Eliane Trindade
Ambiente conflagrado é traduzido em mensagens também entre amigos e até em comunidades de ioga
O produtor Ricardo Souza, 27, resiste bravamente no grupo de WhatsApp da
família, enquanto o professor universitário Ademar Bueno, 48, já saiu
das duas comunidades formadas por parentes via aplicativo de mensagens
instantâneas no celular.
As eleições passaram a nortear todos os temas dos grupos no WhatsApp em intermináveis trocas de farpas entre “coxinhas e petralhas”, “bolsominions e esquerdopatas”, as turmas mais barulhentas das redes sociais.
O tom das conversas tende a ficar mais pesado diante do segundo turno entre Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT).
“A primeira vez que saí do grupo de WhatsApp da família foi por causa de memes sobre a morte da Marielle. Meu pai mandou várias mensagens falsas, montagem de fotos”, relata Bueno, que foi candidato a deputado estadual pela Rede em São Paulo, mas não se elegeu.
Militante de grupos que pregam a renovação na política, como o Agora, o professor ainda tentou convencer o pai de que era tudo mentira. “Mandava o contraponto, mas não adiantava. Era uma conversa unidirecional, não um diálogo.”
Ele saiu do grupo oficial, mas foi incluído em um novo há três semanas. O clima continuava tenso, agressivo. Não adiantou apelar para o bom senso, nem pedir para que os parentes lessem e refletissem antes de apertar o encaminhar. “A coisa só foi piorando.” O professor saiu de vez do grupo nesta segunda (8). “Cansei de ler coisas absurdas, que machucam.”
O jovem eleitor de Bolsonaro rebate um tom acima o tio petista: “Você vive em Brasília, a roubalheira está na sua frente e só você não enxerga. Não consigo acreditar que um cara tão inteligente acha que realmente o PT seja bom para nosso país.”
O papo áspero se prolonga sem consenso até o desfecho dado pelo tio em defesa da democracia. “Meu caro, só se é democrata até o limite da democracia. É este o paradoxo da democracia: jamais defender algo que a ponha em risco.”
O produtor audiovisual enfrenta o mesmo dilema diante da troca intensa de mensagens entre os 25 parentes do Amazonas. Após a definição do primeiro turno, Souza se vê o tempo todo trafegando em um campo minado ao alcance da mão.
“Dois primos já saíram do grupo. Ninguém confirma de onde vêm as informações. É muito meme com notícias falsas e preconceitos. Horrível. Dá um desespero, peço que pesquisem e façam o básico, consultar o Google antes de mandar.”
Politicamente de centro-esquerda e homossexual assumido, sente-se pessoalmente atingido pelas mensagens homofóbicas disseminados pelos parentes que votam em Bolsonaro.
Ele conta que um tio postou uma série de notícias sobre o “kit gay”, que levou Souza a ter uma discussão com o próprio pai. “Disse que era uma decepção justamente ele, que me ensinou a pesquisar, a ler, agora compartilhar memes preconceituosos e mentirosos.”
As respostas dos familiares a argumentos e dados deixam o produtor ainda mais desolado: “Eles negam qualquer informação que venha da mídia e criam a própria verdade. Vivem em um mundo paralelo”.
Mal-estar que se desdobra na vida real: o jornalista Maurício* desistiu de férias na praia com 20 familiares. Ele escreveu um longo texto para explicar que, como homossexual assumido, não se sentia confortável entre parentes eleitores de Bolsonaro.
“Saber que alguns de vocês contribuem para esta situação dobra o meu sofrimento e torna impossível que dividamos os próximos dias neste lugar paradisíaco de que tanto gosto”, escreveu. “Simplesmente não seria capaz de cumprimentá-los, abraçá-los ou sentar à mesa sem me lembrar que alguns de vocês tomaram uma decisão que me coloca em grave risco.”
A paisagista Helena*, que votou em Ciro Gomes (PDT) em busca de uma terceira via que não se concretizou, rompeu com a mãe, professora e eleitora de Haddad.
“Ela achou absurdo o meu voto e passou a agir de maneira hostil. Chegou a um ponto em que se recusa a ter um diálogo com quem pensa diferente. A extrema esquerda é também bem pouco democrática”, critica.
O único remanescente petista no grupo de médicos de São Paulo precisa conviver com uma enxurrada de memes pró-Bolsonaro. O ortopedista foi acordado nesta segunda (8) com um libelo contra o Nordeste, única região do país em que Haddad liderou o pleito.
“Fico triste de ver tantos colegas falando mal de nordestinos e médicos votando em um candidato que defende a tortura”, diz ele, que tem optado pelo silêncio para preservar amigos de longa data, tão solidários em momentos delicados de sua vida.
Causa estupor em um grupo de familiares baianos as mensagens iradas de um primo padre, uma das figuras mais carismáticas e queridas da numerosa família, com parentes espalhados pela Bahia, por Brasília e São Paulo.
Nem um grupo de WhatsApp formado por professoras de ioga de Goiás escapou da pregação de ódio.
Tudo começou quando uma professora resolveu perguntar em quem os colegas iriam votar. Foi o suficiente para o comportamento zen ficar em modo avião.
Um logo declarou voto em Bolsonaro. Imediatamente vieram as reações. “Sério mesmo? Você é a favor do estupro? Do machismo? Do racismo? Da homofobia? Porque é isso que representa o 17”, respondeu uma professora.
“Cantamos Shanti, Shanti, Shanti, no final das aulas, pedindo paz. O Bolsonaro significa violência. O contrário do ioga, que prega união e não violência”, acrescentou outro, sobre um dos princípios básicos da prática milenar.
“Sou capitalista. Quero ganhar muito dinheiro para ajudar as pessoas”, rebateu outro. “Quero um país honesto, com pessoas honestas. Quero alguém que defenda a preservação da moral da família. Quero ver o Brasil no auge.”
A discussão não cessava. “Deus nos salve do fascismo e também do comunismo.” A troca de mensagens continuou, de forma cada vez mais acirrada, até que a turma do “deixa disso” resolveu entrar em campo para apaziguar os ânimos.
“Esse grupo é de ioga, vamos honrar essa ciência sagrada, não vamos nos dividir, vamos respeitar uns aos outros. Queremos o melhor para o Brasil, mas cada um tem suas convicções. O momento pede paz e tranquilidade”, finalizou um professor, tentando reinstalar o comportamento zen no grupo.
Haja ioga e paciência. O jeito é buscar estratégias para sobreviver no WhatsApp, nos almoços de domingo. “Não uso mais o argumento LGBT, não tem empatia”, conforma-se Souza. Bueno também se deu conta de que não adianta gritar mais alto do que o pessoal que não quer consenso. “A gente busca o diálogo, o meio termo. Intolerância causa cegueira e surdez”, é o novo mantra do professor que ainda acredita na política, mas deu um tempo do WhatsApp.
E
para aqueles que não enxergam reconciliação com a família no curto
prazo, o grupo "Órfãos do WhatsApp" no Facebook oferece consolo e
alternativas para a noite de Natal.
Eliane Trindade