Por muito tempo, o ideal da economia de mercado era a sociedade de pleno emprego. Em tal paraíso sociológico, as pessoas teriam autonomia, dignidade e liberdade. A remuneração garantida funcionaria como colchão ético, um estado de segurança que permitiria a cada cidadão fazer planos, pensar no futuro, não barganhar seus princípios. A consequência dessa realidade seria uma sociedade pacificada, capaz de produzir serviços de qualidade, que seriam adquiridos no mercado. No caso dos produtos ditos sociais, como saúde e educação, eles seriam fornecidos por um Estado rico em razão da própria funcionalidade da economia. Um jogo de ganhador-ganhador.
O chamado Estado de bem-estar social era herdeiro desse projeto. Capitalista na produção e socialista na distribuição, parecia trazer para seu núcleo o melhor dos dois mundos. Da mesma forma que incorporava ideologias aparentemente antagônicas – como liberalismo e igualitarismo –, o funcionamento desse modelo social colocaria no mesmo processo ferramentas típicas da democracia liberal e do socialismo. Assim, o pleno emprego só se manteria operante com forte estrutura sindical; a democracia de massas só se manteria com a liberdade de organização.
De uma hora para outra, o equilíbrio se rompeu. Antes de a chamada social-democracia surgir como solução, o emprego era quase um problema para o setor produtivo. As pessoas trabalhavam, no sistema fordista, como peças de máquina que precisavam ser vigiadas. Todas as teorias aplicadas ao campo do trabalho eram voltadas para controle, estandartização, obediência, verticalismo e reforço da autoridade. Quanto mais ditador, melhor patrão. Assim, o pleno emprego não era visto como ameaça, apenas como um estágio de maior cobrança de competência dos feitores.
A fase seguinte foi a de esgarçamento desse olhar controlador, apostando na capacidade de manifestação das pessoas, na busca de climas de cooperação, nas chamadas parcerias produtivas. Nesse tempo, falava-se em círculos de controle de qualidade, os empregados eram chamados de colaboradores, todo mundo era cliente de todo mundo. A amortização dos conflitos queria fazer crer que os interesses eram os mesmos dos dois lados do balcão: numa empresa rica, todos ganham. A mensagem de paz só era possível com o tacão da castração da liberdade de organização dos trabalhadores, ainda que por mecanismos ideológicos.
Na dinâmica da história, esse momento foi também ultrapassado com a percepção de que, no cenário da produção, o homem perdeu a centralidade. Foi o tempo do downsizing, da flexibilização das normas, da valorização da informalidade, da busca de burla da legislação trabalhista em nome de uma vicária garantia do mercado de trabalho para a maioria das pessoas. Para manter o máximo de empregos, o mínimo de garantias. O que era solidariedade entre trabalhadores se tornou competição entre indivíduos-empresas. Eu S/A.
É chegado agora, segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, o momento da modernidade líquida. Já não importam tanto os controles e panópticos. As funções administrativas ortodoxas se esgotam em nome de ameaça muito mais forte, porque internalizada: o medo do desemprego e da inutilidade social. O primeiro passo foi convencer parte da humanidade de que ela é desnecessária; em seguida, ameaçar a outra porção de que ela pode ser a próxima da fila. O gasto é muito menor e a eficácia bem maior. As pessoas se tornam capazes de tudo para manter seus empregos, até mesmo de deixar de ser pessoas.
Os funcionários e empregados hoje aprenderam com o que de pior a história recente do mercado de trabalho realizou no mundo ocidental. Do fordismo, herdaram a obediência rigorosa às normas e a alienação produtiva; dos círculos de controle de qualidade, o descaso com a organização sindical em nome de interesses corporativos inconfessáveis; da modernidade líquida, o comportamento beligerante com o outro, no limite da deslealdade.
Treinadores e sábios Atualmente, o candidato ideal a um emprego é aquele que vende a si mesmo como produto. E que convence aos outros, que o contratam, que tem algo de novo a entregar. A obsessão pela novidade e criatividade (os chamados comportamentos inovadores), na verdade, vão na contramão do processo educativo que desenvolveu o próprio setor produtivo. Conhecimentos antigos, que exigem tempo e dedicação para se sedimentarem como comportamento moral, se tornaram inúteis. Saem os professores, entram os treinadores. A ética é o oposto da eficácia.
Quem acompanhou a escalação da Seleção Brasileira por Dunga teve um exemplo de como essa movimentação ocupa todos os setores, das empresas aos times de futebol. Dunga é um homem que expõe seus valores com desassombro: gosta de obediência, não admite opiniões contrárias, é conservador, não valoriza o passado, tem medo do futuro. Para tal comportamento, escolheu um estilo de administrar a equipe que tem como único critério o resultado e como método a tirania.
As pessoas, hoje, são pequenos Dungas, mesmo quando reclamam da falta de Ganso na Seleção: todos querem fazer parte da equipe, mesmo às custas de abrir mão da criatividade e de outros valores; aceitam se submeter a um pensamento menor para garantir a estabilidade; trocam o conhecimento pela esperteza; preferem treinadores a sábios por trás de suas decisões. Somos, nesse sentido, todos portadores do medo. Almas de desempregados.
Não é casual que no mundo corporativo, cada dia com mais poder, entrem em cena os chamados coachers, treinadores de carreira. Eles ensinam comportamentos, estratégias de ascensão, marketing pessoal e outros atributos competitivos. Quando tudo dá errado, tornam-se consultores de recolocação, profissionais que mudam o nome do desemprego para oportunidade. E se põem a vender pessoas. Os antigos sábios, guias de uma sociedade que buscava se aprimorar na herança iluminista do bom uso da razão, são hoje intelectuais desprezados pelo passadismo. Além disso, conhecimento humanista não dá dinheiro, logo não deve ser boa coisa.
A Seleção de Dunga é nosso horizonte de civilização. Nada que uma boa derrota não ajude a resolver.
Estado de Minas 15 de maio de 2009