candidato não do partido, mas de todos que prezem a democracia e a justiça social. Está certo. E apresentou algumas propostas, como a do ensino médio federal e o programa “meu emprego de volta”.

Mas debate, vai ficando claro, não haverá. É a normalopatia. Eleição sem programa e sem debate.

October 16, 2018

Moa do Katendê ajudou a formar identidade musical afro-brasileira

Mestre Môa do Katendê em 2011
foto bruno figueiredo

André Uzêda
 
Salvador

Mestre Moa do Katendê era de falar pouco. “Muitas vezes passava horas no lugar só observando. Sem dizer nada. Era do tipo que valorizava bem aquele ditado de ter uma boca e dois ouvidos”, diz Geraldo Badá, amigo do capoeirista desde a década de 1970.
Desde o último domingo (7/10), dia das eleições presidenciais de primeiro turno no país, o silêncio de Moa variou do facultativo para o irrevogável. Aos 63 anos, o músico e ativista negro foi morto pelas mãos de um homem que tinha visto pela primeira vez na vida cerca de meia hora antes.
Moa levou 12 facadas de Paulo Sérgio Ferreira, 36. Segundo testemunhas, o início da rixa foi uma discussão política. Mestre Moa defendeu o candidato do PT, Fernando Haddad, e Paulo Sérgio, Jair Bolsonaro, do PSL . A discussão terminou de forma ríspida e Paulo Sérgio voltou para casa, pegou uma faca e golpeou o capoeirista pelas costas. Foi detido ainda naquela noite pela polícia, que seguiu o rastro de sangue até encontrar o acusado em casa. A cena do crime foi o Bar do João, nº 208, na comunidade do Dique Pequeno, em frente ao Dique Tororó, ponto turístico de Salvador.
Na quarta-feira, um ato no Pelourinho reuniu centenas de pessoas para homenagear Moa e enaltecer seu legado. Capoeiristas, músicos, militantes de partidos de esquerda e do movimento negro participaram do cortejo do Largo do Pelourinho, ladeira acima, até o pátio da antiga Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira do Brasil.
“Ele foi um artista tão completo que é difícil não encontrar uma área que ele não se destacou. Viajamos juntos para Frankfurt, Alemanha, para divulgar a cultura afro-brasileira”, diz o também capoeirista Vivaldo Rodrigues, conhecido como Mestre Boa Gente.

Moa do Katendê nasceu como Romualdo Rosário da Costa. O apelido Moa foi uma troca feita pelos irmãos mais velhos, ainda na infância, para facilitar a pronúncia. Como acontece na maioria das vezes, o epíteto rapidamente substituiu o nome de batismo. “Aqui em casa ele sempre foi Moa. O Katendê adotou depois, a partir das nossas ligações africanas. Ele começou a jogar capoeira muito menino, foi ganhando corpo e se destacando”, conta seu irmão Francisco Albuquerque.
Embora seja reconhecido pelos dotes de capoeirista, foi na música que Mestre Moa ganhou relevância e influenciou grandes nomes do cancioneiro nacional. Fez do Carnaval de Salvador seu laboratório e palco para grandes transformações.
Em 1977, debutou como compositor com a canção "Bloco Beleza" vencendo um festival de música do Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do Carnaval de Salvador. O sucesso o fez ingressar no grupo folclórico de percussão Viva Bahia, que viajou em turnê pela Europa para apresentações por Portugal, Itália e Alemanha. Já em casa, em 13 de maio de 1978 (quando o Brasil celebrava 90 anos da Lei Áurea), criou o afoxé Badauê.
No ano seguinte, com as cores azul, amarelo e branco (de Ogum, Oxum e Oxalá) o Badauê venceu o Carnaval na categoria afoxé. O antropólogo e publicitário Antônio Risério atribui ao Badauê, no livro "Carnaval Ijexá" (Editora Corrupio), conjuntamente como os Filhos de Gandhy e o Ilê Aiyê, o movimento de “reafricanização do Carnaval de Salvador”.
Risério diz que o Badauê, em especial, foi responsável por inovações mais marcantes neste processo, ao captar e trazer novas sonoridades aos afoxés a partir de elementos da blacktude e das influências dos jamaicanos Bob Marley e Jimmy Cliff.
“No contexto da década de 1970, o movimento negro estava fortíssimo em todo mundo e na música a força era do soul e do reggae. Aqui na Bahia, porém, os blocos de índios tinham muito mais força. Moa foi vanguardista ao transformar os afoxés. Até então só cantavam músicas em iorubá (língua africana) e da liturgia dos terreiros. No Badauê, ele manteve a tradição do ritmo africano, mas abriu espaço para a contemporaneidade ao beber destas influências estrangeiras”, diz Chicco Assis, pesquisador que defendeu dissertação de mestrado sobre os afoxés da Bahia.
“Moa é figura central nesse movimento de construção de uma identidade musical afro-brasileira. Ele foi um pioneiro desse movimento e um ativista em vários aspectos da construção dessa identidade”, diz o maestro baiano Letieres Leite, idealizador da orquestra Rumpilezz, que mistura elementos percussivos do candomblé com o jazz.
Ainda em 1979, no álbum "Cinema Transcendental", Caetano Veloso grava a música "Badauê", de autoria de Moa do Katendê e pela qual venceu o concurso dos afoxés no Carnaval daquele mesmo ano (Misteriosamente/ O Badauê surgiu/ Sua expressão cultural/ O povo aplaudiu). Neste mesmo álbum, na faixa "Beleza Pura", Caetano cita novamente o Badauê em outro verso (Moço lindo do Badauê, Beleza Pura /Do Ilê Aiyê, Beleza Pura).
Depois da morte de Moa, os jornais atribuíram o verso a uma suposta homenagem feita ao compositor-capoeira. “Foi uma informação errada que passaram. Eu levei Caetano para os primeiros ensaios do Badauê e lá tinha o dançarino e coreógrafo Negrizu, que hoje faz parte do Olodum. Foi para ele que esse verso foi dedicado. Embora também seja verdade que Caetano e Moa fossem muito amigos e que a sonoridade de Moa tenha influenciado Caetano nesse período”, diz Geraldo Badá, que durante anos atuou como relações públicas do afoxé Badauê, chegando inclusive a incorporar o “Badá” ao seu sobrenome.

Em entrevista por e-mail à Folha, Caetano confirmou a versão. “É uma referência direta a Negrizu, então um lindo e elegante adolescente que dançava muito bem. É uma homenagem a sua beleza. Registra a presença do Badauê no nosso Carnaval”, diz.
E lembrou também como conheceu Moa. “Tinha ido ver alguma coisa na sala de ensaio do Teatro Castro Alves e, ao sair de lá, vi esse grupo que subia a rampa que vem da Concha Acústica cantando e dançando. Era de tarde. Para mim, a visão daquele grupinho nos fundos do Castro Alves foi o sinal da mudança da feição social da cidade do Salvador, com os negros, maioria de sua população, protagonizando a vida social da cidade.”
Em suas redes sociais, Gilberto Gil classificou a morte de Moa como uma “devastadora onda de ódio e intolerância que nos assalta nesses dias de hoje”. Outros tantos artistas endossaram o coro de lamento, indignação e condolências.
“Ele tinha relação com grandes artistas, viajava e era reconhecido no mundo todo, mas nunca abandonou o Dique Pequeno, a comunidade onde nasceu e tinha um trabalho social com a capoeira”, conta Somonair da Costa, 35, terceira dos quatro filhos de Moa.
Dançarina profissional, Somonair conta que o pai sempre incentivou os filhos a seguir o caminho da cultura, fosse nas rodas de capoeira, dança ou do artesanato. “Aqui em casa todo mundo desenvolveu alguma habilidade e sempre estivemos conectados à cultura africana. Meu pai sempre ensinou a gente a não baixar a cabeça e valorizar o que somos”, pontua.
A família de Moa agora luta para construir um memorial em sua homenagem e para manter o espaço social onde ele dava aula de capoeira para cerca de 60 meninos do bairro. “Eu via Moa sempre caladão ali no canto, mas sabia de sua história. Eu o imaginava como um próprio orixá”, diz Clarindo Silva, figura emblemática de Salvador que já foi citada, inclusive, nos livros de Jorge Amado. “Moa fez muito pela cultura da Bahia e do Brasil. Ele se posicionou por suas ações, sua sensibilidade e, até na sua morte, propôs uma reflexão do país que estamos nos transformando”, diz Clarindo.
 

October 15, 2018

Resignação ou resistência


O tempo está correndo e daqui a 14 dias será o segundo turno. Bolsonaro manteve, segundo a primeira pesquisa Datafolha, a vantagem de 16 pontos percentuais sobre Fernando Haddad (58% a 42% dos votos válidos) obtidos no primeiro. Os Pilatos da direita lavaram as mãos, alegando tratar-se de disputa entre dois extremos; Ciro Gomes e Marina Silva sairam de cena lambendo as mágoas com o PT. Apontar Haddad como o outro extremo é desonesto e o dilema é falso. A escolha a ser feita é entre a continuidade da experiência democrática, que já fez do Brasil um país bem melhor, e o início de uma nova aventura autoritária.

Impedir que o autoritarismo se imponha pelo voto, abrindo as comportas para perseguições lastreadas em preconceitos, é algo que vai muito além de apoiar um candidato do PT. Devia ser um imperativo democrático. Todos sabem que Haddad, com seus poucos aliados (PC do B, PSB, PPL e PSOL), dificilmente conseguirá virar o jogo. Isso só será possível se houver uma unidade vigorosa na sociedade civil e na esfera partidária mas o que tem prevalecido, além da omissão, é uma resignação melancólica.Com tanto mi-mi-mi, devemos ir nos preparando para o governo Bolsonaro.

Para virar o jogo, Haddad teria que conquistar a maioria dos votos de Ciro, Marina e Boulos e parte dos votos de candidatos do outro lado, como Alckmin, João Amoedo, Dias e Daciolo. E ainda boa parte dos dez milhões de eleitores que, juntos, ocuparam o quarto lugar no primeiro turno, depois de Alckmin: os sete milhões que anularam o voto e os 3 milhões que votaram em branco. Existem ainda os 20 milhões que não foram às urnas no dia 7. Existe, pois, alguma disponibilidade de votos para uma virada, se tomarmos como impossível a conquista de eleitores que votaram em Bolsonaro no primeiro turno. Quem votou nulo ou em branco já disse que está por aqui com a política e com o sistema, e este também não é um voto fácil de ser conquistado. Uma parte dos que se ausentaram pode ter tido a mesma motivação mas muitos faltaram por impedimentos diversos.

Mas para conquistar parte destes votos disponíveis, o alinhamento das forças democráticas com Haddad devia ser vigoroso e já estar avançado, fazendo ecoar a mensagem de que o mais importante agora é preservar a democracia e barrar o avanço do projeto que, além de autoritário, será indutor da violência e de preconceitos como o racismo, a homofobia e o machismo. Entre os partidos isso não aconteceu. Na sociedade civil a movimentação é tímida, apenas intelectuais e artistas começam a se posicionar, como fez ontem Caetano Velloso, apesar da Regina Duarte, que tinha medo de Lula mas não tem de Bolsonaro, que recebeu a visita dela.

O que se tem visto é o festival do mi-mi-mi: não apenas políticos e partidos sobem no muro. As pessoas também vão às redes sociais dizer que abominam o candidato autoritário mas não votam em Haddad por isso e aquilo: que o PT se corrompeu, que foi Lula que inventou o “nós contra eles”, que o PT só buscou vingança ao lançar candidato próprio, ao invés de apoiar Ciro, e coisas assim. E se Ciro tivesse sido o candidato, não teria ele se tornado o alvo das iras bolsonarianas, sendo acusado de se alugar para o PT?
 
O que não se tem visto é alguém, cuja voz tenha ressonância, dizer sensatamente: os governos do PT trouxeram avanços mas também muitos danos ao país. Os pecados cometidos, entretanto, são veniais diante do pecado mortal que será perpetrado contra a democracia se Bolsonaro for eleito. Essa é a questão: para castigar o PT, estão dispostos a imolar a democracia?
 
O horário eleitoral começou e o programa de Bolsonaro, com seu aparente descuido técnico, mostrou que existem estrategistas de marketing na campanha, eficazes até na dissimulação do próprio marketing. Ele vai usar armas pesadas, combinando rajadas de antipetismo com sua própria humanização. O de Haddad foi correto, apresentou propostas mas transmitiu a sensação de isolamento. Faltaram os apoiadores, dizendo que estão com ele por uma razão maior. Por ora, estão dedicados ao mi-mi-mi.